Desde o século XIX, o transporte ferroviário tem modificado a forma como se ligam territórios e comunidades, encurtando distâncias que desde então têm sido decisivas para alguns dos eventos mais significativos da história moderna e contemporânea. Em Portugal, essa mesma história teve início há cerca de 165 anos, altura em que se realiza a primeira viagem, de Lisboa ao Carregado, em 28 de outubro de 1856. Até à atualidade, a narrativa dos caminhos de ferro cruza-se com a história do país, pela força de um transporte que veio do passado, mas cuja viagem principal ainda não terminou.
“Recuperar o setor dos transportes, por um lado, e apostar nos caminhos de ferro, por outro”: foi desta forma que, já em 2021, o atual Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, apresentou, na Comissão dos Transportes e do Turismo do Parlamento Europeu, as prioridades da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE). Naquele que é o Ano Europeu do Transporte Ferroviário, é notório como a ferrovia tem vindo a ganhar um olhar renovado ao longo dos últimos anos, em especial na Europa, ainda que o desinvestimento em termos nacionais traga algum ceticismo sobre os futuros desenvolvimento que se reservam para este meio de transporte.
Ao Gerador, João Cunha, Secretário da APAC - Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro destaca, por exemplo, que, para lá da fronteira de Portugal estão em cursos os maiores investimentos de sempre nos caminhos de ferro, transporte que irá refletir não só as necessidades do futuro – nomeadamente no que toca às metas ambientais –, como melhorar as ligações entre territórios. Que papel reservamos então à nossa ferrovia?
Em especial nas últimas três décadas, dados estatísticos apontam para um desinvestimento contínuo nos caminhos de ferro – onde, por exemplo, entre 2008 e 2012 foram encerrados mais de 300 km de linhas – em detrimento da aposta no transporte rodoviário. No reverso da medalha existem, todavia, indicadores positivos que denotam um “forte aumento” no número de passageiros transportados por comboio em Portugal. Em 2019, foram 175,3 milhões de passageiros nos comboios, um aumento de 18,9% face a 2018, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).
As estatísticas recentes acabam por ir ao encontro da perspetiva de João Cunha, que sublinha a importância da ferrovia pelo papel económico que ainda desempenha e que pode vir a reforçar. “Antes da pandemia estávamos a afirmar o país pelo turismo e é natural que tenhamos de diversificar a nossa oferta ao nível dos transportes. Uma dessas formas é através do turismo ferroviário, uma vez que muito do nosso traçado permite conhecer as diferentes zonas do país. Quando falamos de transportes – em especial da ferrovia –, falamos de mobilidade, de aproximação de pessoas e de partilha de histórias”.
O papel de que fala o responsável da APAC é reforçado por Manuel de Novaes Cabral, presidente da Fundação Museu Nacional Ferroviário, cuja sede museológica se situa no Entroncamento, tendo aberto ao público em 2015. No seu entender o “desenvolvimento do país decorreu em íntima ligação ao desenvolvimento do sistema ferroviário”, sendo que o caminho de ferro “desbravou territórios, criou ciclos de migração, fixou populações, criando novos sistemas urbanos, deixando marcas no território que persistem até aos nossos dias”.
Nesta perceção, o responsável entende que existe uma história de dívida do desenvolvimento do país para com os caminhos de ferro, que tem sido esquecida. Já Manuel Tão, geógrafo, acredita que o problema desse esquecimento reside, sobretudo, na esfera da governação e na forma como a sociedade olha para o caminho de ferro como um ativo: “Nós, desde há décadas, olhamos para a ferrovia mais como uma relíquia e, em alguns aspetos, até como um lastro. Diria que não se pode valorizar e rentabilizar algo que não se sabe para que serve”.
Uma importância patrimonial para o país
Desde 1856, o país experienciou a implementação de caminhos de ferro, de norte a sul do país, deixando um património que, de acordo com Manuel de Novaes Cabral, é “notável” uma vez que o país acaba por “não ter sofrido grande destruição das duas Grandes Guerras que a maior parte dos outros países europeus sofreu”.
Estes são apenas alguns dos aspetos singulares que o Museu tem dado a conhecer, onde é possível perceber “o rápido crescimento da estrutura ferroviária desde os seus alvores, até aos inícios da república”, mas também o período em que esse entusiasmo desapareceu. “Desde o final dos anos 80, sofreu um rude golpe: dos 3.658 Km de via férrea que Portugal tinha em 1989, foram encerrados cerca de 1.300 (em contraponto, no mesmo período, as autoestradas deram um salto de cerca de 200 Km para mais de 3.000)”, explica.
João Cunha da APAC sublinha que a associação olha com “preocupação e tristeza” para estes dados, mesmo percebendo o investimento que foi feito na rede de estradas, tendo em conta o atraso social e económico em que o país se encontrava no pós-25 de Abril. “Posteriormente, nos anos 90, a reestruturação económica acabou por alertar o país para o facto de que não se devia perder os caminhos de ferro”, acrescenta o responsável, referindo-se aos planos pela alta velocidade que marcaram a primeira década do novo milénio.
A crise económica, a partir de 2008, não ajudou, sustenta, mas nem por isso lhe retira ao transporte ferroviário um ímpeto de futuro. “A partir da nossa fronteira estão em curso os maiores investimentos de sempre em caminhos de ferros”, realça o responsável, acrescentando que numa ótica de sustentabilidade o transporte ferroviário pode ser a alternativa: “na próxima década é certo o aparecimento das taxas de carbono que vão aumentar o custo da aviação e aí o comboio poderá ser a melhor opção”.
Por seu lado, Manuel Tão sublinha, por exemplo, o papel de Greta Thunberg, que em 2019, optando por fazer as suas viagens de comboio, colocou em evidência uma necessária alteração de estilo de vida, em que o caminho de ferro recupera o papel que teve no passado. “Se a emergência pela sustentabilidade for traduzida por um princípio do poluidor pagador, acredito que o cenário pode mudar. Quando nós sentirmos o que vão ser as taxas aplicadas aos camiões e que podemos ficar sem linhas aéreas até 600 quilómetros, isso terá impacto sobre nós e sobre a Europa. A diferença é que os outros Estados Membros europeus já começaram, atempadamente, a fazer os seus investimentos na ferrovia, que lhes permitirá fazer essa transição, algo que nós ainda não fizemos”, finaliza.
Entre os planos já divulgados, Portugal pretende recuperar anos de atraso no desenvolvimento da sua infraestrutura ferroviária. Até ao momento foram anunciados €12,6 mil milhões de investimento para esta década que prometem mudar a face da ferrovia. O objetivo passa por encurtar distâncias e promover ligações internacionais que permitam colocar passageiros e mercadorias mais rapidamente em Espanha – e por esta via na Europa.