À Micas e à Maria Helena.
Ao meu pai e à minha Avó, in memoriam
Sou um filho do império Colonial Português, das suas brutalidades, afetos e contradições. Nasci em Angola, há 51 anos. Vim para Portugal em 1975, ainda não tinha seis anos. Nessa viagem, estava acompanhado dos meus avós maternos, da Micas e da Maria Helena, as minhas tias negras. Delas falarei já a seguir.
A minha mãe retornaria em breve a Portugal e o meu pai resistiria um pouco mais, vendo ainda, emocionado, o novo país nascer, a bandeira angolana a ser hasteada em Benguela. O João Carlos, meu pai, era militante do PCP e do MPLA. Tenho nas minhas mãos um recorte de uma manifestação, no Lobito, de receção a Agostinho Neto. Nela sobressai uma imensa multidão de cabeças negras e uma única cabeça branca, a de meu pai. Quando, no início da década de sessenta, lhe ofereceram armas para ingressar em milícias de colonos, recusou prontamente, sendo ostracizado pelas suas posições políticas. Não iria combater os seus camaradas negros, ele que frequentava em Luanda tertúlias e associações anticoloniais, recebendo a amizade de Luandino e outros escritores. Já no Lobito, o meu pai era conhecido e criticado por dar sempre boleia, no seu velho Renault 4, aos trabalhadores que moravam nas senzalas, tidos como “suspeitos” e “perigosos”. Num debate de há vinte anos, com Ângelo Correia do PSD, reproduzi o que o meu pai tantas vezes me dissera: os cães das vivendas dos colonos, na Restinga, eram treinados para morder os negros. Ângelo Correia tentou ridicularizar-me por essa tirada.
Tenho poucas memórias, mas lembro-me das traseiras do meu prédio, rente à baía do lobito, onde dormiam, em pequenos anexos, um exército de serviçais: criados e criadas, lavadeiras, cozinheiros e cozinheiras. Era um mundo à parte, de onde vinham cheiros e uma vozearia agradável, em espiral. Quando a festa adensava e o álcool aquecia as almas e as gargantas, os colonos davam-lhes ordem para se calarem. O álcool foi sempre um instrumento barato de dominação de trabalhadores desenraizados, mal pagos e tristes. Como no poema de António Jacinto, magistralmente cantado por Ruy Mingas: “Deixem-me beber maruvo/E esquecer diluído/Nas minhas bebedeiras”.
A Micas e a Maria Helena, as minhas tias negras, eram filhas da Natércia, uma “criada de brincar” que foi deixada em casa dos meus avós para fazer companhia à minha mãe, então uma criança e filha única. Mais tarde, a Natércia engravidará da Micas e da Maria Helena, que nascerão em nossa casa. A mãe, querendo voltar para a senzala e sabedora do afeto que minha avó nutria pelas duas crianças, “ofereceu-as” a seu cuidado. Connosco ficaram e viveram, sendo integradas na família. Também a minha avó foi alvo de críticas do grupo de colonos e várias vezes se impôs para que, no Natal com a família mais alargada, a Micas e a Maria Helena não ficassem pela copa, lugar natural dos negros na casa grande dos brancos. Já em Portugal, a minha avó enfrentou rixas, nos elétricos do Porto, perante as tiradas racistas dos passageiros que a viam, retrato insólito, com duas jovens negras. As minhas tias chamaram sempre “Mamã” à minha avó e dela cuidaram até ser internada num lar, devido ao Alzheimer.
Uma das minhas primeiras memórias é a dos olhos alegres da Micas a brincar comigo, a empurrar-me no carrinho, a correr na praia, a pôr-me pequenos caranguejos na mão ou a levar-me para dar voltas infinitas no machimbombo que circundava a Restinga.
Aquando do retorno à metrópole (o “puto”, como os miúdos dos colonos chamavam a Portugal, ironizando com a sua pequena área face à imensidão da colónia) as minhas tias dominaram em pouco tempo as astúcias das filas do IARN e apareciam na casa do Porto com cobertores e todo o tipo de géneros alimentares. Sofriam muito com o frio e cedo começaram a trabalhar para ajudar em casa, fazendo os seus primeiros amigos, negros e brancos.
A Maria Helena trazia de Angola o 6º ano e um curso de dactilografia e a Micas acabou em Portugal o 9º ano. Mais tarde, uma e outra progredirão, por conta própria, nos estudos. Ambas se tornarão devotas. A Micas, católica, ingressará no movimento Gen, também chamado de movimentos dos focolares, tão do agrado de João Paulo II, devido ao seu cariz carismático. Até ao final dos seus dias a minha avó terá na sua mesinha de cabeceira uma fotografia do conservador Papa polaco a apertar a mão da Micas. Já a Maria Helena, inicialmente mais profana e muito pouco dada à sacristia, virá a tornar-se evangélica. Uma e outra encontraram nas suas igrejas uma rede de suporte, entreajuda, integração e valorização.
As relações colonizadores/colonizados nem sempre cabem nos retratos robot. A minha família é um exemplo dessa complexidade. Se é verdade que as minhas tias são “família”, não é menos certo que foram muito sacrificadas por uma desigual distribuição do trabalho na esfera da reprodução social – o cuidado dos outros, isto é, os brancos da família. A elas sempre coube tratar da minha avó, agora da minha mãe, que tem várias mazelas, de mim quando pequeno ou, mais recentemente, da minha filha de cinco anos. Quando em 1977 mudámos para um bom apartamento de três quartos + um na Avenida da Boavista, a Micas e a Maria Helena dormiam no quarto pequenino, junto à cozinha, outrora destinado a ser aposento de criada interna. Nunca essa “opção” foi questionada e sempre se considerou “natural” que eu ocupasse um quarto grande. Hoje, a Micas cuida, de forma remunerada, de uma prima minha que tem uma doença oncológica. A Maria Helena trabalha em minha casa, na casa de minha mãe e de minha tia. Apesar de não terem muito dinheiro, fazem questão de presentear a minha filha com inesgotáveis mimos.
Esta semana eu e a minha mulher repreendemos a minha filha, que se referiu à Maria Helena como “empregada”. É um equilíbrio difícil de gerir, nos afetos, nas representações mentais, na economia doméstica e nos contratos que se aí se misturam. Acima de tudo, é a ilustração de um passado que ainda não morreu – o da relação assimétrica entre colonizadores e colonizados, num tempo pós-colonial onde todos os lúgubres fantasmas se agitam. Espero que a minha filha consiga perceber, na ainda incerta cartografia dos seus afetos em construção, a angústia que de mim se apoderou.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.