Os acontecimentos dos últimos meses podem ser lidos como uma expressão particular de uma prática geral no planeamento da cidade nas últimas décadas. Falamos do caso de despejo dos músicos e lojistas do STOP e da retirada dos bancos do espaço público no Largo Alberto Pimentel.
À partida podemos não ver a relação entre estes temas, mesmo incidindo sobre a cidade do Porto, mas estes e outros que poderíamos aqui elencar estão debaixo de um chapéu chamado Porto. cujo objetivo é muito claro - polir e limpar cada vez mais as complexidades da cidade, para a tornar um produto mais vendável, seja ao turista seja ao especulador imobiliário.
- O caso do antigo centro comercial STOP é paradigmático. O despejo dos lojistas e dos músicos, ocorrido em julho de 2023, não pode ser desligado das dinâmicas da zona onde o edifício se insere. Já tivemos oportunidade de explorar essas relações numa publicação aquando da mobilização de centenas de pessoas da cidade pela permanência dos músicos no STOP.
- Se nos afastarmos desse caso particular, podemos constatar que nos últimos anos a zona do Bonfim foi gentrificada através da arte e da cultura, transformando a freguesia num dos “bairros mais cool da europa”. A valorização do preço do solo na zona do Bonfim levou à expulsão dos moradores e à sua substituição por uma camada da população que ainda consegue pagar os preços praticados no mercado de venda e arrendamento. Ao transformar o Bonfim numa zona segura para o investimento, com retorno garantido, o processo que já tínhamos observado no Centro Histórico alarga-se para a zona oriental da cidade.
Hoje vemos que estão a ser dados os mesmos passos na freguesia de Campanhã, tendo a autarquia o papel essencial de garantir que é essa a próxima zona de investimento imobiliário na cidade. São exemplos da proatividade do poder público: o renascimento do Matadouro enquanto centro empresarial, comercial e de lazer ou a construção do novo Terminal Intermodal de Campanhã, que acolherá em breve também a linha de alta velocidade.
Há dois pontos essenciais em que os últimos executivos são responsáveis neste processo: 1) ao deixar ao abandono a zona oriental, renegando os moradores e os seus direitos, fazendo desvalorizar o preço do solo e difamando a zona como “perigosa”; 2) o súbito interesse no bem estar dos fregueses e o surgimento de investimentos públicos de grande dimensão, transmitindo aos restantes investidores que aquela é uma zona segura para aplicarem o seu capital. Com os olhos postos em Campanhã, a dupla poder público/investimento imobiliário começa a fazer disparar o preço do solo, expulsando a população residente. Não é coincidência que Campanhã, entre os censos de 2011 e 2021, tenha sido a freguesia que mais perdeu população, onde as rendas mais aumentaram e onde os edifícios devolutos ganharam significativa expressão.
- Nada disto acontece por acaso ou sem intenções claras da classe que nos governa e na linha abissal entre estas duas freguesias temos o edifício do STOP.
Este edifício é a frente de rua do terreno do antigo complexo industrial conhecido como Palácio Ford. Esse terreno é hoje propriedade da sociedade anónima IME, cuja valorização depende da ligação com a frente urbana, ligação essa feita através do STOP. A narrativa do executivo sobre a insegurança do edifício e do elevado número de proprietários que os impede de intervir em defesa dos trabalhadores deste Centro surge num momento conveniente, mas sem grandes fundamentos. O regresso temporário dos músicos ao STOP é a garantia que a autarquia precisava para a transição futura correr pacificamente, seja para Silo Auto ou para a Escola Pires de Lima, cumprindo-se o plano inicial.
- A privatização da cidade tem muitas facetas e pode ser tão simples como a retirada de quatro bancos públicos. A retirada dos bancos do Largo Alberto Pimentel, em frente à Cervejaria Mirita, é a prova clara de como não interessa ao município defender os moradores, que se queixam há anos do ruído e do desconforto de viver em cima dos bares, mas direcionar o consumo e a vivência do espaço público a uma determinada camada da população. O processo de substituição é claro. Substituem-se os bancos públicos por esplanadas onde o consumo é obrigatório. Substitui-se a cerveja a 1€ por um mojito a 7€. Substituem-se os jovens e a classe trabalhadora portuense por turistas e nómadas digitais. O barulho continua e os moradores continuam a não ter direito ao descanso, sendo usados como peões na luta por aquele espaço, que deveria ser de todos, sem intermédio do consumo.
“Não serão as necessidades urbanas específicas necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares onde a troca não passe pelo valor de troca, o comércio e o lucro? Não será isso também a necessidade de um tempo para esses encontros e trocas?” 1
- Poderíamos continuar este texto puxando inúmeros exemplos de como as políticas públicas abrem caminho e provocam tempestades perfeitas para a livre apropriação da especulação imobiliária e dos interesses do capital. Vejam-se as novas linhas de metro, cujas alternativas de percurso poderiam servir melhor a classe trabalhadora residente; a instalação de câmaras no espaço público, com captação de imagem e som, para “nossa segurança”, mas cuja utilização assenta em critérios subjetivos; a inação do executivo face a 20 mil alojamentos devolutos na cidade; ou a questão do consumo de droga na pasteleira, criminalizando a pobreza e a doença.
A narrativa dominante quer fazer-nos acreditar que o poder público em nada pode ou deve interferir com as dinâmicas do mercado e do desenvolvimento urbano, mas a lógica da cidade neoliberal em que vivemos dita exatamente o contrário: o poder e as políticas públicas têm um papel ativo e preponderante nestas dinâmicas, limpando toda a cultura e complexidade das nossas cidades, servindo somente os interesses da classe dominante.
Por trás da fachada do ‘crescimento económico e urbano’, produzem cidades cada vez mais vazias e descaracterizadas, alheias às nossas necessidades. Qual tabuleiro de monopólio, onde todos os investimentos são possíveis, mas onde a classe trabalhadora não pode habitar.
1 Lefebvre, Henri “O Direito à Cidade”, Editions Economica, Lisboa, 2000 - p.108
-Sobre Habitação Hoje-
A Habitação Hoje é uma organização do Porto que luta pelo cumprimento absoluto do Direito à Habitação e para isso trabalha em duas frentes. Nas ruas e nos bairros, junto de quem é mais afectado pela falta de acesso a uma habitação digna e no estudo e desconstrução das políticas que nos trouxeram até aqui.