Aos 12 anos descobri o meu corpo e aos 12 anos descobri a indústria pornográfica e aos 20 continua a ser estranho dizê-lo abertamente — quase como se estivesse a confessar um crime.
Na altura, como ninguém parou para me explicar o que sexo era ou, mais importante, o que são relações sexuais, eu caí no erro de assumir que a vida real replicaria o que me era apresentado no ecrã — e todos sabemos que a indústria pornográfica é gerida por homens, feita para homens e baseada em estereótipos — o que passou para mim a ideia que o meu papel enquanto ser sexual era o de dar prazer ao pénis que se deitasse ao meu lado. Eu tinha uma história única sobre o sexo, mas já voltamos a este ponto.
Passemos então uns anos à frente para chegarmos ao momento em que descobri a obra Woman With Her Cut Throat de Alberto Giacometti. A nossa história começa então num frio domingo de manhã, numa pequena sala da exposição temporária Migrating Objects: Arts of Africa, Oceania, and the Americas in the Peggy Guggenheim Collection em exibição no Museu Peggy Guggenheim, em Veneza.
Muito sucintamente, trata-se de um disforme corpo feminino com as costas arqueadas e de pernas abertas enquanto duas grandes garras o tentam segurar. Ao apresentar uma posição que sugere ou grande prazer sexual ou grande sofrimento, o artista brincou com a fina linha que separa o prazer e a morte. E eu achei isto muito engraçado e fascinante até que li que a obra é inspirada nos louva-a-deus (espécie insetívora na qual as fêmeas decapitam os machos durante o ato sexual) e me surgiu a questão que me traz aqui: então porque é que a vítima de Giacometti é um corpo feminino? Porquê inverter a lengalenga?
A Arte Moderna sempre me fascinou (suspeito que por ter crescido com tantas destas pinturas coladas na porta do frigorífico): é um mundo de cor, de ideias loucas e de experimentação sem fim. Parece idílico, não é? Mas nada é um mar de rosas.
Os artistas deste período queriam exprimir as suas sensações e emoções e o problema surge quando o fazem diminuindo as mulheres ao veículo para lá chegarem. Por outras palavras, se ao representarem mulheres o fazem apenas e meramente enquanto uma resposta à experiência sexual e sensual, reduzem-nas a um mero objeto usado para atingir um fim: o prazer sexual do grande e único homem-artista. Nas palavras de Carol Duncan: “the artist reduces a woman to so much animal flesh, a headless body whose extremities trail off into ill-defined hands and feet. The artist's eye is a hyper-male lens that ruthlessly filters out everything irrelevant to the most basic genital urge”.
Não é preciso muita ginástica mental para encontrarmos exemplos disto: uma pequena pesquisa de Modern Art Reclining Nudes no nosso amigo Google e são-nos apresentados dezenas de corpos femininos (nenhum masculino, note-se) prontos a serem manuseados. Há corpos virados para o espectador de pernas abertas (Oscar Mellor, Reclining Nude, 1921); há corpos deitados em pose fetal de costas para nós (Victor Willing, Nude, Back View, 1956); há corpos que se deitam numa linha contínua como se nada fosse (Henri Matisse, Reclining Nude, 1924); há corpos com a cara tapada (Richard Diebenkorn, Untitled [reclining nude covering her face with her arm], 1955-1967); há corpos com a cara exposta (Amedeo Modigliani, Reclining Nude, 1916).
Independentemente das diferentes posições e da exposição ou não do rosto — sendo que a sua falta só salienta mais a desumanização da mulher — em grande parte destas pinturas, mesmo que o artista não esteja representado, o que vemos é a sua influência sobre a modelo ou a forma como o corpo dela desencadeia nele este desejo. Em suma, ao retratarem esta vontade sexual do artista as obras representam a mulher como o ser a ele sexualmente subjugado.
Podemos argumentar que estes artistas pintaram também retratos de mulheres sem recurso a referências sexuais e é verdade, mas também é verdade que mesmo aí as colocavam numa posição inferior. Tal como Max Kozloff nota ao comparar os retratos feitos por Pablo Picasso durante a fase cubista, “the artist hardly ever creates the image of woman as a portrait during this period. He reserves the mode almost entirely for men... In other words, a woman can be typed, shown as a nude body or abstracted almost out of recognition”.
Para que uma obra de arte seja uma obra de arte feminista não é preciso revirar o mundo ao contrário, basta apenas que ao retratar a mulher não se cinja ao seu aspeto físico mas revele também o seu espírito, dignidade, identidade. Não é um bicho de sete cabeças impossível de atingir.
Olhemos para a série Abortion realizada por Paula Rego quando no verão de 1998 os portugueses disseram não ao referendo que propunha a legalização da interrupção voluntária da gravidez. Nesta série a artista retratou adolescentes e jovens mulheres a praticarem abortos clandestinos, pintando-as nas mesmas posições usadas em muitas pinturas de nus modernistas como posições sexuais.
Tal como Giacometti na escultura Woman With her Cut Throat, Paula Rego trouxe ao de cima o paradoxo entre prazer e morte. Contudo, nas suas obras, as mulheres não são expostas como objecto de desejo sexual. Em vez disso, elas estão lá por si próprias, aguentam a dor e sofrimento pela sua sobrevivência - o objetivo das pinturas não é salientar a sensualidade do corpo mas a pessoa que está a ser retratada, no seu todo. São obras feministas.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie numa Ted Talk fala sobre o perigo da história única: explica que quando ouvimos várias vezes de várias fontes apenas uma perspetiva pensamos que esse é o único lado da história que existe. Isto cria estereótipos e o problema não é que os estereótipos sejam necessariamente falsos, mas que são incompletos e fazem com que uma história se torne a única história.
Este é um perigo que também se faz sentir no mundo da arte. Como as Guerilla Girls referem, “every decision, even an aesthetic decision, has a value behind it and if all the decisions are being made by the same people - homens brancos ricos - then art will never look like the whole of our culture”.
A série Abortion é uma prova da relevância da cultura e da arte na criação de uma consciência crítica e, assim sendo, do quão importante é que as obras de arte reflitam toda a comunidade e não uma pequena porção de pessoas que vivem uma mesma única realidade. Não se trata simplesmente de deter o mesmo número de obras de mulheres e de homens — não estamos a falar de contas matemáticas — mas de expor obras com conteúdo feminista e experiências femininas pois, como as Guerrila Girls advogam, a menos que todas as vozes da nossa cultura estejam na história da arte, não é realmente uma história de arte mas uma história de poder.
-Sobre a Noa Brighenti-
Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 20 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.