Um estudo recente publicado no site Nature Human Behavior chegou a uma conclusão interessante: a cobertura noticiosa em meios que têm menor diversidade política e são mais claramente alinhados, à direita ou à esquerda, tem menor fiabilidade e esses orgãos de comunicação são mais tendenciosos na informação que prestam. Segundo o estudo “Political audience diversity and news reliability in algorithmic ranking,” os sites de informação com posições políticas mais próximas de um dos extremos têm uma audiência menos diversificada e praticam um jornalismo menos rigoroso e fiável, com um conceito de objectividade condicionado. Inversamente, o estudo sugere que os sites noticiosos mais neutros no conteúdo e que têm uma audiência mais diversificada em termos de posicionamento político, são também os que têm maior qualidade e maior fiabilidade.
Isto traz uma outra questão, que volta cada vez mais à ordem do dia: a constatação de que a percepção do que é objectividade jornalística mudou de forma acentuada na última década. Hoje em dia escreve-se cada vez mais incorporando à partida um ponto de vista, com base numa agenda de intenções ou a partir de determinada opinião, em vez de um relato não condicionado da realidade. Muitas vezes um artigo sobre um acontecimento está escrito em defesa de uma determinada tese, em vez de fornecer um relato factual ou possibilitar uma visão de várias opiniões sobre um mesmo tema. Ora acontece que a incorporação de opinião não claramente identificada como tal num texto jornalístico pode alterar a percepção da realidade. Olhando para as coisas de um ângulo mais lato, as “fake news” não são só as notícias falsas, mas também notícias manipuladas, por melhor que aparentem ser as intenções. Manipulação é sempre manipulação e provoca uma distorção da realidade, venha de onde vier.
O fenómeno não é novo, mas tem vindo a agravar-se. O jornalismo de causas vive de uma agenda própria, que muitas vezes privilegia a amplificação dos desejos e objetivos de uma minoria, com o objectivo confesso de a fazer crescer. Frequentemente este tipo de atitude na comunicação está ligada a agendas de organizações políticas que as fazem passar para os media - no fundo manipulando-os. Esta prática é destruidora da credibilidade dos orgãos de informação e provoca uma redução da sua audiência potencial, colocando assim em risco muitas vezes o conceito básico da viabilidade financeira das empresas jornalísticas de referência - que é, com base no rigor e em boas práticas, conciliar a captação de audiências com a obtenção de receitas financeiras - quer da venda de assinaturas, exemplares impressos ou publicidade.
A qualidade do trabalho jornalístico deve-se ao equilíbrio entre isenção e diversidade da opinião publicada e veracidade dos factos reportados. A separação entre o que é informação e o que é opinião deve ser clara. A neutralidade, na forma como se apresenta a informação, é uma pedra de toque fundamental. Muitas vezes o problema nasce quando se confunde notícia com crónica, ou reportagem com opinião. A tendência de o observador se assumir como analista produz frequentemente efeitos nefastos. Por outro lado, é cada vez mais usual olhar, ver ou ouvir uma notícia e não perceber imediatamente o que se passou, como, onde e com quem. E isto aplica-se tanto à declaração de um político como à notícia sobre uma nova peça de teatro. A ideia de que o jornalista faz parte da acção e pode assumir o papel de sujeito não é nova. Esta forma de encarar o jornalismo torna-se moda volta e meia desde meados do século passado. O pretexto invocado é sempre o mesmo: querer ganhar identidade. A grande diferença entre o que hoje vemos e o que se passava é que os nomes de referências do “New Journalism” norte-americano dos anos 70 e 80 diziam bem ao que vinham e não faziam passar as suas crónicas por notícia. Proponho que voltemos a um princípio básico: os factos devem ser relatados e não adaptados às conveniências. Isto, que parece uma coisa simples, é no entanto muitas vezes o que se esquece em primeiro lugar - quer seja sob a capa de uma pretensa contextualização ou invocando o direito à utilização de uma forma de escrita criativa que muitas vezes resulta num vazio de informação.
Se tiverem o cuidado de observar com atenção vários jornais ao longo de uma semana poderão constatar que em muitos artigos começa a ser frequente não encontrar de forma clara a resposta a todas as questões que são os pontos essenciais para que uma notícia dê a perceber o que aconteceu: O quê? Quando? Onde? Como?. Ora é esta grelha de análise que permite sempre um ponto de partida fiável para conciliar a objectividade com a neutralidade, para fornecer uma informação isenta. Mas muitas vezes acontece que, em vez de querer relatar o que aconteceu, surge primeiro a explicação do porquê - que é a melhor porta de entrada para subverter a realidade ou alterar a sua percepção.
Mas o mais perigoso de tudo nem é o que acontece nos meios tradicionais, que procuram manter princípios jornalísticos básicos. O pior acontece no universo digital, em blogs e nas redes sociais, até mesmo em sites que se anunciam como noticiosos, onde se publica o que se quer, divulgando rumores, boatos ou simples mentiras, olhando para o mundo muitas vezes com uma pala nos olhos que obriga a ver numa única direcção. O pior acontece quando essa forma de agir contamina o jornalismo e é a alavanca de manipulação da informação. Basta pensarmos nos efeitos que uma divulgação, não necessariamente errada, mas incompleta ou deliberadamente parcial de uma sondagem pré-eleitoral pode ter no comportamento dos indecisos. Isto faz-vos lembrar alguma coisa?
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Manuel Falcão-
Manuel Falcão iniciou-se no jornalismo pela fotografia e, ao longo de duas décadas, desenvolveu a sua carreira como repórter e redactor. Foi fundador do Blitz e de O Independente, trabalhou nas Agências Notícias de Portugal e Lusa, no Expresso, no Se7e e na Visão, entre outros. Realizou vários programas de rádio. Dirigiu as áreas de produção de TV e de novas edições da Valentim de Carvalho e foi diretor do canal 2 da RTP. Foi também Presidente do Instituto Português de Cinema, Diretor do Centro de Espectáculos do CCB e administrador da EGEAC. Durante 15 anos, foi Director-Geral da agência de meios Nova Expressão. Em 2013 fundou a editora Amieira Livros, dedicada à fotografia e, em 2020, criou a SF Media onde desenvolve os seus projetos pessoais.