Quando o Governo apresentou, recentemente, medidas para responder aos problemas existentes na área da habitação em Portugal, foram várias as vozes que se fizeram ouvir sobre o suposto teor totalizante e marxista-leninista destas propostas. As acusações variaram das mais ligeiras alegações — "um atentado aos direitos e liberdades individuais" ou "um ataque aos investimentos e ao capital" — até às mais radicais formulações — "o governo mais comunista de sempre" ou "estamos de volta ao PREC". Na base de todas estas acusações, o que se tornou claro foi que para muitos, sobretudo liberais e neoliberais, há aparentemente um só direito que tem valor absoluto e é inalienável: o direito à propriedade privada.
Entre as muitas absurdas comparações que fui recolhendo, entre redes sociais e comunicação social, a que achei mais interessante e reveladora do pensamento por detrás deste caráter absoluto do direito à propriedade foi o facto de este ter surgido historicamente antes do direito à habitação e que, por isso, o primeiro tinha maior importância e relevância que o segundo. Ora, em vez de se inverter a questão e de se procurar entender o contexto histórico que explica esta linha temporal — e que deriva da expansão tardia dos direitos sociais democratizadores, no pós Segunda Guerra Mundial, em comparação com a garantia da propriedade para proteção daqueles que a detinham, uma minoria nos séculos XVIII e XIX — utiliza-se o argumento do tempo para valorar um em detrimento do outro.
A questão é, independentemente do mérito das propostas do governo para a habitação, a de tentarmos refletir em conjunto e enquanto sociedade, sobre como valoramos estes direitos, sobretudo quando eles parecem entrar em conflito. Comecemos, pois, pelo início.
Numa hierarquia de valores, o primeiro direito que nos poderia surgir como potencialmente absoluto e inalienável seria o direito à vida. Abusando do senhor La Palisse, sem vida não há mais direitos a garantir. Muitos serão aqueles que se posicionarão sobre o valor absoluto e inalienável do direito à vida e, certamente, com argumentos bastante meritórios. Mas, e sem ir à questão mais delicada do aborto, se considerarmos que as pessoas deverão ter direito à morte medicamente assistida, então estamos a considerar que elas têm o direito de dispor da sua vida e, consequentemente, o direito à vida perde o seu carácter absoluto. Como disclaimer, é essa, também, a minha posição.
Em que assenta, então, esta perda de valor absoluto do direito à vida? Na ideia da dignidade da pessoa. Na ideia de que, apesar de o direito à vida não perder o seu valor, o direito da pessoa a viver e a morrer com dignidade, nos termos em que determina — mediante acordo com a sociedade, acordo esse que é (será) regulado pela lei —, sobretudo evitando o sofrimento agudo ou aquilo a que eu chamaria da sua degradação identitária, se sobrepõe ao carácter absoluto da vida.
Por muita discussão que possa gerar esta ideia de direito à dignidade, e por muita dificuldade que eventualmente possamos ter em conseguir consensualizar o que é a dignidade da pessoa, este parece-me ser o verdadeiro — eventualmente, o único — direito absoluto e inalienável que temos. Mesmo no nosso confronto enquanto sociedade com atos humanos reprováveis, legalmente puníveis, e que levem a que uma pessoa seja privada da sua liberdade, é nossa obrigação assegurar que essa privação da liberdade acontece preservando a dignidade até da pessoa que cometeu atos que consideramos hediondos. A garantia de condições económicas e sociais que permitam que o ser humano viva condignamente deve ser — e é, na verdade — o princípio orientador da ação política em democracia, independentemente de qual o posicionamento ideológico de cada partido ou governo e da forma que cada um considera ser a ideal para atingir tal objetivo.
É com base nesta premissa que não entendo a resistência que existe a que haja uma restrição temporária do direito à propriedade privada — valor que está muito mais distante de poder ser absoluto que o direito à vida e, até, do direito à dignidade. A ideia de consagração do direito à propriedade privada obedece a uma orientação ideológica que, não obstante o facto de se encontrar mais ou menos consensualizada ou comummente aceite nas democracias do norte global, sempre foi alvo de contestação e de profundas discussões filosóficas e políticas. Acima de tudo, é fundamental não perder de vista que neste debate concreto — iniciado pelas tais propostas do governo sobre a habitação — o que está em causa é a tentativa de garantir a um maior número de pessoas o acesso à habitação. Eu não consigo conceber o direito à dignidade da pessoa sem a garantia de acesso a um teto e quatro paredes, que assegure a que a pessoa tem a proteção e o conforto mínimo necessário à sua existência enquanto ser humano. Colocar acima deste direito a ideia de direito à proteção de investimentos realizados ou de garantia da propriedade privada estabelecida, parece-me não só absurdo, como também atentatório do nosso dever social de proteção da dignidade de todos.* Espero que, enquanto sociedade, consigamos chegar a esta conclusão também e que continuemos a lutar para garantir a dignidade de cada um de nós. Só um esforço coletivo pode, verdadeiramente, permitir alcançar este objetivo.
* Para não ser completamente abstrato nesta discussão, e trazendo-lhe um carácter mais pragmático, acrescento que considero que as restrições ao direito à propriedade privada devem ter por base um princípio garantístico que não ameace, por sua vez, a dignidade das pessoas que a detêm e a vêem ser restringida temporária ou permanentemente.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.