Desenvolvida pelo coletivo de curadoria Mais uno +1, a residência multidisciplinar convida artistas, criadores, investigadores e profissionais de várias disciplinas a desenvolver projetos em territórios de pouca acessibilidade, de forma colaborativa e experimental. Após o período de residência, está prevista uma exposição dos resultados na NOVA FCSH, a decorrer entre 15 de fevereiro e 15 de março de 2025, acompanhada por um programa público de atividades, tais como mesas redondas, workshops, visitas guiadas e performances.
Informalidade como Resistência é o tema da primeira fase, focada na criação com crianças e jovens, que incide sobre quatro territórios periféricos de Lisboa. Esta fase do programa vai possibilitar o contacto com as artes e formas de trabalho criativo a jovens com poucas possibilidades de deslocação. Ao mesmo tempo, com um espaço de estúdio e mentoria especializada, a iniciativa oferece uma “porta aberta” aos bairros, para que profissionais de diferentes áreas possam refletir sobre a cidade e aprender formas de trabalho adaptadas à realidade das periferias.
Em entrevista ao Gerador, Lígia Fernandes, co-curadora da residência, explica que o tema escolhido é uma forma de “enaltecer” as práticas informais que existem nestes territórios, sem esquecer as suas dificuldades. “Estes bairros são muito baseados na informalidade. Temos, por um lado, os bairros autoconstruídos, em que quase todas as práticas são informais: os pequenos negócios, a cultura, a tradição oral, a forma como as pessoas se organizam. Por outro lado, pode pensar-se que algumas destas práticas informais são consequências de limitações que [as populações] têm a nível social.”
Os territórios onde decorre a residência, que habitualmente ficam fora dos circuitos culturais, artísticos e de investigação, são bairros autoconstruídos e bairros sociais, onde as populações encontram dificuldades como pobreza, insucesso escolar, demolições e marginalização. Lígia Fernandes sublinha, por isso, a importância de investir em projetos de longa duração e que tenham em conta as necessidades das populações e os seus patrimónios multiculturais.
No âmbito do PLAY(THE)GROUND, é já o segundo ano que Talude e a Quinta da Fonte recebem os artistas residentes, e a equipa de curadoria não quer ficar por aqui. “Nunca foi nossa intenção ir fazer uma coisa e ir embora. Queremos sempre que o trabalho seja continuado, porque é isso que estas comunidades precisam. Fartas disso estão elas: de pessoas a entrar e a sair constantemente, a fazerem uma intervenção no espaço urbano e a irem-se embora”, reforça a curadora.
A par de Talude e Quinta da Fonte, a segunda edição do programa de residências chega também à Trafaria e ao Bairro do Zambujal. Os participantes encontram-se a desenvolver atividades numa variedade de disciplinas, tais como a gastronomia, pintura, caminhadas, performance, área audiovisual ou escultura, abordando temas diversos como identidade, fronteiras e migração, o conceito de família, problemáticas ambientais ou a interrupção voluntária de gravidez.
Em 2025, o programa de residências desloca-se das periferias para o centro da cidade de Lisboa para dar foco a comunidades isoladas. Territórios Invisíveis é o tema escolhido para a segunda fase do PLAY(THE)GROUND, inaugurada com a edição deste ano. “[O Centro de Dia Nossa Senhora dos Anjos e o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa] são territórios que estão no centro da cidade, mas que acabam por ser invisíveis: as pessoas não entram, não frequentam. Através da residência, vamos tentar abrir um bocadinho as portas”, explica Nicole Sánchez, uma das curadoras do coletivo Mais uno +1, em entrevista ao Gerador.
A colaboração com as comunidades locais e a arte socialmente implicada
Em 2023, a residência contou com a participação de nove projetos artísticos. Este ano, contabilizam mais de 25 projetos participantes, propostos por artistas, profissionais e investigadores nacionais e internacionais. “Há este sinal de que os bairros querem arte e acho que é já uma grande evolução de um ano para o outro. Já começámos a ter alguns artistas residentes que são do próprio bairro, e convidámos as pessoas que se têm mostrado mais interessadas a ser mediadoras: temos pessoas do bairro a receber os artistas, a acompanhá-los e a fazer a mentoria”, refere Nicole Sánchez.
A articulação com as comunidades locais foi sempre central no desenvolvimento do programa de residências. O PLAY(THE)GROUND partiu de uma primeira colaboração com a Associação para a Mudança e Representação Transcultural (AMRT), que tem desenvolvido trabalhos nos bairros da Quinta da Fonte e Talude. Em 2022, o coletivo Mais uno +1 recebeu uma proposta para trazer artistas e criativos a desenvolver trabalho com crianças e jovens durante as férias de verão, altura em que as escolas encerram e estes ficam com uma rede de suporte menor.
Desde então, o projeto colabora com um conjunto alargado de associações locais em cada território, e a equipa de curadoria espera que, com esta experiência, a aprendizagem entre os residentes e as comunidades locais seja estimulada de forma horizontal. “Gostamos sempre que o convite [para trabalhar nos territórios] seja feito pelos locais. Não [queremos] entrar à força nos lugares: tem de haver esse acolhimento por parte das comunidades e dos territórios. A partir daí, tudo é feito em conjunto: tudo é trabalhado em conjunto”, explica Lígia Fernandes.
Muitos dos artistas e profissionais residentes no PLAY(THE)GROUND são pessoas estrangeiras que trazem diferentes línguas e outras culturas para estes territórios. Estas experiências, sobretudo para as crianças e jovens, podem ser muito positivas, sustenta Nicole Sánchez. “Quanto mais contacto temos, em crianças, com outras realidades, outras culturas e outras línguas, mais desenvolvimento e curiosidade criamos.”
Mas a transformação também acontece do lado dos artistas, ressalva Lígia Fernandes. “Quando entrevistámos todos os artistas [da primeira edição], houve várias coisas que sobressaíram, nomeadamente a questão de alterarem processos de trabalho. Muitos deles, se calhar, não tinham pensado que podiam fazer os projetos daquela maneira, mas através de uma experiência diferente, alteraram os seus processos, [desenvolveram] uma maior consciência política e criaram amizades que perduraram após o término da residência.”
As curadoras dão conta de que em ambas as edições do programa, o número de candidaturas de artistas e profissionais estrangeiros superou o número de candidaturas nacionais. “Os portugueses estão menos familiarizados com a arte socialmente implicada ou a arte colaborativa. Não são ensinadas tanto a nível curricular e, às vezes, [as pessoas] não percebem muito bem este tipo de trabalho. Entre os artistas estrangeiros, isto é mais comum”, explica Lígia.
Quanto aos resultados finais, as curadoras explicam que não existem muitas regras. “Não temos obrigação de cumprir objetivos, a grande vantagem de sermos um coletivo aberto é essa: podemos simplesmente criar e ver o que é que acontece tendo sempre uma fundação ética por trás”, explica a curadora. “O único objectivo que temos é o de proporcionar as condições para que artistas, investigadores e profissionais, ou qualquer pessoa que se queira propor à residência, tenha um espaço de trabalho e acesso à comunidade através dos nossos parceiros ou de agentes mediadores no terreno.”
Em 2023, o projeto decorreu de forma autofinanciada e, em 2024/2025, o coletivo Mais uno +1 conseguiu financiamento da DGARTES para apoiar parte do projeto. Além deste apoio, a equipa de curadoria lança campanhas de crowdfunding para os artistas e recebe donativos.