O dicionário português define censura como um acto de crítica severa ou um exame oficial de determinadas obras ou escritos. Reconhecemo-la como um instrumento utilizado por regimes totalitários para bloquear a liberdade de pensamento e perpetuar o status quo. Por estes lados, a censura é associada ao Estado Novo e tem nome popular — o lápis azul. É parte do nosso passado e abordamo-la como um dos monstros da nossa ditadura.
No entanto, embutir a censura naquele que é o passado do nosso país e o presente de alguns estados totalitários é um acto hipócrita e de sobranceria moral. Os movimentos sociais e as respectivas lutas estão a dar de si. Vivemos numa época em que os estereótipos de género, raça, identidade e orientação sexual estão a ser desconstruídos. Luta-se para que haja espaço para todos e para que todos tenham voz. Enquanto feminista, reconheço este como o caminho para uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, como se as transformações sociais não falassem por si, deparamo-nos com uma necessidade de polir o que nos rodeia, mas que a nós não pertence.
Na semana passada, foi anunciado que vários livros de Agatha Christie serão editados para remover a linguagem ofensiva e se adaptarem aos moldes sociais dos tempos modernos. Essas alterações visam passagens sobre etnias e até crianças. Agatha Christie não é a primeira. Na verdade, as obras de Roald Dahl e Ian Fleming também já foram editadas. Servi-me da palavra editar, porque é o termo que tem sido utilizado pelos média. De facto, censurar é palavra de regime totalitário e não deveria ter lugar no espaço democrático. Só que, pelos vistos, a narrativa não é assim tão linear e, já que estamos a debater questões linguísticas, existe um substantivo que define o acto de pregar uma ideia e exercer o oposto.
É fundamental que a sociedade continue a evoluir, mas devemos estar conscientes do nosso lugar. O passado e o que lá se encontra poderá servir-nos, entre outras coisas, de base de reflexão, mas a nós não pertence. As obras de quem já partiu não são espólio ao nosso dispor para serem moldadas. Se termos acesso às ideias e à arte do passado é um privilégio, podemos dizer que é em parte nosso dever ter espírito crítico para reflectir e entender o contexto das mesmas. Abrir este precedente no espaço democrático é um perigo para a própria democracia. O que nos leva a crer que os nossos motivos justificam o acto de censura, mas quando o mesmo ocorre em regimes totalitários, esse mesmo acto passa a ser condenável? Tão importante quanto isto, onde residem os limites da censura? Se continuamos a fazê-lo de acordo com os moldes de pensamento da actualidade, o que faremos daqui a dez anos, quando os moldes forem outros? Perderemos o acesso ao nosso passado e estaremos inseridos num enquadramento artístico polido e simulado. Será a Disneyland das artes.
Não há dúvida que a linguagem pode ser ofensiva e até perigosa, mas no espaço democrático não deveria haver lugar para alterar ou banir uma obra. Relembro que Mein Kampf de Adolf Hitler esteve banido na Alemanha, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até 2016. As obras servem como um atestado das ideias do passado e, como se diz popularmente, ao passado ninguém o muda. O que podemos fazer é aprender com ele para termos um futuro melhor. Ler este tipo de textos é, sobretudo, uma forma de compreendermos e questionarmos de onde viemos para sabermos para onde queremos ir. É também um meio de análise do nosso progresso enquanto sociedade. Em alternativa à censura, existem outras formas de trabalhar os textos como, por exemplo, a adição de introduções ou até notas de rodapé de especialistas, que visem reforçar o espírito crítico do leitor.
Quando reflectimos sobre a censura no meio artístico, é de notar que este cuidado em acomodar os padrões sociais da actualidade reside essencialmente na área literária. Não se repintam quadros ou se editam filmes. Maria Schneider afirmou ter sido violada por Marlon Brando aquando da gravação de uma cena de Last Tango in Paris. Quando assistimos à longa-metragem de Bernardo Bertolucci, sabemos que assistimos a uma violação. Talvez o lápis azul seja mesmo a ferramenta mais acessível…
O poder da democracia reside no poder do cidadão. Nestes regimes, é fundamental a educação, porque esta providencia espírito crítico, tolerância e abre as portas ao diálogo, fomentando, por conseguinte, o espírito de comunidade. As democracias têm a obrigação de confiar nos seus cidadãos, porque são eles que permitem a sua existência. Parece-me, no entanto, que actualmente as democracias desconsideram-nos e, que nem pais condescendentes, decidem proteger-nos de um passado para evitar repercussões. Esta é uma das armadilhas da democracia. Afirmamos que a censura é coisa de regimes totalitários. Deste lado, porque é bem-intencionada, apelida-se de edição. No fim, acabamos por ser os maiores hipócritas. Enquanto mulher e feminista, não quero temer ou polir o passado machista. Quero reconhecê-lo, detectar as fragilidades do mesmo e abrir o diálogo para que possa haver um amanhã mais igualitário. Enquanto mulher e feminista, não quero que as passagens misóginas sejam re-escritas. Quero lê-las e até sublinhá-las para não me esquecer de onde viemos e saber para onde temos de ir.
-Sobre Cátia Vieira-
Cátia Vieira diz que não tem ídolos, mas chorou quando o Leonard Cohen e a Joan Didion morreram - e até sabe o mapa astral deles. Também diz que não é grande fã de pessoas, mas não pára de ler livros que esmiuçam a mente humana. Por isso, é que estudou Estudos Portugueses e frequentou o Doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho. Como se já não lesse muito (o T1 está a ficar pequeno para as gatas e livros), também escreve. Lola, o seu primeiro romance, foi publicado em 2021, pela Penguin Random House, e encontra-se, neste momento, a escrever a sua segunda obra. À noite, dá-lhe para escrever poesia. Também trabalha como directora criativa na Selafano e fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores. Vive em Braga e publica as suas leituras e ideias sobre a vida e o mundo em @catiavra.