Faz parte da história, mas dele – arrisco-me a escrever – não ouvimos falar na escola. O feminismo negro não é uno, e também ele abarca vários movimentos, que, como denominador comum, têm as experiências de mulheres negras – também elas humanas e diversas.
Com as mulheres brancas, não partilham, no entanto, o ponto de partida para os direitos conquistados pelo movimento feminista – aqui referido como branco –, que tende a excluir as vivências e lutas de quem é igualmente mulher.
Invisibilizadas pela história, omitidas pelo feminismo branco, mas também abafadas por um movimento negro machista e patriarcal, as mulheres negras foram, ao longo de séculos, relegadas para o silêncio. Um silêncio que cada vez mais se rompe através de diferentes vozes, associações e coletivos, também aqui, em Portugal.
Desengane-se quem pense que promovem divisões. Pelo contrário, defendem uma perspetiva intersecional para que a luta se amplie e considere todas as mulheres, independentemente de diferenças raciais, de classe, religião ou orientação sexual.
Neste Dia Internacional da Mulher, falámos com Alexa Santos, vice-presidente do INMUNE – Instituto da Mulher Negra, fundado, em 2018, pela vontade de várias mulheres de criar conhecimento, trabalhar com a comunidade e acabar com a imagem estereotipada da mulher negra na sociedade portuguesa. Uma imagem ainda real, em muitos casos, mas que está longe de representar a diversidade deste grupo.
Alexandra Santos, ou apenas Alexa, é disso exemplo. Filha de mãe cabo-verdiana e pai português, licenciou-se em Serviço Social, área que exerce, em Portugal, e tornou-se mestre em Género, Sexualidade e Teoria Queer, no Reino Unido. Ativista pelos direitos de pessoas LGBTI+ e feminista anti-racista, faz parte da direção do INMUNE e também da associação Clube Safo, dedicada aos direitos das pessoas lésbicas. Além disso, aos 35 anos, Alexa integra ainda o projeto “Megafone dos Direitos Humanos” da associação Mais Cidadania.
Gerador (G.) – O que diferencia o feminismo negro do movimento feminista dito tradicional?
Alexa Santos (A.S.) – Primeiro, se calhar, contestar já a ideia do que é o feminismo tradicional, porque, na realidade, o feminismo negro sempre existiu. Portanto, não sei se ele não é tão tradicional como os outros. Isto já à partida. [Depois] Vamos falar do feminismo negro como se ele fosse uma coisa só, mas, na realidade, também não é só uma coisa. Há várias correntes, como o mulherismo, que também são feminismos que acontecem a partir da experiência de mulheres negras, e aqui a grande diferença é essa. Diria que o feminismo negro, conforme ele é pensado, é cunhado, a partir do momento em que Sojourner Truth diz, numa convenção de mulheres, “Ain’t I a women?” [em português: “Eu não sou uma mulher?”]. Daí a bell hooks depois também vir escrever um livro com esse título.
Então, a diferença do feminismo – e não diria tradicional, diria branco mesmo – é que ele acontece a partir das experiências das mulheres negras, que não eram tidas em conta naquilo que era chamado feminismo – que não é um feminismo tradicional, é só um feminismo branco, que acontecia a partir da experiência de mulheres brancas, da burguesia, que tinham principalmente como objetivo sair de casa para trabalhar e terem a sua independência, quando as mulheres negras, efetivamente, já saiam de casa e trabalhavam nas casas dessas mulheres brancas, tanto que, no discurso do “Não serei eu uma mulher?”, Sojourner Truth diz isso. Ela diz assim: “Para vocês, as portas estão abertas. São os homens que as seguram. Para mim, nunca ninguém me segurou uma porta para eu passar, ou me segurou na mão para eu sair de um transporte. Então, será que não sou eu também uma mulher?” [citação não fiel]1 É um bocado esta ideia do que é o conceito de mulher quando estamos a falar de uma mulher racializada, no caso de uma mulher negra.
É a partir daí que podemos cunhar o feminismo negro e pensar nele como uma contrarresposta a esta experiência de feministas brancas – uma das grandes batalhas era o sufrágio e a ideia do voto para as mulheres. Ou seja, se não és considerada sequer um ser humano, sequer uma pessoa cidadã, se és uma pessoa escrava, então o teu objetivo não é votar, o teu objetivo é seres considerada ser humano. O feminismo negro tem esse cunho de dizer “atenção, porque o feminismo que vocês fazem não tem em conta todas as mulheres, inclusive as mulheres que têm esta experiência, que são negras”.
G. – Portanto, podemos dizer que é tão antigo quanto o feminismo branco...
A.S. – Sim, [este discurso] foi em 1851, numa uma convenção chamada Women’s Rights Convention, no Ohio, nos Estados Unidos. Portanto, diria que é exatamente na mesma altura. A Sojourner Truth nasceu como escrava em Nova Iorque, em 1797, e foi tornada livre em 1826, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravatura nos territórios do Norte dos Estados Unidos [ao norte do rio Ohio]. Se pensarmos em 1800, século XIX, no fundo, o feminismo negro acompanha o feminismo branco, sempre com esta ideia de “atenção, vocês querem-nos apagar da história, mas as nossas realidades também devem ser contempladas naquilo que é a vossa ideia de feminismo, naquilo que é a vossa ideia do que é uma mulher”.
G. – Há quem questione: se é uma causa de género, não deveria ser uma causa de todas as mulheres?
A.S. – Quando ignoramos a diversidade de todas as mulheres, estamos também a ignorar aquilo que é a permanência e a prevalência daquilo que é o feminismo em si. Se dizemos que só algumas é que são ou podem ser feministas, ou que só algumas é que são mulheres, estamos imediatamente a ir contra aquilo que é o propósito do feminismo em si, diria eu. Principalmente porque se ignorarmos o facto de que realmente somos pessoas diferentes – seja por classe, por questões de cultura, por questões religiosas – e que isso nos afeta de formas diferentes, enquanto mulheres, ou enquanto pessoas de géneros diversos, então estamos a ignorar o próprio propósito.
O feminismo que diz que, se falarmos de diversidade estamos a querer afastar as pessoas, é um feminismo que dá jeito a quem quer manter uma ideia standard, ou seja, uma ideia de poder, uma ideia de unidade que não é real, não é factual. Se não respondermos às necessidades das pessoas, à realidade das pessoas e, no caso das mulheres em específico, ou de pessoas de género diverso, então não faz sentido termos feminismo. Isto é a minha opinião.
G. – Quando é que achas que Portugal “desperta” para este movimento?
A.S. – Nunca podemos deixar de pensar em duas coisas a nível de contexto. A primeira é a ditadura, e [depois] a ideia do poder colonial e a questão das colónias. A mulher negra em Portugal era...
G. – Completamente invisibilizada?
A.S. –Sim. Mas depois também tens algumas mulheres negras que vão fazendo o seu percurso. A Virgínia Quaresma fazia parte da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas – isto é, de 1910. Portanto, na realidade, sempre houve mulheres negras. Por isso éque falo de contexto. Falo de contexto mesmo a partir dessa ideia de que há uma necessidade, uma vontade e uma intenção do poder de silenciar estas vozes e de não falar nestas pessoas. Tanto que a Virgínia Quaresma fugiu para o Brasil, a certa altura, porque, para além de ser uma mulher negra com estudos, era também uma mulher lésbica. Foi uma questão de sobrevivência. Como é que vives, tendo um discurso contra o Estado, ou feminista, e depois também és lésbica? De tal maneira que sabemos que, por exemplo, a família livrou-se de tudo aquilo que pudesse um dia vir a ser uma prova de a Virgínia Quaresma ser taxada enquanto lésbica. Sabemos isto porque sabemos de contos, de coisas que outras pessoas vão contando, que falam nisso e que falam da Virgínia dessa forma. Quando vais à Wikipédia, não refere nada relativamente ao facto de ela ser lésbica, porque supostamente não se consegue comprovar que ela é lésbica.
Não há interesse nenhum em falarmos disto mais cedo. O que costumo dizer, muitas vezes, é que também depende muito daquilo que achamos que é feminismo. Se acharmos que o feminismo negro começa só quando, por exemplo, em 2016, começamos a ver a FEMAFRO [Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal] a juntar um grupo de mulheres e a dizer “vamos fazer isto”; ou então, em 2018, quando começa o INMUNE... Se pensarmos neste sítio como marketing, sim, concordo com aquilo que estás a dizer. Mas [é diferente] se pensarmos que o feminismo negro acontece a partir também de outros lugares de estar, de fazer, como, por exemplo, grupos de dança tradicional africana, como grupos de batuque, que são coisas completamente diferentes daquilo que é o feminismo instituído, mas que são, na realidade, grupos em que mulheres negras estão juntas, falam de si, constroem conhecimento, constroem história e ainda utilizam das suas culturas, dos sítios de origem, etc., para o mundo. Portanto, acho que depende muito daquilo que chamamos como feminismo negro.
Ainda assim, respondendo à tua pergunta mais diretamente, acredito que o movimento negro é bastante machista. Por exemplo, quando tens o Amílcar Cabral, que toda a vida foi acompanhado por uma mulher incrível, e as pessoas não sabem quem ela é [Ana Maria Cabral], isso diz muito daquilo que taxamos como poder, e quem é que faz estas lutas. Porque sabemos que a mulher de Amílcar Cabral era uma mulher que fazia uma quantidade de coisas dentro do movimento. Quando começamos a perceber isto, começamos a perceber que, dentro do movimento negro, não havia interesse em falar sobre isto. Porque era importante que as pessoas não soubessem que isto estava a acontecer, que as mulheres faziam isto. Mesmo o Black Panthers teve várias mulheres integradas dentro do partido e que quase nunca chegavam ao poder. Porque elas eram responsáveis por alimentar as pessoas, por cuidar das crianças, o que permitia aos homens tomar o palanque. Acho que é muito importante que pensemos em como a história fez com que estas mulheres não chegassem aos livros de História.
G. – Quer do lado do feminismo, quer do lado do movimento negro.
A.S. – Exatamente. O que acontece é que depois há efetivamente uma quantidade de situações, uma quantidade de mulheres que, entretanto, também ganham mais força, e começamos a perceber que se calhar não estamos sozinhas. Começamos a ter acesso, por exemplo, a obras escritas em português, ou traduzidas para o português, e começamos a perceber que se calhar há outras [mulheres negras] que também querem fazer isto e há pernas para andar em relação a isto. E assim começamos a fazer este caminho mais mainstream, vamos dizer assim.
Mas acho que os movimentos feministas não trazem lugar para aquilo que são as reais necessidades e preocupações das mulheres negras ainda hoje, para as reais vidas e experiências da vida da mulher negra e, depois, o movimento negro é encabeçado por homens. Às vezes nem sequer é homens, é efetivamente uma cultura e vivências machistas e patriarcais, que acabam por colocar as mulheres que têm um papel superimportante nessas lutas, não nos palanques, não no pensamento crítico, não nessas coisas todas. Mas isso vemos como transversal a todos os movimentos de mulheres. Ou seja, temos várias cientistas que ajudaram, que apoiaram e que estiveram no avanço científico, por exemplo, de várias descobertas e vários avanços na ciência, mas que não descobrimos, não sabemos, porque efetivamente não era do interesse que assim fosse. Não vamos dizer às mulheres que efetivamente são iguais aos homens.
G. – Como é que sentes que o INMUNE, com este propósito e com estes objetivos, foi recebido no espaço social português?
A.S. –Acho que é recebido com muito entusiasmo e acho que é recebido com uma ideia de que já fazia falta – muito à custa da fundadora do INMUNE e muito por mérito dela, a Joacine Katar Moreira, pelo trabalho que fez de congregar e, ao mesmo tempo, de fazer acontecer.
Em 2018, já havia um grupo de pessoas com um determinado... não diria estatuto, mas que já estavam a aceder a alguns lugares sejam eles de poder, sejam eles de visibilidade, que, de repente, se juntaram para criar um INMUNE. Então, quando ele aconteceu foi uma coisa muito… uau! Parecia que estávamos paradas no tempo. Mas lá está, isto já foi dois anos depois da FEMAFRO. O INMUNE não foi a primeira associação feminista negra, nem pouco que se pareça.
G. – A proposta tinha aquele lado mais de produção de conhecimento?
A.S. –Sim, produção de conhecimento. Havia muita produção de eventos. Havia uma ideia muito específica por parte da Joacine, que era que não fosse uma associação cultural no sentido de vamos fazer danças africanas, vamos fazer batuque, mas, sim, um bocado à semelhança do Geledés, no Brasil. Vamos criar conhecimento. Vamos mostrar outras imagens de mulheres negras. Vamos acabar com a imagem da mulher negra só enquanto serviçal, só enquanto empregada doméstica, só enquanto pessoa periférica. Porque existem mulheres negras noutros sítios e o facto de nos unirmos, de nos juntarmos, de fazemos este trabalho – seja ele cultural, de visibilidade e visibilização desta mulher –, é também uma forma de dizermos a todas as mulheres que estamos juntas, que podemos continuar a fazer este trabalho e que aquilo que as pessoas têm como uma ideia de mulher negra não é a realidade, e já não se coaduna com aquilo que é a realidade de muitas mulheres negras.
Claro que, dito isto, não significa, pensando na ideia estereotipada da mulher negra, que ela não existe. Não é verdade. Ela é tão verdade que a exigência e a urgência de se fazer um INMUNE e de se continuar a criar organizações de feminismo negro também têm que ver com isto. Também tem que ver com como é que podemos apoiar e como é que podemos dar resposta a situações específicas que acontecem com mulheres negras, sejam elas a discriminação no trabalho, por exemplo, sejam elas de assédio, sejam elas de violência policial.
G. – Pegando na ideia de que as mulheres negras ainda não ocupam determinados espaços que ocupam, sim. Essa visibilização é importante também para a própria criação de referências...
A.S. –É um bocado também isso. É também dizer que há jovens que estão agora a formar-se, que são cada vez mais, que são negras, e dizer-lhes: “Olha, há outras como tu. Bora juntar, bora fazer, bora criar. Porque é possível, porque outras vieram antes de ti e fizeram-no.” E mais, temos de fazê-lo em conjunto, que também é interessante.
Mas também nunca nos esquecermos de quem são as nossas mães, quem são os nossos antepassados, quem é que vem antes de nós. É esta ideia de complexidade e não de linearidade, ou seja, muito mais o escurecimento do conhecimento, o escurecimento da nossa história, das nossas vivências. Porque ela é muito mais complexa do que a linearidade da mulher negra, pobre, mãe solteira, que trabalha como empregada doméstica – que também é uma realidade, mas que é só uma das realidades das mulheres negras, sendo que há um fio condutor que nos une a todas, que é o racismo estrutural. A ideia de que todas nós, independentemente do estatuto, independentemente do que a gente esteja a fazer, vamos ser sempre alvo de racismo. E é sobre isso também que trabalhamos, ou seja, queremos desmantelar o racismo estrutural que nos oprime e que não nos faz alcançar determinados lugares, e a ideia específica que está gravada na cabeça das pessoas de que somos inferiores, de que somos burras, de que somos feias, de que o nosso cabelo é não sei o quê.
É muito também esta ideia de que, se somos atravessadas por estas questões mais ou menos da mesma forma, porque, interseccionalmente, sofremos destas opressões. Independentemente de ser a Dona Maria, que tem 50 anos, que vive na Amadora, que sai de casa às cinco da manhã, para as sete estar a limpar o banco, e que depois sai de lá e vai vender pastéis – que, entretanto, fez em casa – à porta do metro, que depois vai umas horas limpar a casa de uma senhora... Esta pessoa tem tudo que ver comigo que sou a Alexa, que tenho um mestrado tirado no Reino Unido, que tenho 30 anos, que trabalho na minha área, que sou assistente social, etc. Ela tem tudo que ver comigo, porque ela é a minha mãe, ela é a minha avó, ela é a minha tia. Ela é a ideia daquilo que eu, Alexa, sou. Quando se pergunta o que é que uma mulher de 35 anos, que é descendente de cabo-verdianos faz na vida, o que normalmente as pessoas dizem é cabeleireira, é empregada doméstica, é caixa num supermercado. Precisamos de perceber que, em momento algum, posso estar num lugar que normalmente é pensado para pessoas brancas, sem nunca pensar na Dona Maria, e sem nunca pensar que elas têm de vir comigo, se efetivamente quero alcançar um lugar que me dizem que não é meu.
G. – Em 2018, quando foi lançado o INMUNE, a Joacine Katar Moreira deu uma entrevista ao Público em que dizia que o feminismo negro em Portugal estava ainda na fase da infância. Em que fase é que está hoje?
A.S. – Acho que já não estamos bem na infância, mas também não estamos na adolescência. Estamos naqueles anos tipo nove, dez, onze, em que já não somos crianças, já não temos quatro, cinco, seis anos, mas ainda não chegamos à adolescência. Acho que há um interesse em saber mais, mas há muito pouco conhecimento. As pessoas leem pouco, informam-se pouco, têm pouca criticalidade, têm pouco sentido crítico. E acho que os sistemas estão feitos nesse sentido. Como é que sobrevives a uma pandemia e continuas a fazer movimento crítico e a construir conhecimento, quando tens de sobreviver, nos sistemas capitalistas e liberais? Se tens de trabalhar doze horas, cuidar de três filhos, como é que consegues também participar, discutir, conversar?
Lembro-me muito bem da mãe do Danijoy, quando estávamos em modo conversa com a Angela Davis e se falava sobre esta coisa dos estabelecimentos prisionais. E havia tradução a acontecer. Ela a certa altura diz assim: “Eu gosto muito de estar aqui, mas eu não percebi nada do que vocês disseram. Absolutamente nada. Não tenho interesse nenhum. Eu sou uma mulher, que me levanto de manhã, vou trabalhar. O meu filho esteve preso. Foi morto na prisão. Eu quero provar isso, por A mais B. Não me interessa nada o que vocês estão para aqui a dizer e não percebo nada do que vocês estão a dizer. Eu não sei quem é o Amílcar Cabral. Eu não sei nada disso. O que sei é que sou uma mulher, que quero justiça para o meu filho, e é isso que estou aqui a fazer.”
O que tens é uma cultura cada vez mais simplificadora de tudo, de todo o tipo de conhecimento, que se baseia muitas vezes em headlines, em frases chamativas, e depois há muito pouco este exercício, porque não há tempo, não há disponibilidade, não há capacidade efetiva para fazermos este exercício. E é um bocadinho isto: eu até li a bell hooks, mas precisava de, para além de ler a bell hooks, discutir com alguém. "Ela diz isto mas o que é que isto significa? Isto, neste contexto, porque é que me é relevante?"
G. – Há certos conceitos, ideias, que o cidadão comum, digamos assim, não conhece, porque nunca teve contacto com eles. Achas que ainda há um fosso entre a produção de conhecimento e a sociedade civil? Ou seja, é preciso encontrar uma comunicação mais eficaz, mais próxima, para que mais pessoas se possam juntar de uma maneira mais efetiva a estes movimentos?
A.S. – Temos é de deixar de achar que toda a gente tem de saber o conhecimento científico e estas coisas. Ou seja, há pessoas que nunca vão saber, nunca vão aceder a estes chavões, estes palavrões. E isso faz parte. Acho é que tem de haver diálogo. Não é necessariamente comunicação.
Nunca podemos é utilizar os chavões, as grandes ideologias... estas conversas não podem ser tidas sem um conhecimento de causa, sem trabalhares com as pessoas, sem ouvires o que elas têm para dizer. Depois podes traduzir isso para conhecimento científico. Podes chamar-lhe o nome que quiseres. Mas este diálogo... [tem de existir]. Vai haver sempre pessoas, ou pode haver sempre pessoas, que não chegam a x sítio. Mas a minha questão é essa: porque é que têm de chegar? O importante é que um não seja vazio do outro – que, por exemplo, a Cláudia Simões, que foi vítima de um ataque de violência policial, saiba e tenha o número da pessoa que escreve os artigos não sei para onde.
Isto pode trazer empoderamento para Cláudia Simões, por exemplo, que depois acaba por se calhar perceber um bocado mais do que é que isto significa a nível de conhecimento científico, o que é que isto significa depois para políticas públicas, etc. E ela acaba por ser a pessoa que faz com que as pessoas que criam as políticas públicas e as pessoas que criam conhecimento científico possam fazê-lo. Esta ideia de que uma coisa não está ligada à outra tem de ser mais esbatida, porque efetivamente, se não houvesse estas pessoas, se esta não fosse a vida das pessoas, não haveria quem pudesse escrever sobre elas. Então é pensar e perceber como estas duas coisas estão sempre a andar em conjunto. Quanto mais criamos estas pontes, quanto mais criarmos este diálogo, mais vamos saber exatamente o que dizer, como dizer e para quê dizer as coisas que dizemos. Não é só para falar sobre as coisas na academia, não é só para as reuniões de câmara, não é só para fazer politiquices. Não. É para efetivamente podermos, de forma competente e capacitada, estar nos lugares onde estas pessoas não chegam e representá-las. Afinal, vivemos em democracia.
G. – A produção de conhecimento científico é “só” uma parte importante do movimento, no fundo...
A.S. – Na realidade é uma parte importante como as outras partes são importantes. No entanto, é só uma parte – eventualmente aquela que, por visibilizar as realidades destas pessoas, poderá trazer uma mudança efetiva nos sistemas de poder. Mas, sem este diálogo, a mudança nunca seria possível, a justiça social nunca seria possível. E mais, a justiça social para as pessoas da classe trabalhadora, para as pessoas que são oprimidas, é igual à justiça para todas as pessoas.
G. – E esse diálogo é o diálogo que está a ser fomentado por parte de todos os coletivos e associações que têm surgido nos últimos anos. Ou ainda é preciso encontrar novos caminhos de fazer uma rede mais forte?
A.S. – É sempre preciso, mas vês projetos incríveis a acontecer. Vês uma Afrolis, que, entretanto, agora tem financiamento. A Carla Fernandes a fazer um trabalho brutal, a empregar duas mulheres negras lindíssimas e incríveis para fazer este trabalho. Tens a Afrolink também. A Paula Cardoso incrível, a fazer um trabalho fundamental, não só no Mercado [Afrolink], não só n’O Lado Negro da Força, não só no próprio site, como a fazer trabalho específico com escolas, com associações.
Quando tens trabalho feito por estas mulheres, quando tens trabalho feito por mulheres negras, tens sempre um trabalho a pensar na comunidade. A não ser que sejas a Ossanda Liber. Tirando esse caso, que é um dos únicos casos que conheço, na generalidade, uma mulher negra quando trabalha, ela trabalha sempre a pensar na comunidade. E mesmo a Ossanda, o facto de ela estar num cartaz no Campo Pequeno a dizer #todosjuntos, a leitura que podemos fazer também pode ser de uma mulher, de uma rapariga negra retinta, que olha para ela e diz assim "eu também posso chegar lá". Ou seja, não é tudo mau. Mesmo esses casos são casos que, quando não sabes em que contexto é que ela está inserida, não sabes qual é aquele partido, só o facto de ela ocupar aquele espaço já é qualquer coisa de inspirador para a comunidade.
Acho que o movimento tem sido muito nesse sentido. Muito do que tem sido criado dentro de organizações, de coletivos, de associações, é a partir das mulheres negras e das suas comunidades. E sempre neste sentido de diálogo. Se é preciso fazer mais, é. É sempre preciso fazer mais, e é sempre urgente fazer mais.
G. – Sentem essa dificuldade de acompanhar as necessidades?
A.S. – É muito difícil porque nós, e todas as pessoas que fazem movimento, tirando muito poucas pessoas, não somos pagas para fazer aquilo que estamos a fazer. Então é muito difícil vivermos as nossas vidas, que são vidas de mulheres negras, e ainda fazer este trabalho. Mas é por isso que vamos juntas. E por isso é que é tão importante continuarmos a fazer comunidade e construir comunidade, porque às vezes eu não posso, mas pode a colega que está no outro trabalho, ou que está no outro sítio.
Um bom exemplo disto, por exemplo, é também a Mariama Injai, que é uma pessoa que tem o seu percurso e que hoje – mais uma vez – também quer fazer estas redes de networking, quer que as pessoas trabalhem em conjunto. Então acho que é sempre muito a pensar em como é que podemos apoiar aquela senhora negra que faz cachupa aos sábados, como é que apoiamos a jovem que entrança cabelos no quarto de casa, porque sempre entrançou os dela, os dos primos, o das tias. Depois, ao mesmo tempo, enquanto criamos estas sinergias, também criamos comunidade. E enquanto criamos comunidade também criamos a possibilidade de discussão, de trabalho, de desconstrução, de enraizamento, de trabalho crítico, etc. E acho que [isto] está mesmo a ser feito. Se acho que é preciso fazer mais, é. É preciso continuarmos a fazer, é. Mas que acho que é esse o movimento, também acho que sim.
1 Consultar discurso de Sojourner Truth, na Women’s Rights Convention, no Ohio, nos Estados Unidos, em 1851, aqui.