Quase como se não existissem, estas casas e as pessoas que nelas vivem passam facilmente despercebidas. Reconhecemos facilmente as pessoas que estão em situação de sem-abrigo, porque estão desprovidas de qualquer tipo de alojamento, reconhecemos um aglomerado de barracas pelo tipo e pelos materiais de construção. No entanto, não reconhecemos facilmente as casas dos agregados domésticos em risco de pobreza porque… são frequentemente muito semelhantes às outras.
A maior invisibilidade das carências habitacionais destas famílias, “cujo rendimento equivalente se encontra abaixo da linha de pobreza definida como 60% do rendimento mediano por adulto equivalente” (INE), deixa-as em especial situação de vulnerabilidade. É quase como se, por estarmos sempre a tentar resolver as questões mais prementes, nos esquecêssemos delas. É quase como se, por ainda não termos conseguido assegurar o direito à habitação, não pudéssemos avançar para garantir as condições habitacionais básicas.
É bastante consensual que as condições habitacionais são mormente uma questão de rendimentos porque as famílias com menos recursos financeiros têm maior dificuldade em comportar as despesas com a habitação, mas também porque estas famílias enfrentam dificuldades adicionais em solucionar problemas habitacionais comuns como infiltrações ou isolamento térmico, precisando depois de despender de quantias ainda mais avultadas para garantir níveis de conforto mínimo no interior das habitações e comprometendo a saúde. Assim, nas casas dos mais pobres, gera-se um efeito bola de neve: por terem recursos financeiros limitados vivem em casas mais pequenas e mais degradadas, por conseguinte precisam de gastar ainda mais para tentar tornar a casa mais confortável. Os rendimentos das famílias são, portanto, geradores de importantes desigualdades habitacionais. Mas vamos aos números, porque como diria W. Edwards Deming: “without data, you’re just another person with an opinion.”
De acordo com os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, e usando a média dos anos 2015 a 2019 para diluir eventuais diferenças pontuais de questões estruturais, sabemos que:
- a taxa de sobrecarga das despesas em habitação[1] é de 6,9% na população geral e de 26,8% na população que vive em agregados domésticos em risco de pobreza, isto é, quase quatro vezes mais frequente;
- a taxa de sobrelotação da habitação é de 9,8% na população geral e de 19,1% nos agregados domésticos em risco de pobreza, isto é, cerca do dobro;
- a taxa de privação severa das condições de habitação é de 4,4% na população geral e de 10,2% na população que vive em agregados domésticos em risco de pobreza, isto é, mais do dobro.
Caso esta comparação fosse efectuada entre os agregados com rendimentos mais elevados, em vez da população geral, e os agregados em risco de pobreza, estas diferenças seriam ainda mais notórias. Usa-se aqui propositamente a população geral para que possamos analisar a diferença entre aquilo que será uma situação habitacional média e as condições dos agregados domésticos em risco de pobreza. E essa diferença é mesmo muito grande. Que os pobres vivem em condições habitacionais más não causa propriamente estranhamento, mas o facto de existir uma diferença tão expressiva, leva a pensar que estas pessoas podem não estar a receber o apoio de que obviamente precisam para viver com a dignidade que merecem.
E não se pense que estes agregados mais desfavorecidos são desproporcionalmente arrendatários porque a casa própria “protege” da pobreza. Apesar de, em média, 60% dos agregados em risco de pobreza serem arrendatários, é verdade, aproximadamente 40% são proprietários do alojamento onde residem. Para perceber esta diferença, provavelmente mais pequena do que poderia ser expectável, importa realçar que dois em cada três destes proprietários em risco de pobreza têm encargos relacionados com a compra da casa (empréstimo ou hipoteca). Quer isto dizer que a situação destes proprietários da habitação com encargos não é particularmente vantajosa quando comparada com a dos arrendatários, porque a segurança residencial de ambos está dependente do cumprimento das suas obrigações contratuais, dos primeiros com a entidade credora, dos segundos com os senhorios.
Em jeito de síntese, importa salientar que, em primeiro lugar, há um lado da pobreza habitacional que pode passar despercebido e que precisa de respostas sociais adequadas. Em segundo lugar, que as desigualdades na habitação têm implicações sociais importantes na vida privada e familiar e nas oportunidades dos indivíduos. Em terceiro e último lugar, ter casa própria não oferece especial “protecção” contra a pobreza, sobretudo quando existem encargos relacionados com a compra, colocando assim arrendatários e proprietários perante riscos equivalentes.
[1] A definição desta taxas e das duas que se seguem pode ser consultada aqui.
-Sobre Alda Azevedo-
Alda Botelho Azevedo, doutorada em Demografia pela Universitat Autònoma de Barcelona (2016), é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais e professora auxiliar convidada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, ambos da Universidade de Lisboa. As suas publicações e investigação centram-se no estudo da demografia da habitação e do envelhecimento.