“Ninguém fez mal a Cláudia Simões”. Esta frase não me sai da cabeça desde que a ouvi, no passado 1 de Julho, no Tribunal de Sintra. A partir dela, proponho o seguinte exercício: peguemos na imagem do rosto desfigurado de Claúdia Simões, amplamente difundida na imprensa e redes sociais, e coloquemos essa afirmação como legenda.
Acrescentemos ao texto a informação que consta do relatório de urgência do Hospital Amadora-Sintra, onde, às 22h18 de 19 de Janeiro de 2020, Cláudia Simões deu entrada, e o seu caso foi sinalizada como “muito urgente”. Segundo o documento, citado pelo Expresso e outros órgãos de comunicação social, a paciente apresentava, além do rosto deformado “por hematomas extensos em toda a face, principalmente na região frontal à esquerda, ferida traumática no lábio inferior e superior com pequena hemorragia activa.” A observação clínica identificou igualmente “traumatismo cranioencefálico frontal e trauma facial com edema exacerbado generalizado, edema dos lábios, com feridas dispersas, trauma da pirâmide nasal (…)”.
O retrato, resultante de uma escalada de violência a partir de uma viagem de autocarro – numa sucessão de excessos que pode ser recordada aqui –, foi suficientemente claro para, em 2022, a juíza de instrução do Tribunal da Amadora ter decidido levar a julgamento Carlos Canha, João Carlos Cardoso Neto Gouveia e Fernando Luís Pereira Rodrigues, os três polícias acusados de agredir Cláudia Simões pelo Ministério Público (MP).
Contudo, cerca de dois anos depois de deduzida a acusação, e mais de quatro após os acontecimentos, o Tribunal de Sintra apresenta uma leitura diferente, desligando a gravidade dos ferimentos descritos no relatório médico da acção policial.
Apesar de termos imagens, a partir de um vídeo partilhado nas redes sociais, do agente da PSP Carlos Canha a agredir Cláudia Simões, numa paragem de autocarros da Amadora; e de, nesse registo, a mesma não exibir qualquer hematoma facial; e apesar de ter ficado provado que entre as urgências hospitalares e esse momento apenas houve um ‘desvio’ para a esquadra do Casal de São Brás, a Justiça entende que “ninguém fez mal a Cláudia Simões”. Antes pelo contrário, na leitura da magistrada Catarina Pires, que presidiu ao colectivo de juízes do Tribunal de Sintra – onde o caso estava a ser julgado desde 15 de Novembro, culminando na sentença de dia 1 –, Cláudia fez-se “passar por vítima” para “vir a obter uma choruda indemnização”.
Mais: a juíza fez questão de assinalar que a defesa de Claúdia foi paga pelo movimento anti-racista, sugerindo manobras de instrumentalização ao serviço de uma agenda que vê racismo onde ele não existe. Pior: Catarina Pires dá a entender que acredita na ficção do racismo reverso, ao referir que, entre quem assistiu à actuação de Carlos Canha, se gerou a “preconceituosa percepção” de que se tratava de "violência policial contra uma senhora africana".
A sentença do absurdo, em que por repetidas vezes se sublinhou que a factualidade provada é o que vale em tribunal, prolonga-se em vários juízos de valor e lições de moral, que pintam Cláudia Simões como alguém cuja existência é, por si só, incriminatória. Até com prova em contrário!