Quando em 2007 a RTP1 perguntou ao país quem tinha sido o “maior português de todos os tempos” e se assustou com a resposta, já o comboio de abril descarrilara. Prevalecia a democracia, mas o presságio era claro. Dezassete anos depois, elegem-se para o parlamento cinquenta deputados da direita radical. Nesse mesmo abril, a natureza reage: um mar de corpos inunda a Avenida da Liberdade, em nome desta, em Lisboa. Depois de uma longa manhã de retórica moralista, acusatória e chorona, nesta mesma manifestação, os nossos dirigentes ousaram ainda, reclamar, para si e os seus, as cores e méritos de abril. Nada de novo. Assim é a classe política que nos serve: nem vigilante, nem pragmática, e acomodada nas suas querelas tribalistas. Distante.
Não tencionamos conspirar sobre como aqui se chegou. Queremos, sim, fazer observações inteligentes, de modo irreverente e intencional, sobre onde queremos ir, juntos.
Existindo esta maior preponderância de perspetivas jurídicas e económicas na política, e sendo essas áreas baseadas na persuasão em vez de dados empíricos, é inevitável e até compreensível a dificuldade em encontrar consensos sobre o que fazer da realidade em que vivemos.
É por isso que, em vez de insistirem em narrativas absolutas, os nossos dirigentes deveriam ter maior cultura científica: ter o hábito de recorrer ao tesouro que são os artigos científicos produzidos pelos seus investigadores– reconhecendo, humildemente, o seu potencial – para legislar de modo credível, investir de modo fundamentado e inovar com consciência e visão.
À classe política, que mais disponibilidade e privilégio tem, cabe facilitar e estimular a participação da sociedade civil – fazendo públicos os resultados de grupos de trabalho obscuros, clarificando e encurtando os programas que desenham, divulgando todo e qualquer orçamento, deixando-se de burocracia artefactual e inútil – e a cultivar a sua literacia política, “substituindo a política de café por mais participação na comunidade” – como dizia Ana Gabriela Cabilhas –, ao encher o seu discurso de “objetos de desejo político”, como completava Rui Tavares. Construamos as políticas do futuro com compromisso mútuo, compreensão e sensatez e não desperdicemos recursos preciosos com acrobacias, teatros e jogos políticos.
Dos cidadãos, é preciso mais que slogans: precisamos que cada um empenhe adequadamente os seus esforços pela democracia.
Alcançar um Portugal mais democrático, assim como uma Europa mais democrática, implica dar mais poder aos cidadãos, que devem estar informados e ser críticos o suficiente para conseguir representar a sua vontade de modo esclarecido.
Isto requer, por um lado, o combate holístico à desinformação e a existência de organismos plurais e rigorosos de comunicação social e, por outro, que cada cidadão reflita e questione as próprias informações e crenças delas resultantes. Para que cada um de nós seja capaz de o fazer, é necessário que sejamos progressivamente mais conhecedores do sistema político, da economia, da cultura, da história e da ciência. Temos imensos cérebros entre nós, mas não estamos a cooperar tanto quanto deveríamos para os aproveitar, apesar do uso cada vez mais inteligente das redes sociais pela sociedade civil. Quando vejo tantos milhares de pessoas na rua a berrar cânticos abrilistas, sinto esperança. Mas a esperança desvanece-se quando percebo que pouco passa dos cânticos.
Se por cada “25 de abril sempre, fascismo nunca mais” gritado, conseguirmos um “fala com alguém de outro partido”, um “participa em consultas públicas em áreas do teu interesse” ou sequer um “vai à tua Assembleia Municipal e fala do que gostavas que melhorasse no teu concelho”, a chama da esperança manter-se-á acesa.
Se por cada 1000 vezes que se ouve “o povo é quem mais ordena” houvesse um referendo, ou as massas apoiassem iniciativas legislativas cidadãs locais, nacionais ou europeias, então talvez fosse realmente o povo a ordenar.
Se quem repete “fascismo nunca mais” pensasse também em métodos concretos para combater o fascismo, mais eficazes que chamar facho a quem pensa de forma diferente, talvez conseguíssemos mesmo pôr essas soluções em prática e proteger a democracia. Não basta polarizar o espectro político português, incentivando quem está ao centro a votar à esquerda, já que os partidos populistas conseguem ir buscar votos à abstenção.
Assim, como estamos, não cumpriremos Abril, pois estagnamos na democratização, além de no desenvolvimento. Precisamos de cultivar uma cultura de diálogo construtivo e paciente que nos permita, perante um problema real ou uma opinião com a qual não concordamos, retirar aprendizagens e pontos de convergência, em vez de nos antagonizarmos e fazermos de tudo uma arma de arremesso político. Só assim seremos capazes de levar a classe política a cumprir o seu papel de modo mais sério, mesmo que não esteja para aí virada.