Sondagens e palpites à parte, há, nestas eleições legislativas, uma percentagem expressiva que é fácil de prever: a da abstenção.
Se os resultados seguirem a tendência das últimas décadas, a percentagem de cidadãos que não participam do ato eleitoral será muito superior à dos que efetivamente se deslocam às urnas. Tal não ficará a dever-se apenas à pandemia e ao desencorajamento que as circunstâncias da mesma poderá provocar.
De acordo com dados da PorData respeitantes às eleições em democracia, a taxa de abstenção tem, de um modo geral (e com pequenas excepções pouco significativas), vindo a aumentar cada vez mais. Este fenómeno de crescimento verifica-se tanto em eleições autárquicas, como legislativas ou presidenciais, embora possa ter algumas nuances em cada uma.


Numa primeira leitura, é fácil interpretar estes números como uma evidência do descrédito no sistema democrático, o desinteresse dos cidadãos na política (nomeadamente dos mais jovens), explicado em grande parte pelas vicissitudes dos eleitos, pela corrupção, pelas consecutivas falhas do Estado Social, etc., etc.
Estas considerações – e muitas outras – podem ajudar a explicar o porquê de continuarmos a ter taxas cada vez mais altas de abstenção, mas falham naquele que é o problema principal: o sistema de recenseamento eleitoral vigente e os problemas que os cidadãos estrangeiros enfrentam na hora de votar.
Analisando a tabela, é bastante claro que a taxa de abstenção é mais expressiva nos cidadãos residentes no estrangeiro e isto explica-se, em grande parte, pelas incompreensíveis dificuldades burocráticas que estes continuam a enfrentar. No início desta semana o P3 (pertencente ao jornal Público) divulgou uma reportagem que retrata alguns casos de jovens a viver em diferentes países (Inglaterra, Polónia ou China) e que, apesar das tentativas, continuam a não conseguir votar. Tratam-se de jovens com consciência política e democrática, preocupados em executar o seu dever cívico que não conseguem votar, mesmo esforçando-se para o fazer.
Nuns casos porque o prazo de inscrição já foi ultrapassado, noutros porque é exigida deslocação a um consulado que fica a centenas de quilómetros de distância, noutros ainda porque o serviço postal nunca entregou o boletim de voto, etc. Situações que custa a compreender quando temos ao nosso dispor uma panóplia de tecnologias que permitem aceder a diferentes serviços à distância.
Como portugueses, todos temos um Cartão do Cidadão com um chip eletrónico que facilmente pode ser lido e, desta forma, garantir a viabilidade da votação evitando fraudes. Esta mesma solução chegou a fazer parte de um projeto-piloto da secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas mas não foram revelados resultados, nem tão pouco quaisquer intenções de replicação do procedimento. Além desta, já foram levadas a cabo outras experiências para testar o voto eletrónico, ainda que, nestes casos, os votos não tenham sido considerados na contagem final.
Só por si, esta é uma situação que agrava a taxa de abstenção, mas não é a única.
Há ainda o problema - igualmente difícil de compreender - dos eleitores-fantasma. Pelas contas da politóloga Mariana Costa Lobo, há pelo menos um milhão de eleitores-fantasma, detetados pela discrepância entre o número de portugueses residentes no país (dados dos últimos Censos) e o número de eleitores que surgem nos cadernos eleitorais. Há mais eleitores do que cidadãos residentes elegíveis, basicamente.
Conforme explica a investigadora: “Se contabilizarmos o valor da participação eleitoral utilizando como referência o número de residentes com idade de voto, não estrangeiros em Portugal, concluímos que em 2019, a participação eleitoral nas legislativas foi de 62% em território nacional, em vez de 54% como dizem os números oficiais. Se pensarmos nas presidenciais de 2020, a participação real em território nacional foi 52%, em vez dos oficiais 45,5%. São cerca de oito pontos percentuais em ambas as eleições, o que constitui uma discrepância elevada. O que os dados dos censos mostram é que atingimos uma abstenção técnica demasiado grande para uma democracia consolidada.”
Esta questão é importante não apenas porque afeta a nossa própria percepção da democracia em que vivemos como, em última instância, “esta divergência pode ter consequências sobre a distribuição de lugares por círculo eleitoral, caso os eleitores-fantasma estejam distribuídos desproporcionalmente por círculo o que é muito provável”, conforme explica Mariana Costa Lobo.
E isto quando sabemos – como aliás o Tiago Sigorelho tão bem destacou neste mesmo espaço de opinião – que o próprio sistema de distribuição de mandatos, com base na demografia, acaba por penalizar a representatividade dos territórios mais despovoados.
Está na hora de repensarmos o nosso sistema eleitoral em todas as suas vertentes, tendo em conta o recenseamento, a forma como votamos, as circunstâncias em que tal acontece e a própria distribuição de mandatos. O bom funcionamento da nossa jovem democracia depende disso.
À hora de publicação deste texto os resultados das eleições estão muito longe de ser conhecidos, mas há uma previsão que é quase certa: vai ganhar a abstenção.
-Sobre Sofia Craveiro-
Espírito esquizofrénico e indeciso que já deu a volta ao mundo sem sair do quarto. Estudou Ciências da Comunicação nesse lugar longínquo que é a Beira Interior, e fez o mestrado em Branding e Design Moda, no IADE/UBI, entre Lisboa e a Covilhã. Viveu tempos convicta a trabalhar na área da Moda até perceber que não tinha jeito nenhum. Apaixonou-se pelo jornalismo ao integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber o quanto a informação fidedigna é importante para a vida democrática. Desde essa altura descobriu também que aprecia ser In.so.len.te e que gosta de fazer perguntas para as quais não tem resposta. Encontrou o seu caminho nesta casa chamada Gerador, onde se compromete a suar a alma em cada linha escrita.