Anunciada com estrondo, a “bazuca” europeia deverá ser, afinal, uma arma de fraca potência, no que diz respeito particularmente à cultura, antecipa quem trabalha no meio. Depois de ter sido esquecido na primeira versão do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), este setor acabou por ver reservado para si cerca de 243 milhões de euros, quantia que, dizem os artistas, falha duplamente: é demasiado baixa e será aplicada de forma limitada, deixando de fora áreas que muito necessitam de apoio.
Foi em outubro de 2020 que Portugal apresentou à Comissão Europeia a versão preliminar do seu PRR, documento que definia as prioridades de investimento do país na retoma da economia pós-crise pandémica. Quatro meses depois, já em fevereiro de 2021, uma nova versão do plano foi publicada. Nesse documento, o Governo de António Costa densificava a sua estratégia, mas continuava a ignorar o setor cultural, esquecimento que gerou protestos e críticas.
Numa carta aberta ao primeiro-ministro, divulgada no Público, várias associações e nomes sonantes do meio alertavam que a referida omissão teria “consequências económicas, sociais e políticas de larga escala”. “Numa época em que a coesão democrática é um tema de preocupação transversal, parece-nos um erro grave que o nosso Governo opte por não investir no futuro de um setor tão fundamental para essa coesão”, lia-se nessa mensagem dirigida ao chefe do Executivo.
António Costa decidiu, então, ajustar a trajetória e da versão final do Plano de Recuperação e Resiliência que seguiu para Bruxelas passou, então, a constar um capítulo dedicado à cultura, com uma verba de 243 milhões de euros. São três páginas, num documento que conta com mais de três centenas delas, que explicam que o objetivo é valorizar as artes, o património e a cultura “enquanto elementos de afirmação da identidade, da coesão social e territorial e do aumento da competitividade económica das regiões e do país, através do desenvolvimento de atividades de âmbito cultural e social de elevado valor económico”.
No que toca aos investimentos, estão previstas dois destinos: as redes culturais e a transição digital (há 93 milhões de euros para a modernização da infraestrutura tecnológica da rede de equipamentos culturais, para a digitalização de artes e património e para a internacionalização, a modernização e a transição digital do livro e dos autores) e o património cultural (há 150 milhões de euros para a requalificação e conservação dos museus, monumentos e palácios do Estado, para a requalificação dos teatros nacionais e para a implementação do Programa Saber Fazer).
Quem trabalha no meio critica não apenas o valor reservado para a cultura, mas também as referidas prioridades escolhidas pelo Governo. “O valor parece francamente baixo, mas o problema não é só o valor e, sim, como será aplicado”, começa por sublinhar Nuno Saraiva, presidente da Associação Profissional de Músicos Artistas e Editoras Independentes em Portugal (AMAEI) e diretor da Lusitanian Music Publishing. E atira: “Este plano reduz a cultura, largamente, àquilo que eu chamo a cultura ‘morta’, a que se pendura na parede. Não produz nada de novo.”
Esta posição não é rara no setor cultural. “O dinheiro vai servir para fortalecer instituições que já existem e não para criar novas. Vai ser metido no mesmo sítio e não em novos investimentos”, salienta, por exemplo, Pedro Barateiro, membro da direção da Associação de Artistas Visuais em Portugal (AAVP). E André Sardet, vice-presidente da Associação Espetáculo, Agentes e Produtores Portugueses (AEAPP), enfatiza: “Pelo que nos é dado a conhecer, o valor previsto no PRR será direcionado para aquisição de equipamentos para teatros públicos, bibliotecas, para a Torre do Tombo, entre outros, para a digitalização e para a transição digital. Assim sendo, não se espera que o valor seja usado em programação cultural.”
Na ótica deste último responsável, a aposta está, pois, centrada “numa vertente digital”, ainda que esteja em causa um setor “que tanto precisa de contacto direto entre artistas e público”. André Sardet frisa, no entanto, que a verba reservada, embora aquém “da expectativa do setor”, é “uma vitória”, na medida em que, inicialmente, “pouco estava previsto”. À parte desta leitura, o líder da AEAPP não tem dúvidas: “O PRR não irá ter um impacto relevante na criação artística e nas artes performativas.”
Nuno Saraiva, da AMAEI, partilha dessa leitura. “Infelizmente, pelas linhas anunciadas, [o PRR] não terá impacto rigorosamente nenhum na recuperação do setor empresarial da música e cultura, estando confinado aos museus e outras entidades públicas”, observa o responsável. Em comparação, noutros países europeus, como França, destaca o mesmo, o “orçamento anual para a cultura em 2022 é de quatro mil milhões de euros”. “Em países que reconhecem a cultura viva, esses financiamentos vão para os artistas, para as editoras, para a música, para os agentes, para a indústria que cria riqueza”, acrescenta.
Por sua vez, Pedro Barateiro, da AAVP, explica que atualmente há “alguma imaturidade na maneira como a cultura é vista em Portugal e o Estado tem vindo a usar também essa narrativa”. O artista sublinha que o setor cultural “é claramente uma fonte de rendimento”, mas realça que o investimento tem ficado, de forma sistémica, aquém e o PRR “não é o tapar de todas as feridas”. Em alternativa ao que está nesse plano, o responsável da AAVP defende o fortalecimento dos museus nacionais, que se encontram num “estado frágil” em termos orçamentais. “Um dos exemplos é o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), que depende de um banco para existir e ter programação”, indica.
Das artes visuais para a música, Pedro Pinto Figueiredo, membro da direção da Associação Portuguesa de Compositores (APC), conta que tentou perceber se a restauração de, por exemplo, partituras poderia ser encaixada na requalificação do património prevista no PRR, mas recebeu uma resposta nada animadora. “Verificamos que é só para o património arquitetónico”, adianta. Além disso, nota que a internacionalização e modernização está “muito ligada ao livro e aos escritores”, ou seja, parece que o Governo se “esqueceu dos criadores musicais, que também têm necessidade de modernização e de transição para o digital”.
Caso tivesse estado a seu cargo desenhar o plano entregue em Bruxelas, Pedro Pinto Figueiredo já sabe quais seriam as suas três prioridades, nos investimentos na cultura: criar oportunidades “que não fiquem fechadas nos compositores emergentes” – é particularmente relevante, salienta, dar atenção a quem já não é jovem, mas também ainda não é sénior –, privilegiar os projetos de criadores portugueses e estimular a criação de espaços de apresentação, como festivais. “A Finlândia tem quase todas as semanas [festivais]. Em Portugal, continuamos a ter muito receio de criar festivais com novas linguagens, novas ideias. Há uma tendência muito grande para estagnação ao nível musical”, critica. “É preciso ter festivais apoiados, onde pudessem emergir novos projetos e ideias. É preciso que existam estes espaços”, insiste.
Como está, a “bazuca” não tem na mira essas preocupações, mas está tudo em aberto quanto à ação do próximo Governo, o primeiro em que António Costa terá a maioria absoluta. “O meu sentimento é de otimismo puro e duro, aliado a boas críticas construtivas sem rodeios. Estamos cá para trabalhar juntos”, afirma Nuno Saraiva. “Acreditamos que o primeiro-ministro contribuirá para a dinamização de uma nova fase das vidas de todas as empresas e profissionais do nosso ramo. No entanto, aguardamos para perceber se o novo ministro da Cultura é alguém mais próximo da cultura dos subsídios ou da economia cultural”, atira André Sardet. E Pedro Barateiro remata: “O que os portugueses fizeram foi um ato bastante bonito. É um voto de confiança ao PS, que se não for cumprido vai ser muito grave.”