Seguir o voo
Chega o tempo em que a natureza parece adormecida e, com ela, as abelhas também se recolhem. É o sol e as flores que as acordam. No início de Setembro, Rita Garcia Fernandes, de 31 anos, e Ricardo Leonardo, de 39, colheram, em Sicó - Alvaiázere, o último mel do ano, o Mel do Bosque, de carvalho e azinheira. É em Maio, no Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros, com o Mel de Alecrim, que as colheitas do jovem casal de apicultores começam. Em Julho, é extraído o Mel de Mil Flores, no mesmo lugar, e o Mel de Montanha, na Pampilhosa da Serra.
Apesar de sempre ter vivido na Amora, no Seixal, é nestes últimos campos que Rita se reencontra com os seus antepassados, que neles viveram e deles se alimentaram. Até conhecer Ricardo, nunca se havia aproximado das abelhas, embora elas voassem na sua história, pois os avós eram apicultores.
Ricardo cresceu num ambiente rural, em Porto de Mós, e, desde cedo, observa detalhadamente a natureza. Contudo, o interesse pela vida secreta do interior de uma colmeia, de seres tão ínfimos, mas que suportam a imensidão, que é a possibilidade de se habitar a Terra, foi desperto num workshop, que realizou num fim-de-semana, na Lousã, com um amigo. Começou por procurar terrenos nas Serras d’Aire e Candeeiros, adequados para as abelhas, com alimento e condições que as expusessem, o menos possível, à variação das temperaturas. Para isso, é importante que as colmeias estejam viradas para sul, sobretudo no Inverno. Quanto mais cedo bater o sol, mais tempo têm para recolher o pólen e o néctar, que transformam em mel para se alimentar. É o pólen a fonte de energia que usam para o aquecimento e arrefecimento da colmeia. Quando saem, indicam a orientação do sol às seguintes, através de danças circulares.
Em 2014, Ricardo tornou-se apicultor e tinha cinco colmeias. “Um dos grandes desafios dos apicultores, hoje em dia, é ter enxames, porque as abelhas e os insectos estão na base da cadeia alimentar e tudo as afecta. Começam por ser polinizadores e úteis para termos alimentos, mas também começam por ser alimentos. Com as alterações climáticas, a perda de biodiversidade, há menos insectos no ecossistema. Então, as abelhas sofrem grandes pressões”, diz Ricardo.
Actualmente, tem trezentas colmeias, por si construídas, que abrigam abelhas ibéricas. Todavia, o apicultor faz a ressalva que esta espécie já sofreu algumas alterações, devido à introdução, por parte do ser humano, de outras espécies, de modo a aumentar a produção. Cada enxame é formado por uma rainha, a “única fêmea sexualmente madura, a mãe de todas as obreiras, dos zângãos e futuras rainhas” que “nasce de um alvéolo especial — alimentada com geleia real — e pode viver entre 2 a 4 anos”, sendo “fecundada uma vez na vida — em voo e por vários zângãos — e chega a pôr dois mil ovos por dia”; as obreiras, cujo número varia “entre 20 e 80 mil,” que escolhem a rainha, através da alimentação, e “constroem os favos, cuidam da criação, gerem a saúde da colónia, defendem a colmeia, procuram, recolhem e armazenam alimentos (pólen e mel)”, e no “pico da produção primaveril, vivem entre 15 e 40 dias” e , no “Inverno, duram alguns meses”; e os zangões que podem existir em milhares na Primavera, vivendo entre 20 a 30 dias, e, no Verão, 90 dias, e “só servem para garantir a fecundação das futuras rainhas”, após a qual morrem, lê-se na infografia, “O mundo das abelhas”, publicada no Público, a 30 de Maio de 2020.


“O néctar que a abelha recolhe vai para o seu estômago, onde, por via do trabalho de enzimas, começa a ser transformado em mel. Quando a abelha chega à colmeia, transfere o preparado do seu estômago para o estômago de outra abelha. E é esta que, ao fim de 20 minutos, vai regurgitar o composto açucarado e colocá-lo nos alvéolos. O composto açucarado colocado nos alvéolos não é ainda mel porque tem mais de 50% de água. Só é mel quando o teor de humidade está abaixo dos 20%. E isso acontece porque as obreiras controlam a temperatura e a humidade na colmeia. Conseguem-no batendo as asas, criando assim as condições ideais de evaporação da água. Quando o que está no alvéolo é finalmente mel, as abelhas selam a célula com cera”, continua.




A formação da rainha depende da vontade das obreiras de aumentar, ou não, a população, e “cada enxame tem a sua personalidade”. “Como o nosso clima é muito instável, pode correr esse risco cedo demais e, depois, pode vir frio e morrer, porque não tem reservas. Ou pode não correr esse risco e não ter população suficiente. Pode haver muita floração, mas não ter abelhas suficientes para fazer a quota do mel”, explica Ricardo. Apesar de defender o mínimo de intervenção possível, por parte do apicultor, reconhece que, neste sentido, este pode interferir para equilibrar as colmeias, tirando quadros de mel das que não correram o risco e têm reservas, apesar de menos abelhas, inserindo-os naquelas que as esgotaram.
Chegar ao bosque
Quando Rita e Ricardo se conheceram, levaram colmeias para a Pampilhosa da Serra. Parte das suas abelhas foram resgatadas por Ricardo, que é frequentemente chamado para socorrer ninhos que se encontram em locais prejudiciais para estas ou para os seres humanos. O transporte é feito à noite. “Como as abelhas, durante o dia, vão buscar os alimentos às flores, não as podemos transportar nessa altura, porque a maioria ficaria no campo. Só estaríamos a levar uma parte do enxame e a outra ficaria sem abrigo. Esperamos que todas regressem a casa. Colocamos uma tampinha na caixa, para que não saiam, mas respirem, consigam viver lá dentro”, descreve Rita. Chegando à Pampilhosa, um novo mel surgiu, uma vez que a alimentação das abelhas foi alterada, sendo multifloral, com predominância de urze e rosmaninho.


Ricardo trabalha em restauro de edifícios e dedicava-se à actividade apícola, sem fins comerciais. Contudo, havia temporadas que faltava ao seu trabalho, para poder deslocar-se até ao campo e cuidar das abelhas. Apesar de ser um investimento sem retorno, não queria abdicar deste esforço, porque sabia as consequências disso. “Sabes que, se não equilibrares as colmeias, elas vão mesmo morrer.” Perante este cenário, o casal decidiu criar a marca Beijo do Bosque, em 2019.


“A opção era: ou continuas a dedicar imenso tempo e vendes o mel aos amigos, aos vizinhos, mas algo muito amador, ou tentamos dar o passo seguinte, que é criar a nossa marca, criar algo nosso.” Com uma profunda relação afectiva com a natureza e preocupação com a sua protecção, o Beijo do Bosque é, sobretudo, uma forma de “educação ambiental”. “O próprio nome remete para esse universo. Não se trata apenas de produtos. Queremos apelar para a preservação do bosque português, tentar aproximar as pessoas, sensibilizá-las para a importância das abelhas para todo o ecossistema,” apresenta Rita. “Um dos grandes problemas é que em zonas que não sejam tão selvagens e que só têm agricultura, quando começa a Primavera, e os campos se enchem de flor, as pessoas vêm com pesticidas e matam tudo. E as abelhas ficam sem comida. Isso é uma das nossas preocupações. Daquilo que ninguém dá valor, existe muita coisa que se pode tirar”, completa Ricardo. Acrescentam-se os bolos Beijinhos do Bosque, feitos com o mel da produção destes apicultores, e alecrim, das Serras d’Aire e Candeeiros, as infusões, os temperos e, neste Natal, surgirá o licor de mel. Desejam chamar mais o bosque e começar a introduzir frutos secos e objectos em madeira, por exemplo. Porém, as abelhas já podem iluminar a casa. As velas são feitas de forma manual, “livres de parafina, logo não são tóxicas e são cem por cento naturais. A sua combustão é limpa e mais lenta do que o habitual”, descrevem.




A esta ética alia-se uma estética, que se distingue “daquela imagem tradicional preta e amarela, da abelhinha.” Consideram que o mel é um produto muito desvalorizado, porque, muitas vezes, é falsificado. Assim, uma nova forma de o comunicar também visa fazer-lhe justiça, bem como aproximá-lo dos públicos a que o imaginário colectivo não se lhes associa, os jovens e as mulheres. “As pessoas tendem a dar mais credibilidade aos apicultores mais velhos do que aos mais novos. Queríamos mostrar que os jovens também se podem interessar por prácticas que envolvem a natureza. Para além disso, é uma actividade que tendemos a pensar que é para homens. Queríamos aproximar as mulheres deste universo,” expressa Rita. São precisamente elas que mais procuram a marca, acompanham-na nas redes sociais, representando cerca de oitenta por cento dos seus seguidores, e entram em contacto, manifestando “curiosidade em relação ao trabalho no terreno. E a maior parte do nosso público também é citadino. Acho que há uma grande necessidade de se aproximar da natureza. As pessoas precisam de natureza nas suas vidas. Algumas estão tão desconectadas, ou, mesmo por força das circunstâncias, são obrigadas a estar mais longe da natureza e, quando damos essa possibilidade de se aproximarem, adoram.”


Rita e Ricardo não conhecem outros apicultores mais novos. No que diz respeito ao preconceito com a faixa etária dos apicultores, sentem-no em circunstâncias de contacto directo com o público, em feiras e mercados. “Até acham que não somos nós que fazemos tudo, que há alguém mais velho por detrás, que nos ajuda ou que vai ao campo, que lida com as abelhas, e que nós estamos mais responsáveis pela parte visual”, conta Rita. Para além da apresentação, muito distinta do habitual, estranham a cor do mel. “Hoje, tivemos uma situação engraçada, na feira. Uma senhora ia comprar-nos mel. A filha ficou mais atrás e estava reticente. Nesta feira, existe outro vendedor de mel, um senhor mais tradicional, e ela disse que estava ali mel mais normal. Como não é o típico frasco de mel… Isto é que é o normal. Já não existe muita floresta de carvalho e azinheira, em Portugal. Também fazia parte dos nossos fundamentos, ter abelhas em sítios de floresta autóctone portuguesa. Não temos, por exemplo, mel de eucalipto, nem de girassol, que é o que as pessoas acham mais normal, porque existe em maior quantidade.” Ricardo evoca ainda outro episódio. “Mostrei este Mel do Bosque, que é de carvalho, que não é feito de flores, o que cria logo desconfiança. No fim do Verão, este néctar escorre das folhas ou das bolotas dos carvalhos. Resulta de uma relação de simbiose entre outros insectos e as próprias árvores. Expliquei isso a uma senhora, que foi mostrá-lo a outro apicultor e disse ‘eu comprei isto. Será que me engaram?’”.
A insegurança vem do desconhecimento, da distância. “Ouvimos de tudo, nos mercados. Desde pessoas que acham que o mel não é feito pelas abelhas, que, no mel de alecrim, somos nós que adicionamos um extracto de alecrim…. Já nos perguntaram se as cores variam de acordo com a espécie de abelhas que produz, ou seja, se uma espécie faz com que o mel fique escuro, e outra, claro. Depois, ainda há a questão de ser um produto de origem animal… Há pessoas que pensam, automaticamente: é mel, exploram as abelhas”.
Todavia, o cuidado na partilha do processo e do pensamento que o nutre, têm sido pontos que iluminam o Beijo do Bosque. “Lidamos com apicultores, para quem a abelha é um meio para chegar ao mel. Há apicultores que não estão preocupados se as abelhas estão felizes, ou não. Não somos só mais uma marca de mel. Noto que há um trabalho que já tem vindo a ser feito, nesse sentido. Há pessoas que nos procuram e dizem que compram o nosso mel porque as abelhas são livres e felizes.”
Ficar em casa
Depois de uma longa viagem de carro, onde a paisagem mostrava os sinais da aflição, tomando o fogo o lugar da vida, os apicultores chegaram à Pampilhosa, o último lugar que procuraram ser casa para as suas abelhas. Aquele caminho, no sentido da serra, abriu um encontro mais profundo. As abelhas, do espaço de Ricardo, chegavam à terra, a que Rita sempre quis voltar, talvez porque nunca tivesse deixado de estar lá.


“Foi começar uma história nova, no sítio onde os meus avós viveram, os meus pais nasceram e cresceram. Parece que estamos quase a repetir os passos das pessoas que existiram antes de nós, na minha família. Depois, ver a minha mãe a dizer ‘os avós iam ficar tão contentes, se soubessem que vocês estão aqui, a fazer isso’…. Houve um lado emocional associado a este trabalho. Achei que fazia sentido demonstrar isso com aquilo que me é mais natural fazer, que é escrever. Foi daí que surgiu a ideia de partilhar o poema. Um poema em homenagem aos meus avós.”
Os habitantes da Pampilhosa sentiram-no. Descansaram ao saber que “há uma nova geração de apicultura, que está ali a chegar, quando aqueles lugares ficaram completamente desertificados. É uma nova esperança para as pessoas dali.”


Vivendo a relação com a terra, como uma relação poética, Rita e Ricardo, enviam, juntamente com o Mel de Montanha, o poema, que, tal como o primeiro, ainda causa estranheza, o que nos diz o quão longe estamos de casa. Por isso, creem que não podem ser apenas uma marca de mel, mas um beijo do bosque.
*Artigo escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico
Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografias de Rita Garcia Fernandes e Ricardo Leonardo