A pandemia apanhou a meio o processo de escrita e preparação da Revista Gerador 31. Todas as entrevistas que preferencialmente seriam feitas de forma presencial tiveram de passar por alternativas que já tínhamos, mas que usávamos como secundárias. Foi assim que, a meio de março, preparámos uma peça sobre a cultura drag em Portugal e que logo descobrimos ser um universo com muitas camadas por explorar, em que o limite de caracteres e o contexto não permitiriam abordar um todo. Também por isso acabámos, desta vez, apenas por convocar as vozes de drag queens e deixar a ponta solta para, numa próxima, aprofundarmos o universo de drag kings.
Por e-mail e whatsapp conversámos com Bruno Cunha (Camel Toe), a partir de Itália; Tiago Santos (Stefani Duvet), a partir de Inglaterra; e Simão Teles (Symone de Lá Dragma), a partir de Portugal, mais concretamente de Pontével. Os três acabaram por se tornar protagonistas de uma história que os une nos seus pontos de convergência, mas que dá espaço às naturais divergências de pensamento, opinião e personagem. Hoje, falamos um pouco mais sobre como Camel Toe, Stefani Duvet e Symone de Lá Dragma chegaram ao transformismo e convocamos o que ficou por dizer na reportagem que poderás encontrar na Revista.
Camel Toe, a personagem que nasceu para “lutar por um espaço retirado” a Bruno Cunha
A andar pelas Galerias de Paris ou a atuar na discoteca Zoom, no Porto, de saltos altos e com a barba cheia de glitter. Foi mais ou menos assim que a presença de Camel Toe se tornou impossível de ignorar e uma referência para quem deambula pela noite da cidade Invicta. Há algum tempo que não ouvíamos falar de si e não nos cruzávamos consigo na rua, e, por isso, o primeiro contacto surgiu hesitante. Foi assim que percebemos que Bruno Cunha agora vivia em Itália, mas garantiu-nos que “a Camel Toe continua disponível para uma conversa”.
Foi em 2012 que decidiu assumir publicamente que “o feminino pode viver em vários corpos, e que é muito importante marcar isso”. “A Camel Toe surgiu de uma necessidade minha de criar um espaço, de lutar por um espaço que me foi retirado, tanto por ser uma pessoa queer, como por ser uma pessoa criativa. A Camel Toe é a junção desse mundo drag que eu conheci e que me despertou muito interesse pela possibilidade de criar não só o psicológico de uma personagem, ou seja a sua personalidade, mas também toda a parte física — o vestuário, as perucas, os acessórios, a maquilhagem, as performances; tudo isso me dá uma possibilidade criativa enorme”, conta Bruno.
Durante toda a sua vida, Bruno esteve “rodeado por mulheres guerreiras, que passaram por coisas inacreditáveis e continuavam não a viver, mas a sobreviver, e conseguiram ultrapassar tudo”. Foi também por elas que criou Camel Toe, e, em sua honra, que assumiu desde o começo um caráter ativista. No mundo drag, as suas referências são Agata Top, “uma performer incrível” e que estava num dos primeiros shows a que assistiu; Lily Prosac, com quem trabalhou e cresceu lado a lado; e Stefani Duvet, “uma das mais incríveis portuguesas a nível de performance”; e Rebeca Bunny, pelo “estilo visual e performático”.
Bruno não esconde o impacto que RuPaul’s Drag Race, série televisiva criada pela drag queen RuPaul nos Estados Unidos, em 2009, teve no seu caminho e reconhece que foi também RuPaul uma das responsáveis em levar “a cultura drag para o mainstream”. “Agora as drag queens estão em todo o lado, em toda a parte. Mas acho que o movimento é, cada vez mais, sair da cultura noturna, porque estava lá por ser uma coisa não aceite, até mesmo pela própria comunidade queer — e é na noite que esse tipo de coisas, não tão bem vistas, surge. Mas agora, o drag está a começar a ser cada vez mais uma coisa que toda a gente quer fazer. Isso vem não só da própria emancipação das queens, de começarem a participar em mais eventos, como também da mentalidade; das pessoas começarem a frequentar os shows e quererem ver mais e conhecer mais”, acrescenta.
Lembra-se de quando “as próprias discotecas e bares não queriam muito ter drag queens” e que quando as contratavam “nem sequer punham os nomes no cartaz”. “Eu recordo-me de começar a trabalhar no Zoom e nós éramos a razão pela qual muita gente ia ali, mas nunca estávamos no cartaz, nunca diziam que estávamos ali; agora é o principal.” Ainda que tenha entrado no transformismo por questões de ativismo, Bruno sente que “o movimento drag está mais perto da performance, um bocado só para show off”, mas menciona Fado Bicha como um bom exemplo daquilo que é usar a performance como ferramenta ativista.
O que significa ser drag, em Portugal, hoje?
“São performers, são artistas, são atores e atrizes também; são pessoas que estão a trabalhar. Ainda falta chegarmos ao nível de encarar como uma profissão, como se encara um ator de telenovela ou de filme, esse tipo de trabalhos. É uma personagem e tem um trabalho de a criar por detrás que não é fácil de fazer. Em geral, há um maior reconhecimento da cultura drag, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Eu acho que de todxs xs drags [queens e kings] que eu conheço em Portugal, 3 ou 4 têm um contrato de trabalho; o resto é tudo às escondidas, os pagamentos. Se alguém quiser seguir esta profissão, não tem nada. É tudo feito um bocado aos pontapés.”
Stefani Duvet, “o outro lado de Tiago Santos”
Esteve na capa da revista da Cristina Ferreira, mas já antes disso era reconhecido pelos seus pares. Com apenas 21 anos, Tiago Santos mergulhou na cultura drag no Finalmente, aos 17, quando descobriu o “Lugar às Novas”. “Nunca saberia que, passados dois anos, iria fazer parte do elenco de luxo de Portugal, junto aos nomes mais respeitados e conhecidos, como Deborah Kristal, Samantha Rox, Jenny Larrue e Nyma Charlles. Foi um sonho tornado realidade, e uma escola que me ensinou e me deu aquilo que tenho hoje. A Kelly Kiss, que lá trabalhava, acabou por se tornar na minha madrinha drag, e foi uma referência para mim, na altura. Depois de eu entrar no elenco, todos os meus colegas eram as minhas referências”, partilha.
Stefani Duvet é “o outro lado de Tiago Santos”; “é tudo aquilo que eu não consigo fazer/não me sinto à vontade de fazer no meu dia a dia”, conta. O nome Stefani deriva da sua maior inspiração: Stefani Germanotta, mais conhecida por Lady Gaga.
Além de ter integrado o elenco do Finalmente, Stefani comunica através da sua conta no Instagram, onde vai partilhando diferentes looks, e de um canal no YouTube, em que dá a conhecer um pouco mais de si. “Neste momento, a Internet é o nosso maior emprego”, diz. É a partir da Internet que pode estar em contacto com os seus seguidores, mas também onde tem a oportunidade de criar proximidade com o seu universo, dando a ver mais de si do que o que se pode ver em palco. Esta passagem da cultura drag para uma dimensão mainstream, ou mais popularizada, acredita que se deveu à “febre do RuPaul e da Pabllo Vittar”, que contribuíram muito para que “o mundo drag pudesse ser realçado e, sobretudo, afirmado.
Por muito que acredite que hoje se quebre cada vez mais preconceitos, sabe que “ainda há pessoas que não aceitam”. A viver em Londres desde outubro, acredita que tem um contexto favorável para que se possa exprimir e ser quem quer ser — talvez mais do que em Portugal. “Acho que Portugal ainda tem de crescer mais nesse aspeto. Ainda não estaria pronto para um programa estilo ‘RuPaul’s Drag Race’, mas sem dúvida para receber mais espetáculos internacionais, como recebeu o ano passado (2019) no teatro Tivoli BBVA, o espetáculo das Queens do RuPaul”, refere.
Sentes que o movimento drag em Portugal se aproxima mais da performance artística, do entretenimento ou do ativismo?
“Tal como em qualquer outro país, existem esses 3 tipos de expressões. No entanto, o que é mais comum, de momento, é ao nível do entretenimento. Em simultâneo, passamos uma mensagem de caráter ativista, ou simplesmente artístico”.
Symone de Lá Dragma e o poder de “transformar a dor das palavras em arte”
“Na altura, eu tinha acabado o curso de teatro, e como fui espezinhado pelas pessoas do teatro por ser muito feminino e queria era fazer femininos e interpretar apenas papéis designados apenas para mulheres, o teatro não se abriu para mim. Como eu gostava tanto do mundo do espetáculo, do contacto com o público e vivia muito esse frenesim, decidi que tinha de optar por algo relacionado com isso. Nessa altura, comecei a frequentar algumas casas, uma delas foi o Finalmente, em Lisboa, e foi aqui que comecei a ver pela reação do público que isto de ser drag queen, transformista, travesti, tinha alguma finalidade. Que isto poderia tocar às pessoas”, começa por contar Simão Teles.
Quando Simão participou no programa de televisão The Voice, em 2016, Symone de Lá Dragma ainda era uma personagem recente, mas já tinha alguma história por trás. Tudo começou numa noite no Finalmente, na altura com “16 ou 17 anos”, onde foi sair com uns amigos. Tudo indicava que seria apenas uma noite, em que assistiriam a um show, mas Simão destacou-se entre o público do Finalmente e foi chamado por Deborah Kristal (Fernando Santos). “Perguntou-me quem é que eu era, de onde é que eu era e o que fazia. Eu disse que estudava teatro e depois também disse que tinha aulas de canto. Então ela [Deborah Kristal] disse - ‘cante lá um bocadinho’. Eu cantei um trecho de “La vie en rose” da Edith Piaf, ela disse ‘muito bem’, mas ficou por ali. Entretanto eu vim para casa, fascinado com aquilo que eu tinha acabado de ver, porque nunca tinha visto um show de transformismo na vida; aquilo para mim era adrenalina”.
A passagem para Symone não foi imediata, porque “tinha vergonha de ser um desgosto para a família”. Perguntou a Fernando Santos (Deborah Kristal) se, por acaso, podia cantar no Finalmente enquanto Simão, e recebeu um “sim” como resposta. Entretanto, chegou agosto, acabou o curso, e em dezembro recebeu um convite de Fernando para atuar na Gala Abraço. “Antes de ir, e foi mesmo uma coisa de última hora, pensei, a Gala Abraço é a Gala dos Travestis, eu não vou para lá de homem; não vou. Vou arriscar. E se durante toda a minha vida tive o apoio da minha família, agora será mais uma vez. E assim foi. Fui para a Gala Abraço vestido de mulher, com um vestidinho curtinho preto, com uma casaca de flores, super mal pintado — parecia um palhaço, ainda hoje pareço, mas na altura parecia um palhaço borrado — fiz o ‘This is My Life’ da Shirley Bassey, e foi aí que se deu o clique que isto do travesti podia ser alguma coisa, porque nessa noite ganhei o prémio de melhor atuação da Gala Abraço”, partilha Simão.
A participação no The Voice evidencia o mais óbvio: a voz é o que diferencia Symone de Lá Dragma. O seu repertório compõe-se com outras artistas que “fazem do sofrimento delas, arte” e, assim, transforma também a sua “dor, solidão e tristeza em arte”. Entre elas estão Maysa Matarazzo, Shirley Bassey, Liza Minnelli, Barbra Streisand, Isabel Pantoja ou Judy Garland. Mas não é só a voz em forma de canto que a define: “eu acho que, acima de tudo, apesar de a minha voz ser o que me diferencia, o que me caracteriza é a minha frontalidade e o não ter medo de dizer o que penso ou o que me vai na cabeça, apesar de isso, às vezes, ter algumas coisas negativas. Já fiz algumas inimizades assim, por ser tão frontal. Mas quando as coisas têm de ser ditas, são ditas na hora e no momento, de cabeça quente”, conta.
Enquanto Symone ou Simão, não tem papas na língua. Confessa-nos que sente haver “um role model do que é ser drag queen” e que, por norma, “nem todas têm as mesmas oportunidades”. “Uma drag queen que seja o estereótipo de queen de RuPaul tem muito mais oportunidades, tanto [em shows] de dia como de noite, do que uma queen como eu, que não dá importância à maquilhagem — é apenas mais um ponto em mim —, que dou vontade à atuação e àquilo que eu faço, enquanto essas queens vivem muito do look. E infelizmente, como vivemos numa sociedade em que a beleza e o que se vê é o que importa, não o que se tem, essas queens têm muito mais oportunidades.”
É nesse sentido que acredita que “a mentalidade das pessoas abriu para um certo tipo de queens, que são as queens de RuPaul” — mas está seguro do caminho que tem vindo a fazer. Conta que o que mais gosta nos shows de transformismo é “o contacto com o público” e de “passar algo às pessoas”: “quando vou atuar, quero sair daquele sítio em que estou e que as pessoas no fim digam - ‘valeu a pena, porque aprendi isto’, ou ‘resolvi este tal problema que tinha na minha vida’, ou ‘aquela música fez-me lembrar alguém, e se calhar tenho coisas para resolver com essa pessoa’. Gosto de ter essa interação com as pessoas.”
Achas que há um reconhecimento da cultura drag? Se não, de que forma é que achas que esse reconhecimento e respeito se manifestaria?
“Se eu acho que há reconhecimento de toda a comunidade drag? Não, não há. Portugal é um país que vive de máscaras; nós vivemos de máscaras e de padrões. Então, há algumas [queens] que realmente têm reconhecimento e outras não. Eu sinto que sou uma dessas pessoas, sinto que o meu trabalho não tem reconhecimento por eu não ser bonita, por exemplo. E bonita é tão relativo, não é? Apesar de eu me achar bonita, eu sei que aos olhos de muita gente, não sou bonita. Não sou a queen de RuPaul, que grita ‘yes giiiirl’, depois faz uma espargata e atira-se para o chão. Não sou essa pessoa. Por isso, para mim, o reconhecimento de todas as queens, devia começar por sermos todas englobadas no mesmo grupo. Não sermos distribuídas em padrõezinhos de feia, rica, pobre, bonita, bailarina, cantora… não, deveríamos ser postas todas no mesmo lugar, e termos todas as mesmas oportunidades. Porque o que eu acho que falta, para muitas de nós, são oportunidades.”
Symone de Lá Dragma integrou o elenco de Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre, de João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira
Durante esta semana convocamos novamente as vozes da reportagem “No Palco da Cultura Drag, canta-se o orgulho de sermos nós mesmxs”, publicada na Revista Gerador 31. Podes saber mais sobre a semana temática da cultura drag aqui, e encontrar a revista em que esta reportagem foi publicada aqui.