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Cantar em português um canto sem língua – Entrevista a Mariana Root

Foi num fim de tarde intimista, entre prados e florestas próximas do Lago de Constança,…

Texto de Redação

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Foi num fim de tarde intimista, entre prados e florestas próximas do Lago de Constança, na Suíça, que uma jovem portuense juntou num mesmo palco um charango dos Andes e um adufe da Beira Baixa.

Chama-se Mariana Root e pertence a essa geração de músicos que busca as raízes portuguesas e as reaviva com linguagens e paisagens do mundo. Depois de países como Noruega, Alemanha, Áustria, Israel ou Turquia, levou no final de Julho pela primeira vez a sua música ao “coração da Europa”. Durante hora e meia, no arranque do festival Pachamama, o público partiu numa surpreendente viagem cantada amiúde em português.

Mariana andou dois anos a explorar a cultura e os saberes indígenas no Peru, onde nasceu o primeiro disco, Solay. No segundo, Coração emRaiz, as melodias nascem da tradição lusitana e das vivências com as adufeiras da Beira Baixa. Uma busca em duplo sentido, que a faz enraizar e partir voando.

Caída a noite, antes de a Mariana partir de regresso a Portugal e atuar no festival Terra Mãe, o Gerador puxou dum tronco e sentou-se à conversa, sob a chuva miúda, junto ao crepitar duma fogueira.

Gerador - Como está a ser esta primeira aventura na Suíça?

Mariana Root - Sinto que está a ser um encontro com o coração da Europa. É como se estivesse nos Andes da Europa, onde há uma força muito grande da Terra, onde a força das montanhas se faz sentir. E onde há montanhas há água, e onde há água há vida. Por isso lhe chamo coração, coração da Europa. Estou a ser muito bem recebida neste festival. Tenho visto muito abertura para a minha música, muita ressonância, respeito e admiração. Estão a ser dias bem intensos, de muita aprendizagem, muitos estímulos. No encontro também com os meus amigos suíços, que já são família.

G. - Passaram alguns dias juntos antes de vir para aqui...

R. - Estivemos em Ticino, perto da Itália, num povo pequenino com vista para um lago gigante, o Lago Maggiore. Fez-me lembrar as nossas aldeias, tipo Monsanto. É uma aldeia muito característica, com muitos detalhes artísticos, e onde já se fala italiano. Só com o facto de se falar numa língua latina, a vibração é completamente diferente. Na viagem de Zurique para lá passei por montanhas, neve, calor, tomei banho em muitas águas transparentes. Muita natureza, muito viva aqui.

G. - No concerto cantaste muito em português. Porquê essa escolha? Como é cantar em português para esta malta?  

R. - Sinto que cantar em português é grande parte da minha missão com a música. É o que me chama, o que me move cá dentro. Trazer esta cultura ao mundo... Já me perguntei qual será o impacto nas pessoas, pelo facto de não perceberem literalmente o que está a acontecer. Mas de facto a música não vive das palavras - vive da frequência que se cria. E as pessoas recebem a mensagem. Mesmo que não seja mentalmente, com o entendimento das palavras, é com o espírito, com a sensação, com a vibração, com a viagem que têm, com as imagens a que lhes remete, com as paisagens que crio. É uma mais-valia da minha música, e da música em geral, a música que carrega sentimento e alma: pode ser ouvida em qualquer lado do mundo, que vai ser entendida de várias formas diferentes. Sim, neste concerto a minha escolha foram vários temas em português, também coisas novas que ando a criar para um novo disco que quero gravar em português, e ainda muitas improvisações. E quando improviso muitas vezes sai em português.

G. - Falando em vibração... Tu tocas o adufe. Gostava de saber um pouco sobre a tua relação com esse instrumento. Como o descobriste? O que sentes ao tocá-lo?

R. - O adufe tem um impacto muito especial na minha vida, desde há uns três anos. Voltava pela primeira vez do Peru, depois de um ano e meio fora, quando o conheci, em Monsanto. É um instrumento muito antigo, que me remete essa história que vive nele, e ao mesmo tempo é um instrumento com muito espaço para criar novas coisas e para eu explorar novos sons da minha voz, novas melodias, novos ritmos. Sinto que é um instrumento tão simples que tem um mundo enorme para explorar e desenvolver. E é sempre um impacto muito grande nas pessoas ver um instrumento quadrado, uma percussão quadrada, porque não é usual. E quando sabem que o adufe é tradicionalmente construído e tocado pelas mulheres... É um instrumento que me traz à terra, traz-me o elemento terra, raiz.

G. - Desse tempo passado em Monsanto, há histórias que tenhas vivido que te venham à memória?

R. - Foi um tempo muito especial. Fui nessa aventura com um companheiro da música, o Edgar Valente, cantor dos Criatura, uma grande banda portuguesa. E assim que cheguei a Monsanto uma das adufeiras, a dona Maria Amélia, ouviu-me a cantar e disse-me que eu parecia a Catarina Chitas [pastora e adufeira natural de Penha Garcia, falecida em 2003, registada nomeadamente por Michel Giacometti para a série da RTP “Povo que canta”]. Para mim foi um grande impacto, porque é uma voz que mexeu muito comigo quando a ouvi. As adufeiras agora já praticamente não ensaiam e, justo nessa noite em que chegámos, estavam todas juntas, e estivemos a tocar horas com elas. Foi muito forte sentir na pele e nas entranhas o que é o adufe e o que são os cantos. No dia a seguir já estávamos a cultivar com a dona Adozinda, uma das adufeiras, que vai todos os dias para a sua a horta com o seu marido, comer presunto e cantar - ouve-se a quilómetros de distância! Foi muito forte conhecer essa mulher, com um sorriso na alma, a única que ainda trabalha a terra. E cada uma das adufeiras tem a sua magia, são todas muito carinhosas e inspiradoras. Foram dias de vinho, de queijo de cabra e pão na mesa, e muitos cantos - e a sentir mesmo o poder daquela terra, daquelas pedras gigantes que cantam, daqueles pores-do-sol no castelo. E sentir também que os jovens são muito bem-vindos a vir aprender com elas.

G. - E a palavra raiz, que te é assim querida e que adotaste para o nome (root, raiz em inglês). O que significa?

R. - [Suspiro] Raiz... O meu nome verdadeiro é mesmo Rute. O nome Root nem foi começado por mim. Aconteceu. E de repente fez todo o sentido. Raiz para mim é de onde vimos. Vem desde o coração da terra, até onde nascemos, onde é que a nossa alma decidiu encarnar, ganhar um corpo físico. E isso toma muita força no nosso caminho. Sinto que todos os nossos ancestrais - árabes, celtas... toda essa grande mistura que deu o povo português - são as nossas raízes. E ao mesmo tempo, sinto que há uma raiz que abraça uma identidade mais universal, como filhos dum ser que está vivo que é o planeta Terra. Essa raiz está dentro de nós e podemos recorrer a ela, só pelo facto de nos sentirmos parte deste todo. E sinto que sem raiz não há espírito, e vice-versa. Como integrar essas forças, terra e céu, feminino e masculino... Eu, que viajo muito ultimamente, preciso sempre de trazer esta força das raízes onde quer que esteja para me sentir parte de algo, sentir-me aqui, nesta Terra. E a nível musical interessa-me muito a pesquisa das raízes, ouvir os instrumentos tradicionais, as melodias ancestrais. Porque antigamente os nossos ancestrais ouviam as melodias da terra, tinham outra conexão com ela, não estavam tão distraídos com coisas que agora nos bloqueiam um bocado os sentidos. Então eu gosto muito, muito de me inspirar em música mais ancestral.

Tocando o charango no Vale Sagrado dos Incas, nos Andes peruanos, © Página da Mariana Root

G. - Essa conexão é algo que vês em comum na música tradicional nos Andes e na Beira Baixa?

R. - Sim, total! E é incrível como há parecenças... Há umas flautas nos Andes que eu percebi que também há em Portugal, e a maneira como lá tocam um tambor é igual... No fundo, o que nós agora chamamos de raiz também já foi uma inovação em algum momento. Então como ir mesmo à raiz da música? Isso são mesmo os primórdios, não eram estas melodias. Aliás, músicas que eu possa compor agora, daqui a muitos, muitos anos podem ser coisas tradicionais, quem sabe?

G. - É algo vivo…

R. - Sim, é uma tradição viva. Para mim essa é a magia: beber da tradição, e depois co-criar com o presente momento. Deixar que o presente momento fale por si. E não ficar só atado à raiz, porque depois a raiz morre, as tradições morrem. Muitas pessoas nas aldeias já não cantam, por não se identificarem com os cantos, por serem o mesmo há tantos anos.

G. - Parece que há um certo hype hoje em dia com a Índia e a América do Sul, com imensos jovens europeus a utilizarem elementos destas culturas, numa procura de referências. Como vês isto de pegarmos em referências doutros povos?

R. - É verdade. Está a haver um movimento gigante. Eu sinto que faz parte do momento da história em que estamos: o tempo colibri, o tempo do beija-flor. Fala-se muito disso nas culturas da América. É a profecia da águia e do condor, que é a união dos povos do norte e do sul, o norte a representar a mente, o sul a representar o coração - a ciência e a arte, o amor e o conhecimento. Sinto que nós, estas gerações, estamos a sentir muito essa missão de expandirmos como filhos da terra. Muita gente nem se identifica com as suas raízes. E a questão aqui na Europa é que é muito mais difícil termos acesso a uma sabedoria ancestral, por causa da religião, de todo o modernismo e desenvolvimento tecnológico, que matou muito do que é a nossa conexão. Para mim, a América Latina é neste momento uma escola, uma inspiração, onde aprendo a aceder a certos tipos de vibração. Mas tenho muito claro que essa vibração é depois para eu adaptar ao que está vivo na minha terra, onde eu estou, onde eu estiver. É super importante cada pessoa sentir o seu coração e, mais do que querer ser como aquele ou aquela cultura, encontrar a sua autenticidade. Porque cada pedaço de terra tem o seu espírito, a sua vida, as suas formas. Com muito respeito por essas culturas a que vamos beber, que elas sejam uma inspiração para nós próprios escutarmos o que está vivo na nossa terra. A verdade é que estamos a criar uma nova cultura, que funde várias inspirações e várias fontes, várias vivências e experiências. Por exemplo, no meu caso, foi se calhar o estar no Peru, aprender a falar quechua e a cantar, que despertou a minha vontade de cantar em português, e fez parte do meu processo. E continuo a cantar em quechua. Mais do que tudo, sermos verdadeiros com o que nos sai espontaneamente, não querermos imitar uma cultura, uma maneira. Porque antes dessas formas, dessas culturas existirem, nós também canalizamos da Terra. Então sentimos mais do que tudo que as pedras, a terra, a água, têm todas essas melodias, tudo presente. É sermos canais desses lugares onde estamos e deixarmos essas fontes criativas fluírem através de nós.

Tradicionalmente construído e tocado pelas mulheres beiroas, o adufe percorre o mundo nas mãos de Mariana, © Página da Mariana Root

Fotografias e entrevista de Francisco Colaço Pedro
Fotografia de capa da página da Mariana Root

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