“Há mais vida além do Orçamento”. Quem o dissera foi Jorge Sampaio, no início do século, em 2003, alertando-nos que a economia – e, consequentemente, o bem-estar da população – implica mais do que pensar em receitas e despesas num sentido estrito. Contudo, parece que, na atualidade, a cada mês de setembro e outubro não vemos mais nada à frente senão este papel com números.
Mais uma vez, seja porque o Governo tem uma maioria relativa, seja porque os protagonistas políticos querem afirmar-se nas suas convicções (muitas vezes mais estratégicas do que “convictas”), a tensão instalou-se. Vemos Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, chefe do Executivo nacional e líder da Oposição, num impasse nas negociações que colocam o país num sufoco. A não aprovação do Orçamento pode conduzir-nos a um cenário de governação por duodécimos (péssimo para o desenvolvimento social do país) ou a novas eleições legislativas daqui a alguns meses (péssimas para a estabilidade política da nação). Destarte, só existe uma escolha que é realmente favorável neste momento: preservar alguma previsibilidade aos portugueses e aceitar cedências de parte a parte.
Todavia, não produzo este texto com o intuito de discutir quem deve fazer o quê para que o malfadado documento seja aceite. Não, a minha reflexão pretende ser muito mais abrangente do que isso. O ponto nevrálgico encontra-se, precisamente, na importância atribuída ao Orçamento e à completa histeria que envolve estas semanas todos os anos. Parece que se cria uma esquizofrenia tal que torna a política refém desta discussão, sem capacidade de olhar de forma mais multidimensional e estrutural para o estado de Portugal. Sabemos que a cada movimento de translação da Terra este assunto emerge das profundezas do tabu e o povo fica em estado de alerta, suspenso na sua vida quotidiana até à decisão final dos partidos. Mas esta é uma lógica que não tem sentido algum para um país que se quer saudável em termos económicos, sociais e políticos.
Como podemos pensar em medidas macroestruturais e de longo prazo se, periodicamente, todos ficamos aflitos com a aprovação do Orçamento? E que hipocrisia é esta de os protagonistas políticos tentarem retirar lucros que são irrisórios e, simultaneamente, incoerentes com a missão de tornar Portugal um local melhor para todas as pessoas? Por que raio – perdoe-me, caro leitor, a linguagem mais corriqueira – estas personalidades não se anteciparam e iniciaram mais cedo conversações em prol de um bem maior? Os dividendos de prestígio imediatos não se coadunam com os sacrifícios e as tomadas de posição necessárias para inverter o empobrecimento nacional. As figuras políticas não são crianças, imponderadas nos seus comportamentos e aleatórias nas suas escolhas; nem as instituições partidárias podem ser os seus brinquedos através dos quais proliferam e intensificam o jogo político, excluindo quem realmente importa desse jogo: o comum cidadão.
O cansaço dos portugueses apresenta-se num estado muito elevado, próprio de uma acumulação de anos e, até, de décadas. É francamente esgotante ter de conviver com este vício do suspense na entrada do outono, como se os protagonistas políticos fossem mais importantes do que a vida da população. Por isso, a bem da estabilidade (creio que posso falar por uma larga maioria), exigimos bom senso de todos os partidos, mas sobretudo dos dois que mais votos receberam dos eleitores, e que parem de lançar ansiedade para cima de vidas que, elas sim, já têm de enfrentar dificuldades diárias de alimentação, saúde, habitação, entre outras. Está na altura deste delírio com o Orçamento terminar, se queremos, de facto, encontrar toda a restante vida que ele oculta.
Lamento a exposição de alguma irritabilidade. É, no entanto, verdadeira e justificável perante um debate que é consecutivamente o mesmo e, por conseguinte, que só se torna mais e mais infértil. Porém, esta frustração não está direcionada para um mensageiro, e sim para alvos primários que podem fazer a diferença se decidirem agir como adultos na sala.
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