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Opinião de Paulo Pires

Paulo Pires é gestor cultural e programador, trabalhando há mais de 20 anos nas áreas da cultura, artes, criatividade e mediação. Actualmente, é chefe de Divisão de Investigação e Dinamização Cultural na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. Assina inúmeras palestras, moderações, cursos e artigos de opinião sobre a cultura contemporânea.

Carta do Leitor: Afinar a curiosidade na apressada multidão

A Carta do Leitor de hoje chega-nos pelas mãos de Paulo Pires, que reflete sobre espaços contemporâneos que fomentam o exercício da curiosidade.

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Hoje cruzamo-nos sem nos vermos/ouvirmos. A velocidade e o excesso são a medida do nosso tempo, com tudo o que daí advém no que toca à atenção demorada e afinação com o outro, à ligação imersiva com as nuances menos hiperbolizadas da realidade, à conexão com o espaço real e simbólico no sentido da territorialização do indivíduo. 

Nas estações de metro e comboio das cidades circula uma imensa e difusa galeria de corpos indiferenciados e não sonoros, entre automatismo, anestesia, apatia e conformismo. A tecnologia e os livros são, pela sua portabilidade, a companhia privilegiada ou inevitável para a evasão de um heterogéneo universo onde a dualidade ruído (ambiental)/silêncio (humano), a proximidade/neutralidade corporais, a impessoalidade, a rotina/loop e o turbilhão ditam as suas regras. 

Diversos estudos científicos – além de regulamentações implementadas noutros países (veja-se o caso americano e as disposições patentes no New York City Noise Code) – dizem-nos que a partir dos 70/75 decibéis o corpo humano começa a ter reacções ao ruído (físicas, mentais ou emocionais) e que exposições de média-longa duração a níveis intensos de ruído podem provocar zumbido nos ouvidos, progressiva perda auditiva, aumento da produção de adrenalina, contracção dos vasos sanguíneos e aumento da pressão sanguínea e do ritmo cardíaco. Estes sintomas traduzem-se amiúde em dificuldades na comunicação, concentração, fadiga e desconforto, redução do comportamento de ajuda e aumento da irritabilidade. Daí que factores como o volume de tráfego, a manutenção e a qualidade acústica das infraestruturas e das carruagens ou a amplificação do ruído, associados a espaços confinados, contribuam para o incremento do impacto negativo do ruído na saúde pública.

Também por isso, em 2008, o britânico Luke Jerram lançou o projecto pioneiro “Play Me, I’m Yours”, tendo instalado já mais de 2000 pianos em 70 cidades espalhadas pelo mundo, e privilegiando espaços públicos, convencionais ou não, em contextos exteriores ou indoor. O impacto da iniciativa tem sido muito significativo, contribuindo para novas interacções e dinâmicas ao nível da fruição do espaço público, quebrando barreiras e estimulando sentimentos de pertença e de coabitação sociais, e envolvendo activamente artistas locais, grupos comunitários e outras instituições de variada índole sediadas nos territórios. 

Este modelo tem sido seguido por múltiplas entidades um pouco por todo o lado, desde organismos públicos a empresas, passando por universidades e estruturas privadas de cariz social, cultural e científico. Em Portugal, o piano instalado no bar da NOVA de Lisboa é um bom exemplo, entre outros. Também na capital, mas em Entrecampos, ou, mais recentemente, na estação da Trindade, no Porto, a Critical Software, reconhecida empresa tecnológica nacional, desenhou, em parceria com a Infraestruturas de Portugal, contextos criativo-empáticos cujo mote é um piano mecânico e o poder aglutinador da música. 

Chegar-sentar-tocar e chegar-ficar-ouvir: são estes os dois exercícios vitais propostos, numa lógica (não óbvia) de “perder tempo” num ambiente físico de saturação sonora e défice auditivo e comunicacional. Coabitam, assim, e contra quase todas as condições, sinais sonoros automáticos, avisos periódicos sobre partidas e chegadas, e o rumor dos motores e da azáfama humana com a “vida do espírito”, numa convivência claramente precária, frágil e improvável, mas necessária e cativante. Estamos perante um gesto revolucionário? Sim.

O que estes espaços realmente activam não é tanto aquela atenção profunda e com foco analítico em crise na contemporaneidade, baseada na ideia já cristalizada de que há um volume imenso de informação disponível e, ao invés, um diminuto e escasso tempo e energia para a apreender de modo satisfatório e imersivo. O que está em causa aqui é um outro instrumento de regulação da atenção e, assim, da cognição: a curiosidade.

É esta postura que ressalta da observação destes contextos: a curiosidade de quem faz uma pausa improvável para escutar e sentir algo novo, diferente; a curiosidade de quem cria-experimenta música num contexto não expectável; a curiosidade de quem percepciona o impacto da sua acção no colectivo transeunte; a curiosidade de quem simplesmente regista o momento; a curiosidade de quem está, com distanciamento, a contemplar tudo isto. Por vezes, a curiosidade serve “apenas” para aquela interrogação tão preciosa quanto banal(izada): Porque paramos (para ouvir gritar baixinho) e estamos aqui e agora?

Perante a discutida falta de recursos atencionais, a curiosidade – cujos estudos de psicologia cognitivista têm sofrido um significativo incremento nos últimos anos – assume-se como um recurso endógeno e insubordinado, criando um retorno dinâmico entre sujeitos e objectos curiosos. Trata-se de um comportamento proactivo, uma atracção por aspectos incomuns da realidade quotidiana e uma abertura à surpresa, ampla e incontrolável, como salienta o professor universitário Yves Citton num dos últimos números da revista Electra. Esta postura de orientação e compreensão do mundo assenta numa primazia das faculdades paralelas e associativas dos indivíduos, estando ligada a avaliações automáticas e indicações sensoriais espontâneas que dominam o processo atencional. 

O aprofundamento da curiosidade como esponja-passaporte permite às pessoas o confronto com encontros e descobertas imprevisíveis, bem como um não alinhamento com conceitos e opiniões pré-estabelecidos por alguém em posição de autoridade. Esta experiência (indomesticada) de síntese cognitiva acaba por abrir portas a todo um universo de novas perspectivas e cenários, redefinindo os próprios quadros de gostos e expectativas pessoais. 

A curiosidade é um instrumento de sobrevivência existencial (e criativa), sendo essencial que haja oportunidades de perguntar, questionar e imaginar sem restrições. Nestes micro-espaços de inquietação e (re)encontro não há normas que condicionem quem toca e/ou assiste. Fomenta-se a horizontalidade da relação, sem privilegiar a priori estilos, compositores, músicas experiências, currículos ou mediatismos associados. Do mais ao menos anónimo, há uma liberdade total para ser curioso, inventivo, empático, interventivo, provocador, efusivo ou introspectivo, mesmo que isso não traga consigo respostas significativas ou satisfatórias, mas até o desejo redobrado de interrogar mais. 

A arte praticada no espaço público – zona política de confronto de tensões, contradições e diferentes visões do mundo – tem essa dimensão subversiva, incomum, alternativa. Cada intérprete que se senta ao piano tem uma individualidade, história e memória. Estes contextos lutam assim contra a diminuição do espaço de diálogo, encontro e liberdade nas cidades, bem como contra uma saudável vulnerabilidade derivada do diálogo imprevisível com todos os que nelas habitam e deambulam.

Gastamos muitas horas a partir e a chegar, num vai-e-vem interminável, e dedicamos pouco tempo ao verbo “ficar”. A história dos rostos que passam e permanecem para ouver ou tocar estes pianos-salvação é uma demanda conduzida por uma (in)confessada e incontrolável curiosidade e liberdade. O rabino Nachman de Breslov dizia: “Nunca perguntes o caminho a alguém que o conhece, porque assim não poderás perder-te [nem soltar-te].”

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