Siena
Um dos primeiros textos que escrevi sem falar de Deus foi para um Alfa Romeo vermelho, da cor exata dos estigmas de Santa Catarina de Siena.
Conduzia-o pela Toscana fora: ele sofria horrores, e todo o texto era (é) um embaraçoso espólio de clichés e anacronismos: prados abundantes em lavradores, lavradores portugueses que eram italianos e ceifavam à medida que o monstro metálico roncava prados fora, cada vez mais alto, até que os lavradores interrompiam a labuta, o frenético pontinho vermelho aparecia, eles seguiam-no com o olhar, de novo desaparecia no horizonte, e os lavradores retomavam a labuta como se nada tivesse acontecido.
Com quatro americanos ao meu lado a discutir carinhosamente as marketing strategies de Silicon Valley torna-se-me especialmente difícil arrancar com o Alfa Romeo — o motor engasga-se no ruído e afoga-se na mentira.
Reconstruí-lo é um 31 dos diabos, inglória tarefa que urge:
▪︎ chaves de orgulho
▪︎ porcas de paciência
▪︎ maçaricos de solidão
e
▪︎ o raríssimo óleo do silêncio que só há no fundo do mar, na garganta dos peixes-lanterna
À conta da minha imbecilidade, já estourei à volta de 156 Alfa Romeos. Escolho sempre mal o local das minhas corridas: esplanadas de siliconvalleyeses que, de certeza absoluta:
— hey Siri, where do locals eat italian pizza in Siena?
(eu jamais faria isso);
e depois peregrinam, com muita autenticidade, para restaurantes tripadvisormente elegidos por outros silliconvalleyeses.
Confesso que, para este segundo dia em Itália, esperava um autódromo-esplanada cheio de lavradores (ou labradores, que bom), mas o único lavrador aqui sou eu.
Interrompo as minhas sachadas para ouvir monstros a roncar:
— so, this big CFO had a shitload of friends
e depois retomo a labuta como se nada tivesse acontecido.
Bolonha
Estou, como sempre que escrevo, de perna traçada para o caderno, cabeça inclinada para a mão esquerda.
Está escuro. As luzes: velas espessas como os candeeiros de Azeitão, murchos e diluídos quando eu:
ranho + olhos húmidos = tudo em quadros de Van Gogh.
No meu campo de visão — a torre Garisenda — se tomba de testa é um grande estardalhaço medieval, e a americana com as mãos na samsonite violeta escrutina todos os transeuntes, um silêncio de morte entre ela e o marido, um silêncio de morte na mesa dela que, mesmo cheia de pão, vazia:
ELA — migalhas — ELE
E eu a ver. Que aflição. Que não chegue eu, nunca, a este estado de mutismo, que não me sente eu nunca comigo mesmo e uma samsonite violeta.
Hoje está a doer-me existir. Gostava de ter umas arcadas para o coração, uma moldura bonita para um nada, como este pórtico que me abriga no Café Maxim enquanto dardejo de ódio o careca que decora, sem exceção, todos os rabos de todas as mulheres, umas meninas até. Que nojo.
Que belo cigarro. É um luxo poder fumar em Bolonha sem estar morto. Os mortos têm regalias destas: está sempre escuro, mas podem fumar sempre que lhes apetece. A cena é que fumar às escuras não tem graça nenhuma.
Se hoje pudesse ser qualquer coisa, seria a samsonite violeta que os americanos estiveram a agarrar do início até metade do pãozinho que desperdiçaram, não, o empregado do Café Maxim acabou de tropeçar com a bandeja: uma poça de vidros e Aperol Spritz, e está a gritar baixinho, portanto retiro o que disse: se hoje pudesse ser qualquer coisa seria o chão (estou a tremer tanto, não faço ideia porquê), e sendo o chão apanharia toda a pancada deste empregado raivoso: farto de Bolonha, farto de trabalhar, farto do Café Maxim, farto das minhas perguntas num italiano encalacrado:
Quanto costa?
Quanto gosta?
farto de americanos que escondem os cacos do casamento numa samsonite violeta, de maneira que manda um coice na samsonite violeta, ela abre-se como uma rosa, e de lá de dentro brota um Aperol Spritz que acaba desfeito no chão.
Tantas tantas voltas para dizer que hoje não me importava de estar fora de mim.
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