Em pleno Parque Natural da Ria Formosa, onde o mar se encontra com o céu num cenário de diversidade natural e de riqueza paisagística, eis que surge a ilha da Culatra. Um refúgio que fora em tempos esquecido, mas que nos dias de hoje está bem vivo. Vivo pelas gentes que lutaram no passado e que, atualmente, ainda lutam para o manter, bem como por todos os que agora o querem tornar num exemplo a seguir, no que respeita a um modo de vida mais amigo do ambiente.
Num mundo cada vez mais atento aos desafios ambientais, imaginemos uma ilha que caminha passo a passo para atingir a sustentabilidade através de um modelo de economia circular. Essa é a ilha da Culatra.
Com o Projeto Culatra 2030 – Comunidade Energética Sustentável, a Culatra quer ser uma referência ao nível das energias renováveis. Com a colaboração da Universidade do Algarve e de várias entidades locais, visa não só descarbonizar a ilha, mas também envolver a comunidade no desenvolvimento de soluções inovadoras para um futuro mais verde e resiliente.
Localizada a sul das cidades de Olhão e Faro, a Culatra é uma ilha no coração do Parque Natural da Ria Formosa. Com aproximadamente 6 quilómetros de comprimento e uma largura que varia entre 100 e 900 metros, tem cerca de 1000 habitantes que vivem principalmente da atividade piscatória e da tradicional cultura do marisco.
Da ocupação clandestina à luta pela identidade e sustentabilidade
A ilha da Culatra guarda uma história de resiliência e luta pela sua identidade. Embora não haja registos concretos sobre a data de início da ocupação habitacional da ilha, acredita-se que o processo tenha começado em meados do século XVI.
O que é certo é que a abundância de peixe e marisco na região fez com que a Culatra fosse, antes de tudo, um ponto de passagem para pescadores sazonais que trabalhavam, essencialmente, na pesca da sardinha. Com o tempo, alguns desses pescadores, bem como as respetivas famílias, decidiram fixar-se na ilha, construindo, ainda que de forma ilegal, habitações provisórias. Essa ocupação foi o ponto de partida para as primeiras fixações na ilha e para a consequente formação da comunidade que, ao longo dos anos, cresceu até atingir, atualmente, cerca de mil habitantes.




Ocupada clandestinamente, durante décadas, a ilha viveu à margem das políticas públicas, o que fez com que a Culatra fosse excluída pelo Município de Faro de serviços essenciais como a gestão e tratamento de resíduos urbanos.
«No meu tempo de criança a vida na ilha era muito complicada. Os homens andavam ao mar, eram pescadores e as mulheres iam à maré, eram mariscadoras. Vivemos assim, sem água, sem luz, sem esgotos. Durante muito tempo a Culatra viveu às escuras», recorda Rui Conceição, pescador habitante na ilha.
Até aos anos 90 todo o lixo produzido na Culatra era depositado numa lixeira a céu aberto perto da praia. Foi dessa lixeira e de toda a falta de condições de saneamento que surgiu a primeira revolta que deu origem à Associação de Moradores da Ilha Culatra (AMIC), da qual Rui Conceição foi fundador.
«O lixo produzido na ilha do Farol que sempre foi uma estância balnear aqui ao lado, vinha todo parar ao aterro que tínhamos na Culatra. Achávamos isso injusto e acabou por nos dar ainda mais força para reivindicarmos», confessa Rui Conceição.


A 19 de julho de 1987, os Culatrenses decidiram boicotar as eleições legislativas para chamar a atenção das autoridades para a falta de condições com que se vivia na ilha.
«Estávamos determinados. Trancámos a escola para evitar que abrissem a mesa de voto, mas como nos apresentaram que isso podia ser punível com penas de prisão, segundo as regras da Constituição Portuguesa, decidimos deixar que a mesa fosse aberta, mas ninguém foi votar. As pessoas puseram-se à porta das casas com fogareiros e mesas a comer e ninguém foi votar», conta Rui Conceição.
Esse foi apenas o primeiro passo para uma série de reivindicações que mudariam a história da Culatra.
O caminho para a eletricidade e os primeiros avanços
A AMIC tornou-se a voz da luta por melhores condições de vida da comunidade. Em 1992, a chegada da eletricidade marcou um dos primeiros avanços significativos na Culatra, mas foram precisos 4 anos de abstenção eleitoral para a conquistar. Antes disso, a ilha enfrentava dificuldades extremas em termos de infraestruturas básicas e de condições essenciais como acesso à água potável e a cuidados de saúde.
Sílvia Padinha, atual presidente da Associação e habitante da ilha, relembra o passado difícil: «Não tínhamos água, não tínhamos eletricidade e o acesso a cuidados de saúde era escasso. A escola era só de ensino primário e não tinha condições, até chovia lá dentro. As famílias eram pobres e o que tinham era fruto do trabalho, pois não havia apoios».
Em 1987, o mesmo ano da criação da Associação de Moradores, a ilha da Culatra (juntamente com toda a região da Ria Formosa) recebeu o estatuto de Parque Natural. A partir desse momento, as políticas governamentais passaram a focar-se na valorização do espaço natural. Mas isso trouxe consigo novos desafios.
O Governo, através da Administração da Região Hidrográfica do Algarve (ARH Algarve), propôs a demolição de várias casas situadas nas ilhas da Ria Formosa devido ao seu impacto ambiental, à sua localização em áreas de risco, como eram as zonas de proteção da Ria, e à falta de infraestruturas adequadas com saneamento básico e acesso a serviços essenciais.
Começou assim o conflito entre a causa ambiental e a ocupação humana, no qual as demolições nas ilhas barreira foram um bom exemplo da contestação popular.
A luta pela permanência e pela identidade
Este plano de demolições gerou uma onda de indignação, mas o núcleo da Culatra resistiu ao plano de ordenamento. «Quiseram demolir as casas de todos aqueles que aqui viviam, fossem habitantes, veraneantes, legais ou ilegais. Colocaram todos no mesmo saco e mandaram deitar as casas abaixo. Não tiveram qualquer consideração por uma comunidade que não tinha outra forma de vida a não ser esta», desabafa Sílvia Padinha que também recorda o sentimento de insegurança que tomou conta da ilha: «A partir do momento em que soubemos desta vontade do Governo, vivemos sempre com o fantasma das demolições a pairar nas nossas cabeças. Só pensávamos em qual seria o dia que as nossas casas seriam demolidas».
«As autarquias não quiseram olhar para a nossa comunidade. A Culatra esteve muitos anos completamente esquecida e abandonada porque éramos vistos apenas como os pescadores pobres que viviam aqui com as suas famílias. Não havia lixeiras, todo o lixo era depositado a céu aberto, não havia passadiços para percorrer a ilha, era tudo em areia. As casas eram as que os pescadores tinham construído. É verdade que havia muita miséria, mas somos e sempre fomos pessoas”, afirma com firmeza a presidente da AMIC.
A luta da AMIC foi constante. «Começámos a perceber que tínhamos força e conseguimos alcançar várias coisas. Desde a construção da escola nova até ao aumento das consultas médicas, que passaram a ser prestadas duas vezes por semana, quando antes só vinha um médico uma vez», lembra Sílvia Padinha. A água potável foi outro grande desafio: «Chegámos a ter problemas de saúde pública associados à falta de água potável. Entre 2000 e 2010, foram anos de muita luta», reforça.
Durante esse período de luta, o Governo aprovou, em 2005, o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), que visava, entre outras coisas, proteger e valorizar os ecossistemas costeiros da Ria Formosa. O POOC estabeleceu regras para a construção e ocupação das ilhas, com especial foco na preservação do ambiente e na regularização das construções existentes. Em resposta às reivindicações da comunidade, o Governo que propôs inicialmente a demolição dessas construções, reconheceu a Culatra como uma comunidade piscatória e comprometeu-se a legalizar algumas dessas casas de pescadores.


Foi aqui que a luta pela identidade da ilha ganhou força. Sílvia Padinha e a AMIC exigiram que não fosse uma minoria das casas a ser legalizada, mas sim todas as habitações por serem todas elas de pescadores. A luta pela legalização das casas avançou simultaneamente com a implementação de cláusulas de salvaguarda para garantir que a identidade da Culatra não se perdia com o passar do tempo.
Após anos de negociações e embora o processo de legalização não esteja ainda totalmente concluído, em 2018 a Assembleia da República aprovou um estatuto próprio para a Culatra. Este estatuto estabeleceu que as casas da ilha seriam mantidas, com títulos de propriedade renováveis a cada 30 anos, sendo transferíveis apenas para descendentes de pescadores que vivessem na ilha e tivessem atividades profissionais ligadas ao mar. Este mecanismo foi criado para impedir a especulação imobiliária e para preservar a identidade da comunidade.
Ao longo das últimas décadas, a comunidade da Culatra também conquistou a água potável e a construção de importantes infraestruturas. Em 2008 o porto de abrigo foi concluído e entre 2009 e 2010 a água potável chegou à ilha.
Anos mais tarde, já em 2017, foi desenvolvido pela Sociedade POLIS Litoral Ria Formosa um projeto de intervenção e requalificação (PIR) que incluiu construção de melhores caminhos, zonas de abrigo, a delegação da junta de freguesia, um centro de saúde com melhores condições, a construção da casa da proteção civil, um veículo de transporte de emergência (carrinho e barco ambulância) e um campo desportivo. «Com a nossa força e resiliência, conseguimos transformar um projeto que queria demolir as casas, num projeto de requalificação do espaço público», diz Sílvia Padinha.




O futuro da Culatra: da resistência ao nascimento do Culatra 2030
Superados esses desafios do passado, hoje a comunidade da Culatra continua firme na preservação da sua identidade e na procura por melhores condições de vida. A ilha, que foi um símbolo de resistência e luta durante décadas, é agora um exemplo de como uma comunidade unida pode conquistar melhorias e proteger os seus direitos.
Se antes a luta da Culatra era pela sobrevivência e pelo reconhecimento enquanto comunidade, hoje a ilha assume um papel de liderança num novo paradigma de desenvolvimento sustentável. O caminho percorrido nas últimas décadas preparou o terreno para uma transformação mais profunda: uma visão de futuro onde a sustentabilidade ambiental, energética e social caminham lado a lado.
É neste contexto que surge o Projeto Culatra 2030, uma iniciativa que coloca a ilha no centro das políticas de transição energética da União Europeia e que representa o passo seguinte na afirmação da identidade da Culatra — agora não apenas como comunidade resistente, mas como referência de inovação ecológica e cidadania ativa.
A mesma ilha que um dia lutou por eletricidade e água potável, caminha agora para se tornar uma das primeiras comunidades insulares portuguesas a viver de forma autossustentável, com energia limpa, eficiência energética e governança comunitária participativa.
Um dos primeiros passos nesse sentido foi dado em 2017 quando os pescadores da ilha, para quem o dia começa antes ainda do sol nascer, começaram a trazer para terra tudo o que está a mais na Ria Formosa. Foram os primeiros no Algarve e os segundos a nível nacional a aderir à campanha “A Pesca por um Mar sem Lixo” promovida pelo Ministério do Mar da altura e que criou hábitos de preservação ambiental que ainda hoje se mantêm.
«Tanto eu como os outros pescadores recebemos bem esta campanha, mas tínhamos um mau hábito que vinha dos antigos. Quando estávamos no mar, desarmávamos as redes de pesca e deitávamos tudo ao mar. Mesmo sacos e garrafas de plástico que tínhamos a bordo», conta Rui Conceição.
«Eu pessoalmente sempre gostei de trazer o lixo que encontrava no mar para terra. Deitar o lixo ao mar faz com que mais tarde o voltemos a apanhar, quer queiramos quer não, e não faz sentido estarmos a poluir. Mas foi uma batalha explicar aos pescadores, especialmente aos mais velhos que tinham costumes e formas de trabalhar diferentes dos pescadores mais jovens, que é importante trazer o lixo para terra em vez de o deixar ao mar. Foi preciso muita explicação e insistência para que aos poucos os hábitos fossem mudando», diz Hugo Padinha, outro habitante e pescador da ilha.
Segundo contam estes dois “Homens do mar”, nos dias de hoje praticamente todos os pescadores da ilha trazem para terra não só o lixo que produzem como também o que encontram perdido nas águas. Entre os produtos mais encontrados estão sacos e garrafas de plástico e ainda cordas ou outros materiais utilizados na pesca.
«A Pesca por um Mar sem Lixo foi um dos melhores projetos que nos veio parar às mãos, quer para nos salvar a nós, quer para salvar a nossa ria e o mar. É importante salvá-los porque principalmente nós que trabalhamos com eles se os estragarmos também o nosso trabalho e a nossa vida ficam estragados», acrescenta Rui Conceição.
Mas a ligação entre a preservação ambiental e o mar não fica por aqui. As redes de pesca, que antes acabavam muitas vezes esquecidas ou descartadas, estão agora a ganhar uma nova vida. «Um dos maiores problemas que tínhamos a nível de lixo estava relacionado com as artes de pesca perdidas ou abandonadas na ria e no mar e, por isso, a Associação de Moradores encorajou os pescadores a entregar essas redes para serem reutilizadas em atividades no centro social. Por exemplo, fizemos sacos que podem agora ser usados pelos próprios pescadores para colocar o lixo ou pelos mariscadores para trazerem a amêijoa juvenil que apanham. Na entrada do passadiço para a praia também temos uma rede onde as pessoas são convidadas a depositar o lixo que trazem da praia para evitar que fique poluída», explica Sílvia Padinha.




Já a sensibilização ambiental começa na escola, onde as crianças aprendem sobre energias renováveis, reciclagem e sustentabilidade através de atividades práticas. E também no centro social, são organizadas sessões para todas as idades sobre eficiência energética e cuidados com o ambiente. Estas ações aproximam a comunidade do objetivo de tornar a Culatra uma ilha mais sustentável.
A chegada do Projeto Culatra 2030
Com uma forte componente de energias renováveis, o Projeto Culatra 2030 quer transformar a ilha da Culatra num exemplo de gestão sustentável da água, de energia limpa e de economia circular até daqui a cinco anos. O tempo está a esgotar-se e o caminho que ainda vai a meio tem sido tudo menos fácil.
«Quando começámos, não tínhamos nada em concreto. Era apenas uma ideia vaga, algo que parecia muito improvável. A ideia de tornar a ilha autossustentável parecia um sonho distante", admite André Pacheco, oceanógrafo e investigador da Universidade do Algarve (UAlg) que é também o coordenador do projeto. No entanto, como o mesmo descreve, a ideia foi ganhando forma especialmente após uma série de «coincidências felizes» que tornaram o projeto possível.
Segundo explica o Investigador da UAlg, o Culatra 2030 teve início a partir de um projeto financiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia, cujo objetivo era testar a viabilidade de produzir energia a partir das marés da Ria Formosa. Para isso, foi necessário realizar uma análise de custo-benefício da energia das marés, utilizando um caso de estudo. André Pacheco, já conhecedor da comunidade da Culatra, contactou Sílvia Padinha para obter dados sobre o consumo energético da ilha.
Contudo, ficou rapidamente claro que os custos elevados dessa tecnologia inviabilizavam a sua implementação. Foi então que o projeto tomou um novo rumo, baseado em energias renováveis alternativas, mais acessíveis e eficazes.
«Em conversa com a Sílvia Padinha, discutimos que o projeto não estava a avançar devido ao elevado custo de produzir energia elétrica com as correntes de maré e acabei por manifestar interesse em desenvolver trabalhos com outros tipos de energias renováveis. Foi aí que nasceu a primeira ideia para o Culatra 2030», lembra André Pacheco.
«Quando discuti a ideia inicial do projeto com o André Pacheco e percebi que a intenção passava por apostar na transição energética, na sustentabilidade da pesca, na preservação da nossa água potável e até no aproveitamento dos nossos resíduos, fiquei logo interessada. Era no fundo olhar para os problemas que existem na ilha, e no planeta em geral, e saber como podemos colaborar com boas práticas para os melhorar e assim ser um exemplo para outras comunidades. Foi ouro sobre azul e era mesmo aquilo que eu precisava para voltar a ter ânimo e vontade de lutar pela ilha», confessa Sílvia Padinha.
Nos primeiros meses do Culatra 2030, a equipa ainda não tinha um plano estruturado. André Pacheco descreve aquele período como uma fase de experimentação: «Era uma ideia dispersa de que seria giro tornar a ilha autossustentável, mas não tínhamos uma estratégia definida. Era algo que nos parecia até pouco provável e fora da caixa». E foi precisamente aí que começaram as ditas «coincidências felizes» a que o oceanógrafo se refere.
Uma dessas coincidências aconteceu quando a Associação de Moradores da Ilha da Culatra se juntou à Universidade do Algarve para concorrer ao programa Clean Energy for EU Islands da Comissão Europeia. «Fomos uma das seis ilhas selecionadas a nível europeu para desenvolver uma agenda de transição energética», explica Jóni dos Santos, que integra a equipa desde a génese do projeto.
«Quando apresentámos o projeto aos moradores ficaram todos muito ansiosos para saber como seria daí em diante. Sendo o objetivo deste projeto preservar o nosso território e assim também ajudar as famílias ficaram todos entusiasmados», conta Sílvia Padinha.
«Achei logo que este seria um grande projeto para a Culatra. Depois de todos os nossos avanços, utilizar energias renováveis para um dia conseguirmos ser independentes, para mim é maravilhoso», afirma Rui Conceição. E Hugo Padinha concorda: «É uma boa iniciativa e termos investigadores da Universidade do Algarve a trabalhar para melhorar a vida na ilha é excelente. Vejo com bons olhos e bons avanços o projeto».
Outro fator que serviu de impulso ao projeto foi o reconhecimento do núcleo piscatório da Culatra, através do qual o Governo reconheceu oficialmente a ilha como um núcleo residencial piscatório consolidado. Isto levou ao início do processo de licenciamento das casas que já havia tido uma porta aberta anteriormente através da alteração à Lei dos Recursos Hídricos, aprovada por unanimidade no Parlamento: «A legalização das casas era um pré-requisito para muitas das iniciativas que queríamos implementar. Sem isso, seria impossível avançar com soluções de energia renovável», explica André Pacheco.
Com a aceitação da candidatura ao programa europeu, deu-se início ao processo de desenvolvimento do Culatra 2030 em conjunto com a comunidade. Através da Make it Better, uma associação para a Inovação e Economia Social, foi feito um diagnóstico participativo com habitantes da ilha. «Era obrigatório desenvolver a agenda de transição energética em conjunto com a população e foi positivo porque assim foram apontadas as verdadeiras necessidades da ilha», sublinha Jóni dos Santos.
«Por exemplo, ao nível da energia, a Culatra está ligada a Portugal Continental através de um cabo submarino que vem de terra e durante o inverno há muitas falhas de energia. As pessoas estão habituadas a chegar a casa e ter energia para ligar as luzes, ligar a televisão, pôr o telemóvel a carregar ou outras atividades que requerem energia elétrica, e nós na Culatra muitas vezes chegávamos a casa e não podíamos fazer nada disso porque o cabo partia. Por vezes ficávamos horas, dias ou até semanas sem energia», aponta ainda Jóni dos Santos que é também morador da ilha.
Nesta fase inicial continuava a não existir financiamento para o Culatra 2030 e eis que surge o Programa No Planet B ao qual a equipa do Culatra 2030 concorreu e venceu, tendo ganho dez mil euros para fazer o diagnóstico participativo da Culatra que começou a ser feito pela equipa da Make it Better com visitas recorrentes à ilha.
Do trabalho entre a Universidade do Algarve, a AMIC e a Make it Better resultou uma agenda de transição energética assente em cinco pilares: produção, armazenamento e distribuição de eletricidade, climatização de habitações e eficiência energética, transporte de acesso e dentro da ilha, abastecimento e tratamento de água e gestão e valorização de resíduos.
A articulação entre os cinco pilares da agenda de transição energética ganha forma concreta através da criação da Comunidade de Energia Renovável (CER) da Culatra. Sendo o objetivo principal do projeto aumentar a penetração de energias renováveis na ilha, como forma de se tornar o primeiro território português totalmente sustentável até 2030, a criação desta CER foi um passo essencial. Em janeiro de 2023, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) classificou esta Comunidade como um dos quatro projetos piloto a nível nacional.
Associada à CER surge a C-COOP - Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra, uma nova entidade que é ao mesmo tempo promotora da CER e responsável pelas iniciativas que envolvem a ilha.
Jóni dos Santos é o Presidente desta cooperativa, fundada oficialmente em setembro de 2022 por mais de uma dezena de Culatrenses com o apoio da UAlg e das três entidades de maior relevo na Culatra: A Associação de Moradores, a Associação Nossa Senhora dos Navegantes e o Clube União Culatrense. É fruto do trabalho conjunto entre essas entidades e os jovens empreendedores que pretendem preservar a identidade da comunidade piscatória, enquanto garantem um futuro próspero para as gerações locais através de uma gestão eficiente dos recursos naturais.
Culatra 2030: o que já mudou e o que ainda está por vir
Um dos avanços que surgiu com o desenvolvimento do diagnóstico participativo está relacionado com os atrasos no processo de legalização das casas na ilha. Dado o tempo que viria a demorar para concluir esse processo, foi decidido pela equipa do Culatra 2030 avançar com a colocação de unidades fotovoltaicas em infraestruturas públicas. Hoje, estão distribuídas por diferentes espaços da Culatra: duas nas zonas de sombreamento do porto de pesca, uma no Centro Social, uma na sede do Clube União Culatrense, e uma na Escola Básica. Além disso, foi implementado um sistema de armazenamento com baterias de lítio de mais de 45 kWh que garante autossuficiência energética para as instalações de apoio à pesca em períodos noturnos.
«Neste momento, 28% das necessidades energéticas da Culatra estão asseguradas durante o dia por energias renováveis. A partir daqui o céu é o limite porque temos projetos em vista que se correrem bem vão transformar problemas em soluções», afirma Jóni dos Santos. E André Pacheco acrescenta: «Concorremos com uma proposta ao Programa MAR2030 que se for aprovada vai permitir passar dos 28% de necessidades asseguradas para 90% até 2026».






A proposta contempla a instalação de raiz de estruturas de sombreamento públicas e de uso comunitário pelos trabalhadores ligados à arte de pesca para com isso melhorar as condições profissionais desses homens e mulheres. As infraestruturas propostas deverão ter cerca de 33 metros de comprimento e 10 de largura e deverão ser equipadas com um acrílico protetor de revestimento e painéis fotovoltaicos, servindo assim de base física para a instalação de mais de 200kWp de capacidade de geração fotovoltaica, aumentando a independência energética da ilha e cumprindo uma das metas de sustentabilidade e transição energética até 2030.
«Já submetemos a candidatura e agora resta aguardar. Caso seja aprovada, até 2030 fica a faltar apenas 10% para alcançarmos a capacidade total e tornarmos a ilha completamente autossustentável energeticamente», acrescenta expectante André Pacheco.
«A ideia para além de ser desenvolver ainda mais a capacidade de autossuficiência energética da Culatra, é aproveitar o espaço e requalificar a zona mais degradada da ilha que é a zona de trabalho dos pescadores e que serve de apoio à própria pesca», indica Sílvia Padinha.




A par disso, é necessária luz verde por parte da Direção-Geral de Energia e Geologia para que o Culatra 2030 seja um dos quatro projetos piloto no país a testar um modelo de partilha em autoconsumo. «O modelo dinâmico que pretendemos implementar na Culatra permite-nos estabelecer as percentagens a atribuir a cada família depois do consumo de energia acontecer e assim podemos controlar os fluxos da energia renovável produzida. Por exemplo, se a família A não usar toda a energia para si adjudicada, a energia restante poderá ser entregue à família B que está a consumir excepcionalmente mais nesse instante. Este modelo também permite que sejam estabelecidas prioridades na partilha de energia. Por exemplo, a família A que anteriormente disponibilizou parte da sua energia, em caso de excedente de energia produzida, terá prioridade sobre outras», explica Jóni dos Santos.
Este novo sistema só é possível graças ao referido estatuto de projeto piloto concedido pela ERSE e pela E-REDES, que permite à Culatra testar soluções fora do enquadramento legal habitual. No entanto, nem tudo são facilidades. «É frustrante estarmos presos no processo de licenciamento há tanto tempo, mas por outro lado, e como engenheiro eletrotécnico, consigo compreender alguns motivos que levam a este atraso. A rede elétrica foi projetada para trabalhar de forma centralizada. Com o aumento da descentralização na produção de energia é necessário redobrar a segurança da rede elétrica para que esta opere de forma estável», acrescenta Jóni dos Santos.
Uma vez dada essa luz verde, o pilar da agenda de transição energética assente na energia ficará com todos os objetivos concluídos: desde a autossuficiência energética à criação de uma comunidade de energias renováveis, ao estabelecimento de um modelo socioeconómico que permite que o valor da venda de energia se mantenha investido na Culatra e não que seja alterado pelos interesses dos comercializadores, processo que está segundo o André Pacheco «num bom caminho».
Com todos esses avanços no caminho da transição energética, a Culatra mostra que não se limita apenas às infraestruturas em terra firme. A inovação também já chegou ao mar. Se em 2019 ter um barco fotovoltaico parecia um sonho longínquo, hoje é uma realidade que navega nas águas da Ria Formosa. Desenvolvido pela empresa solar algarvia Sun Concept com ajuda dos mariscadores da ilha é utilizado por todos os viveiristas como apoio à cultura da ostra.








«É uma embarcação movida exclusivamente a energia solar que saí todas as semanas para Olhão com cargas de pequenos produtores. É mais um fruto do trabalho coletivo que permite aos produtores de bivalves, nomeadamente de ostra, melhorar as condições de trabalho e assim contribuir para que os produtos que saem da nossa Ria sejam mais saudáveis, amigos do ambiente e de carbono zero», diz Sílvia Padinha.
A embarcação, inspirada no exemplo escandinavo, demorou cerca de dois anos para estar concluída. Luís Fontinhas foi um dos viveiristas envolvidos no processo de desenvolvimento. «Verificámos que cada viveirista utilizava a sua própria embarcação movida a combustível fóssil para transportar o produto para Olhão e em média um motor de combustão de uma pequena embarcação consome mais de vinte litros de combustível por hora. Imaginemos que tínhamos uma tonelada de ostras para transportar, a maioria das embarcações da ilha não tem capacidade para tanto e, por isso, seriam necessárias duas a três viagens, o que resultaria num consumo muito elevado de combustível. Assim com a embarcação solar que suporta até quatro toneladas de produtos, fazemos transporte de ostras de vários viveiristas numa só viagem, poupamos em combustível e poupamos o meio ambiente», reforça.
«Tentamos que esta visão e esta forma de viver seja transmitida para a comunidade. Por exemplo, com o barco solar a comunidade percebe que pode trabalhar sem ter tantas despesas monetárias associadas ao combustível, o que cumpre a meta da poupança, e percebe também que sem gastar combustível também não contamina. E a mensagem a passar é que para nós a água da Ria Formosa é quase tão importante como a água que bebemos e temos de a preservar. Por isso, temos vindo a mostrar tanto aos viveiristas como à comunidade em geral que este barco é um bom exemplo de navegação segura na Ria», acrescenta a Presidente da Associação de Moradores.
A pensar nesses pequenos passos para a descarbonização, também o veículo de apoio ao centro social que auxilia nas visitas domiciliárias de apoio às famílias da ilha deixou de ser a combustão e passou a ser elétrico.
Além de tudo isto, há na ilha uma clara intenção de transformar aquilo que é inútil para uns em produtos necessários para outros. «Temos na ilha uma máquina trituradora de cascas de ostra, que à primeira vista seriam para deitar fora, até a reduzir o máximo possível a pó. Com isto estamos a olhar o quanto possível para metas de construção sustentável, porque queremos utilizar esse pó de cascas de ostra para produzir tijolos e argamassas para a construção civil», explica André Pacheco.
«Já temos muito produto que temos vindo a recolher e estamos a trabalhar com o Instituto Superior Técnico para perceber todo o potencial da casca de ostra para definirmos de que forma podemos aproveitar para outros fins. Tudo a pensar na reutilização e impedir que produtos que podem ser úteis vão parar ao aterro», diz Sílvia Padinha.
Juntamente com o Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve estão, ainda, a preparar um projeto que será submetido ao Programa Mar 2030, no qual pretendem recolher todos os resíduos orgânicos que vêm nas redes de pesca, como estrelas-do-mar, algas ou outros materiais que são depois descartados, para produzir biogás que possa ser utilizado pela frota pesqueira da ilha.
Tanto a AMIC como a Academia sublinham os avanços, no entanto a Culatra enfrenta desafios que influenciam o desenvolvimento do projeto. Num território como a Ria Formosa sob jurisdição de mais de cinco entidades, a falta de entendimento dificulta quer pelos processos burocráticos complexos quer pela falta de clareza e pela sobreposição de competências.
Aos olhos da AMIC e da Academia, existe uma perceção de que a autarquia não tem dado seguimento aos compromissos assumidos no âmbito do PIR. A falta de continuidade nas ações é apontada como sinal de um desinvestimento institucional que pode comprometer os progressos futuros do projeto. Para estas entidades, esta desarticulação poderá representar não só um entrave logístico, mas também um risco de perda de confiança por parte da comunidade, que tem sido o principal motor do Culatra 2030.
«O maior problema que posso apontar para o avanço do projeto é a falta de governança, porque tanto a comunidade como as associações da ilha e a academia estão a trabalhar em conjunto e bem. Aquilo que falta é os nossos governantes assumirem um compromisso sério com o projeto, até porque para sermos um modelo a seguir e um exemplo para outras comunidades, é preciso que os nossos governantes estejam ao nosso lado, que se identifiquem connosco e com as nossas lutas», afirma Sílvia Padinha.
André Pacheco reforça: «Sendo honesto, não esperava tão pouco apoio por parte da Câmara Municipal de Faro. É verdade que houve partes desta colaboração com o município que foram bastante boas e há uma relação de trabalho próxima com alguns vereadores, mas no geral acho que não há sensibilidade na autarquia e não há um plano de ação para ajudar nos avanços do projeto. Para além de que esta manutenção é mais do que merecida e necessária. Os habitantes da Culatra votam para a Câmara Municipal de Faro, votam para a Junta de Freguesias e não são pessoas de segunda».
Consciente destas queixas, a Câmara Municipal de Faro, através da vereadora Sophie Matias, afirma ao Gerador: «Temos consciência de que há vários constrangimentos, mas temos vindo a acompanhar da forma que nos é possível, sendo que não podemos intervir e fazer investimentos em áreas que não são da jurisdição municipal. Estamos a tentar junto da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que seja feito um protocolo para que o Município possa fazer a manutenção das áreas públicas da ilha que neste momento são obrigação da APA. É um processo que demora algum tempo e que abrandou devido ao período de eleições que tivemos recentemente, mas espero que agora avance rapidamente para que essas áreas passem para a autarquia para que possamos fazer uma gestão e fiscalização atenta e diária de todos os espaços da Culatra».
«É óbvio que os habitantes da Culatra são cidadãos do Município e que, como tal, têm os mesmos deveres, direitos e benefícios que outros cidadãos do concelho de Faro, no entanto para nós é difícil fazer qualquer obra na ilha porque na realidade essa responsabilidade não é nossa, mas sim da APA. Precisamos desse protocolo e precisamos que os Culatrenses venham junto do Município regularizar as suas construções para só depois conseguirmos fazer uma fiscalização na ilha e procedermos aos respetivos investimentos de manutenção», acrescenta.
A história da Culatra é mais do que uma narrativa de resistência, é um exemplo de transformação comunitária focada na sustentabilidade. O projeto Culatra 2030 não representa apenas uma revolução energética, mas também uma afirmação de identidade, dignidade e futuro. Entre redes de pesca transformadas em soluções ecológicas, embarcações movidas pelo sol e uma comunidade que pouco a pouco aprende a viver a favor do planeta e não contra ele, a Culatra mostra que é possível ambicionar e concretizar, mesmo num território pequeno com grandes desafios.
Ainda há obstáculos pela frente, mas o que se construiu até aqui prova que quando há vontade coletiva, conhecimento técnico e respeito pelo passado, o futuro pode ser melhor e mais sustentável.
Reportagem elaborada no âmbito da Bolsa Gerador Ciência Viva para jovens jornalistas