fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Manuel Luar

Da “caldeirada” de Woodstock à caldeirada de peixe fresco da nossa costa

Nas Gargantas Soltas de hoje, Manuel Luar traz-nos duas caldeiradas: uma no sentido figurativo e outra “das que se comem”.
«E não é que o último artista a atuar e a mandar embora aquelas melgas todas para casa foi o grande Jimi Hendrix? Só por isso já mereceria estátua. Quem lá esteve – por entre os “fumos” da lembrança difusa – achará que foi tudo uma grande e boa “caldeirada”.»

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Em 18 de agosto de 1969 aconteceu o icónico festival de música de Woodstock, famoso por diversos motivos.

Um dos menos conhecidos é que teria sido planeado para durar três dias, mas como no final do último dia a malta não debandava (estariam todos um bocado “anestesiados”) houve necessidade de arranjar mais música para o quarto dia.

E não é que o último artista a atuar e a mandar embora aquelas melgas todas para casa foi o grande Jimi Hendrix? Só por isso já mereceria estátua.

Quem lá esteve - por entre os “fumos” da lembrança difusa – achará que foi tudo uma grande e boa “caldeirada”.

Recorro a um dos meus livros essenciais - “Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas de José João Almeida” – para referir que ali “caldeirada” se define como uma situação anárquica e de muita confusão.

Terá sido o espelho do que se passou por aqueles dias de 1969 naquela quinta de gado leiteiro do Sr. Max Yasgur (pobres vacas, que o leite nunca mais foi o mesmo) ao lado da vila de Woodstock.

Enfim, tudo isto é pretexto para falar aqui da receita de “caldeirada”.

Das que se comem.

Uma Caldeirada de Peixe, não das outras que também se comem, mas não levam barbatanas. E mesmo das que têm barbatanas não falarei das de bacalhau, nem das que são feitas com peixes de rio, ou ainda das típicas da Murtosa, com enguias.

Esta caldeirada é feita com peixe fresco de mar. Receita que aprendi com alguns mestres da cozinha, embora - como bons artistas que variam a performance conforme a audiência - às vezes faziam uma puxadinha (refogado), das outras vezes metiam tudo no tacho em cru, "dependendo dos peixes” (isso ainda compreendo) e "da companhia que estava sentada à mesa” (isso é que é um mistério…)

O termo “caldeirada” deve vir de "caldeiro”, a antiga panela de ferro onde se cozinhava. E a génese da receita tem a ver com a atividade piscatória.

Os pescadores saíam para a faina e tinham que comer a bordo. Levariam alhos, cebolas, algumas boas batatas, tomate e o resto seria dado pelo mar.

Ainda hoje existe a mania que uma boa caldeirada "à pescador" deve ser feita com água do mar. Não acreditem nisso!

Com a poluição ao pé da praia teríamos que ir para o limite das 200 milhas náuticas para recolher água limpa salgada...

Na dúvida tire-se mas é a águazinha da torneira e ponha-se-lhe sal.

O tacho tem de ser de fundo espesso, preferencialmente de ferro ou de alumínio fundido.

No fundo colocam-se sempre ameijoas ou berbigão com as cascas, para que o leve guisado não pegue. Por cima deles a cebola velha, pimentos verdes, tomate maduro e alhos picados grosseiramente. Azeite, sal, pimenta e salsa. Uma malagueta desfeita para quem aprecia.

As quantidades do tempero são a gosto. Normalmente e em relação ao sal (que é o mais importante) deita-se uma mão-cheia num tacho grande.

Estando o tacho neste preparo, das duas uma: ou refoga-se, introduzindo a meio da puxada o vinho branco (ou moscatel), e só depois o resto dos ingredientes, ou faz-se tudo em cru, às camadas alternadas.

Num caso ou no outro é a teoria das camadas que prevalece. Mas esta teoria é científica, como veremos.

Se preferimos a caldeirada com molho grosso e a batata meia desfeita, esta deve ser posta por baixo e começamos a cozinhar sem o peixe por uns 15 minutos.

Se apreciamos a batata mais rija então colocamos tudo ao mesmo tempo: camada de batata, camada de peixe (os mais rijos em baixo), intercalando com pimento e tomate e terminando sempre com duas gordas sardinhas para dar gosto.

Peixes e moluscos que entram obriatoriamente: pata roxa, safio de posta aberta, lulas.   Peixes de que mais gosto para juntar a esses: corvina e tamboril (com os fígados postos por cima).

As lulas frescas por baixo, tamboril por cima e o resto mais ou menos "ao molho", respeitando a teoria das camadas e terminando com as sardinhas e o fígado do tamboril.

Tempo de lume quando se faz tudo em cru: cerca de uma hora nos fogões das nossas casas, começando com o fogo espevitado e acabando a nossa faina a apurar lentamente.  Nunca mexemos com colher, mas abanamos de vez em quando o tacho.

E provamos para ver como está o sal e o picante, tendo em atenção que o odor forte tem influência no paladar.

O vinho para a caldeirada tanto pode ser branco como tinto.

Se lhes apetecer um branco, seja ele gordo, estagiado, branco "de Inverno". Qualquer bom Dão de Encruzado vai às mil maravilhas. Ou então um Bairrada, Luis Pato Vinha Formal, por exemplo. E porque não um Alvarinho? Soalheiro Primeiras Vinhas é excelente. Para tintos escolham-se os novos e adstringentes. Bairrada de novo, Quinta da Dona, Casa de Saima, feitos sem desengaço - vinhos com viço e taninos.

-Sobre Manuel Luar-

Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.

Texto de Manuel Luar
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

10 Dezembro 2025

Dia 18 de janeiro não votamos no Presidente da República

3 Dezembro 2025

Estado daquilo que é violento

26 Novembro 2025

Uma filha aos 56: carta ao futuro

19 Novembro 2025

Desconversar sobre racismo é privilégio branco

5 Novembro 2025

Por trás da Burqa: o Feminacionalismo em ascensão

29 Outubro 2025

Catarina e a beleza de criar desconforto

22 Outubro 2025

O que tem a imigração de tão extraordinário?

15 Outubro 2025

Proximidade e política

7 Outubro 2025

Fronteira

24 Setembro 2025

Partir

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

17 novembro 2025

A profissão com nome de liberdade

Durante o século XX, as linhas de água de Portugal contavam com o zelo próximo e permanente dos guarda-rios: figuras de autoridade que percorriam diariamente as margens, mediavam conflitos e garantiam a preservação daquele bem comum. A profissão foi extinta em 1995. Nos últimos anos, na tentativa de fazer face aos desafios cada vez mais urgentes pela preservação dos recursos hídricos, têm ressurgido pelo país novos guarda-rios.

27 outubro 2025

Inseminação caseira: engravidar fora do sistema

Perante as falhas do serviço público e os preços altos do privado, procuram-se alternativas. Com kits comprados pela Internet, a inseminação caseira é feita de forma improvisada e longe de qualquer vigilância médica. Redes sociais facilitam o encontro de dadores e tentantes, gerando um ambiente complexo, onde o risco convive com a boa vontade. Entidades de saúde alertam para o perigo de transmissão de doenças, lesões e até problemas legais de uma prática sem regulação.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0