Há uma aura especial que envolve os Jogos Olímpicos. Na maior parte dos casos, os melhores atletas de cada modalidade demonstram um enorme respeito e admiração pelos seus maiores competidores, as rivalidades nacionais são exaltadas, mas colocadas ao serviço do desporto e da competição salutar, e de modo geral reina uma atmosfera de cordialidade e cumplicidade na aldeia olímpica. O comportamento das e dos atletas consegue, em alguns momentos, permitir superar as tensões políticas e diplomáticas que regem, por vezes, as relações entre as suas próprias nações. Mas nem este oásis de aparente cordialidade escapa ao clima de polarização e de propagação do ódio em que atualmente vivemos.
Depois da encenação de indignação provocada pela cerimónia de abertura, a maior polémica surgiu após o combate de boxe entre a atleta argelina, Imane Khelif, e a italiana, Angela Carini. Após 40 segundos de combate, a boxeur italiana abandonou o combate, tendo motivado uma discussão acesa sobre o sexo e o género da argelina. A polémica não tem origem apenas nestes Jogos Olímpicos e deriva de uma suposta análise realizada pela International Boxing Association (IBA) que teria detetado cromossomas XY em Khelif, suscitando dúvidas sobre se esta seria, de facto, uma mulher. Ora, uma análise apurada aos factos permite não só despistar a credibilidade e quaisquer fundamentos das alegações lançadas pela IBA, como as dúvidas lançadas sobre se Khelif seria uma mulher trans. Imane Khelif é uma mulher. E é-o quer no sexo, quer no género. Mas, para mim, mais importante que o fundamento da discussão, é analisar as consequências das reações de ódio que toda esta controvérsia estéril provocou.
A cena política americana é, talvez, o expoente máximo do clima de polarização que vivemos, em particular se olharmos para a forma triunfal com que se verificou a ascensão do populismo de extrema-direita, que Trump personifica e cujo movimento lidera globalmente. Não por acaso, na sequência deste incidente nos Jogos Olímpicos, Donald Trump, que pouco ou nada deve saber sobre os JO, muito menos sobre a Argélia ou sobre Itália – a não ser na estrita medida em que isso envolva eventuais investimentos que possa ter em algum destes países – apressou-se a propagar a desinformação e a ampliar o alcance da teoria de que Khelif seria um homem.
A forma como os algoritmos das redes sociais potenciam a polarização – dela se alimentando – permite a propagação online extremamente rápida do ódio, tornando praticamente impossível que a verdade se afirme nos debates e fazendo com que cada utilizador procure, apenas, a informação que confirma as visões pré-concebidas que já tem. E esta propagação fácil e rápida desmaterializa, de certo modo, o ato em si. Como se, por ser online, por não ser cara a cara, diminuísse o facto de que do outro lado da rede estão pessoas.
Este tema tem sido alvo de inúmeros debates e sempre surge quem defenda que grande parte destes atos – muitos deles cometidos por políticos, jornalistas ou comentadores, todos eles com amplas plataformas mediáticas e cujas palavras atingem um largo alcance – estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão. Estas formas vis de ódio – tantas vezes assumindo a forma clara de assédio sistemático – são particularmente direcionadas a grupos específicos de pessoas. Grupos que são minoritários não pelo seu número, mas apenas na forma como podem viver a plenitude dos seus direitos. É o caso do ódio que é permanentemente dirigido às mulheres e que assume uma dimensão que torna quase impossível a plenitude da sua essência. São horas de debates sobre a condição feminina, são leis que se passam sobre os seus corpos, são comportamentos e indumentárias que lhes são exclusivamente impostos, são as desigualdades perpetradas século após século. De tal modo que aos homens tudo lhes é permitido, exceto serem femininos.
Este ódio dirigido às minorias de direitos – por questões de género, sexo, etnia, religião, orientação sexual, etc. – começa sempre nas palavras. Começa sempre com a diminuição da condição humana de um ou mais grupos específicos e conduz, quase invariavelmente, às ações que condicionam a sua existência pacífica ou no acesso ao gozo pleno dos seus direitos humanos inalienáveis. Nos últimos dias, no Reino Unido, vários milhares de pessoas saíram à rua proferindo palavras de ódio, atacando imigrantes, destruindo os seus negócios. Foi a demonstração cabal do que acontece perante a ausência de consequências para as muitas palavras de ódio que são difundidas diariamente nos jornais, nas revistas e nas redes sociais, alimentando os ânimos de uma turba capaz de revelar o pior do que somos enquanto humanos.
Temo que seja cada vez mais tarde para deter este movimento. É um movimento popular que tem apoio e financiamento de pessoas muito poderosas e com muitos recursos, como é o caso de Elon Musk ou Peter Thiel, ambos financiadores da campanha de Donald Trump e JD Vance. Para o comprovar, temos as declarações recentes de Peter Thiel, que afirmou que “o liberalismo [político] está esgotado, a democracia, seja lá o que isso for, está esgotada; por isso, nós temos que começar a discutir bem para lá da Janela de Overton” (um termo utilizado para descrever o espectro de políticas aceitáveis pela generalidade do público num determinado momento).
Não creio que nos possamos dar ao luxo de continuar a ignorar o ambiente que está criado e o quão propício é à propagação do ódio. Como o próprio Thiel afirmava, a realidade política dos Estados Unidos nesta década tem fortes paralelismos com a Alemanha de há um século. E a da Europa também, acrescento eu. Que nos sirvam de inspiração as palavras de Imane Khelif, após toda a polémica que a envolveu e que possam orientar a nossa resposta ao(s) discurso(s) de ódio: “Envio uma mensagem a todas as pessoas do mundo (…) para que se abstenham de intimidar os atletas, porque isto tem efeitos, efeitos graves. Pode destruir as pessoas, pode matar os pensamentos, o espírito e a mente e pode dividir as pessoas. Por isso, peço que se abstenham de praticar bullying.”