A canção ainda não chegou ao fim, mas já se batem palmas em êxtase. Entre olhos fechados, sorrisos abertos, acenos de cabeças ao sabor das melodias, a voz de Surma ecoa pela sala pintada de negro, colorida pelos ouvintes e pela energia viva da artista, que enche todo o espaço.
De repente, os olhares começam a desviar-se, e os rostos deixam-se invadir, primeiro pela estranheza, a surpresa, depois por um sorriso de felicidade, o agrado pelos corpos que surgem à sua frente, materializando a música, e tornando-a ainda mais viva. São dois bailarinos, vestidos da cor da sua pele, por quem ninguém esperava, mas que se tornam em mais uma surpresa, que se junta a todas as outras descobertas que o dia permitiu.
Ao centro, Surma encerra com a sua música um dia diferente na Gulbenkian, dirigido aos jovens universitários. Na quarta-feira, dia 14 de novembro, a Gulbenkian acordou para um dia aberto às universidades.
Sim, na Sala 2 há speed dating com gulbenkianos
Quem entra na sala 2 do Edifício Sede, depara-se com a difícil tarefa de escolher um gulbenkiano com o qual deseja passar os próximos sete minutos. Ana Barata, uma das responsáveis pela Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian e Miguel Fumega, pertencente à equipa de produção de exposições do Museu Gulbenkian são dois deles.
Embora em todos os gulbenkianos se verifique o sorriso aberto e o olhar disponível de quem se senta para falar com jovens sobre o que faz, cada um deles se oferece para entregar conhecimento e diálogo nas mais diversas áreas.
Miguel Fumega faz parte há já bastantes anos da equipa responsável por erguer e acompanhar as exposições da Gulbenkian. Com um semblante aberto, Miguel conta aos jovens como é que a produção permite que ideias e conceitos se transformem em mostras de arte.
Nos minutos que o tempo faz parecer segundos, Miguel explica como é que uma exposição, cuja logística e trabalho transparente de retaguarda podem passar completamente despercebidos ao visitante, envolve, por um lado, governos e dezenas de carros de patrulha ou, por outro, preocupações de milímetros ou de escolhas rigorosas de materiais para que a obra nada perca até ao momento em que se encontra efetivamente disponível para ser apreciada.
“Pose e Variações. Escultura em Paris no tempo de Rodin”, “Al Cartio e Constance Ruth Howes de A a C” e “Arte e Arquitetura entre Lisboa e Bagdade” são algumas das mostras de arte que a Gulbenkian oferece agora, e que jovens universitários apreciam neste dia especial, colorido pelos panfletos amarelos e pelas cores de outono que pintam os jardins da Fundação.
A orquestra Gulbenkian abre as portas do ensaio
Daqui também se veem os jardins. Estão lá ao fundo, depois do palco. Mas mais do que ver, o fundamental no Grande Auditório é ouvir. A Orquestra Gulbenkian ensaia o seu reportório, e qualquer um dos participantes pode assistir a uma pequena amostra do que são os bastidores e o trabalho de muitos meses que os concertos condensam em minutos, cuja performance é ditada pelos registos dos compositores.
Lorenzo Viotti é o maestro da Orquestra de formação clássica. Num dia em que a Gulbenkian abre a porta aos jovens universitários, os estudantes têm a possibilidade de contemplar um italiano de vinte e sete anos em cima do pódio, a dirigir os músicos. Muito afastados da formalidade das roupas e da solenidade dos concertos, os músicos atuam para uma plateia de jovens que os observa com toda a atenção.
Em cima do palco fala-se em inglês, embora a música seja uma linguagem universal. À medida que se aperfeiçoam os detalhes, as repetições melódicas vão fazendo as passagens soar cada vez melhor. As cabeças levantadas na audiência já não admiram o teto alto daquela sala, os diferentes tons de castanho ali colocados estrategicamente para a sensação do som ser o mais perfeita possível.
Não há sequer um único telemóvel nas mãos daqueles estudantes académicos. Ali todos sabem que o trabalho, o conhecimento e arte andam de mãos dadas, e o público opta por admirar a maneira como a música se transforma com o tempo e caminha a perfeição com entrega total. Nada mais importa neste auditório.
As palavras também fazem olhos e narizes
À medida que se aproxima a hora de receber um retratómato, jovens com sacos serigrafados vão abandonando o Grande Auditório. Retratómatos são máquinas de fazer retratos onde está um desenhador-retratista que dá vida ao papel através da descrição de quem aceita ver-se desenhado. Ao todo são seis.
O desenhador não tem acesso à imagem de quem desenha, mas apenas à descrição da própria pessoa que retrata. No final, só é preciso recolher o retrato por uma ranhura e contemplar o resultado da interseção entre a atividade de encontrar palavras para nos definirmos fisicamente e a arte de uma mão que lhes acede e as imortaliza no papel.
“O melhor é não criar expectativas”, avisa o desenhador. Ao sentarmo-nos para nos descrevermos, somos colocados perante um espelho, que nos mostra uma parte dos jardins, que se encontram por detrás das nossas costas. Somos nós e nós próprios à distância de alguns centímetros e à distância de um papel desenhado. Mas quão distantes estamos de nós mesmos?
Somos, depois, bombardeados com questões em busca de respostas, que são fundamentais neste exercício. Ao lado um rapaz ajeita o bigode, enquanto é retratado. Começa-se pelos olhos e depois pela linha da pálpebra inferior. Talvez ninguém tenha perdido tanto tempo a hesitar sobre a elipsidade da curvatura das pálpebras.
“O meu nariz é normal”, responde um rapaz sentado à direita. Ouve-se, depois, um riso em reação vindo de dentro do retratómato. “O que estudas?”, pergunta o desenhador. A pergunta pode parecer um pouco desnecessária, tendo em conta que habilitações académicas não interferem com a descrição do rosto. “É mais por curiosidade, para não ficarmos em silêncio”, esclarece o desenhador.
“Se não ficares parecida, a culpa é do sistema. Se eu te visse ao vivo, desenhar-te-ia como és”, responde o retratista quando o retrato é recolhido pela ranhura.
Receita médica para a alma, por favor
A caminho do consultório, pode ler-se algures numa parede “A poesia é a minha revolução”. À direita, está já a formar-se uma fila de jovens que procuram uma receita médica musical. A música aqui é uma terapia. À medida que se aproximam dos médicos, o sorriso nos rostos vai aumentando.
Samuel Úria, Hélio Morais e Noiserv são aqui os doutores. Têm bata branca, estetoscópio e a solução musical na ponta da língua. No entanto, a musicoterapia está aqui para servir estados de alma. E estados de alma dizem apenas respeito ao paciente e ao musicoterapeuta.
Surma fecha o Dia dos universitários na Gulbenkian
Agora é já de noite. É mais fácil perder-se nos jardins, ou mais difícil descobrir o caminho até aos lugares. Houve já tempo de meter o nariz nos Arquivos da Gulbenkian, ou até conhecer os guardiões do seu Jardim, entre muitas outras atividades que esta quarta-feira na Fundação trouxe aos estudantes académicos.
O concerto da Surma está quase a terminar, e a felicidade nos rostos que sentem a música é comum a toda a plateia. A atenção divide-se em três a partir do momento em que os bailarinos entram. No final, o público levanta-se e com isto termina o Dia Aberto.
Com esta iniciativa, os jovens universitários puderam desfrutar de um dia em que as portas da Gulbenkian se abriram de forma especial, propositadamente para eles. A arte, as artes, a cultura, estiveram à distância da condição de estudante, e os panfletos amarelos do evento coloriram os jardins e as salas da Fundação naquelas horas.