De que serve a política sem utopia? Seremos capazes de construir um futuro diferente se não formos capazes de o imaginar? Provavelmente, não. E, no entanto, tão poucas utopias e futuros alternativos se têm discutido. Pior ainda, aqueles que discutem futuros alternativos fazem-no, atualmente, numa lógica reacionária, classista, excludente. A utopia substituída pela distopia.
A falta de imaginação é tanta que até ao necessário pacote de apoio europeu criado em resposta à pandemia se chamou Plano de Recuperação e Resiliência. A resiliência, esse termo tão em voga e tão mal usado, e que na física significa o regresso do material à sua forma original: queremos mesmo voltar à situação anterior à pandemia? Queremos que o “novo normal” seja o “normal” da destruição ecológica e do alargar do fosso entre uma minoria cada vez mais rica e poderosa e uma maioria cada vez mais ampla e mais despossuída? Perante um evento desta dimensão, não deveríamos, pelo menos, tentar imaginar algo de radicalmente diferente daquilo que conhecemos?
O desafio não é fácil, claro está, mas também por isso é essencial. Numa famosa analogia de Fernando Birri, muitas vezes erradamente atribuída ao grande Eduardo Galeano, é-nos dito que a utopia é como o horizonte, sempre distante por mais que caminhemos ao seu encontro, e que é esse o seu principal mérito: fazer-nos caminhar na sua direção. Sou um pouco mais otimista e gosto de imaginar a utopia como um jogo da macaca onde somos capazes de ver a próxima utopia, apontamos para ela e, quando a ela chegamos, temos de regressar ao ponto de partida para voltar a apontar para uma nova utopia, ainda mais difícil de conseguir que a anterior. E tudo isto aos saltinhos e coxeando.
Este é, quero crer, um desafio principalmente para a esquerda, o campo ideológico onde me situo. Historicamente, coube à esquerda, conceito entendido no seu sentido mais amplo e onde se inclui o campo libertário, ser o porta-estandarte das utopias de futuro. Não sendo sua propriedade exclusiva, a esquerda - não só os partidos, mas também, quando não sobretudo, os trabalhadores e cidadãos organizados em associações e cooperativas - tinha a defesa das utopias no âmago das suas ações. Grande parte dos avanços sociais dos séculos XIX e XX foram considerados durante muito tempo como meras utopias inalcançáveis. Se se tornaram realidade foi porque ao longo de anos e décadas houve quem nelas acreditasse e as defendesse. Ser capaz de sonhar um mundo novo para o poder concretizar.
Esse espírito sonhador e utópico tem vindo a desaparecer, sendo Portugal também um reflexo dessa realidade. Perante uma nova investida de, por um lado, uma direita ultra-reacionária e, por outro, uma direita ultra-libertária, a esquerda refugia-se na defesa das conquistas passadas; tarefa essencial, sim, mas insuficiente para preparar o futuro e agregar as novas gerações.
Não são poucas as utopias necessárias. Uma delas que, pela urgência e pelos potenciais impactos globais, deve ser prioritária é a utopia de um planeta ecologicamente sustentável. Nunca é demais dizê-lo: o ponto de partida é, no presente, de uma situação de insustentabilidade ecológica. E, pior, é-o de um modo desigual, onde uma pequena e mais rica parte da população mundial tem um impacto muitíssimo maior que a maioria da população, sendo tristemente irónico o facto de ser essa mesma parte que mais sofrerá com as múltiplas crises ecológicas. Tirar o planeta da situação de insustentabilidade ecológica em que se encontra vai exigir medidas fortes e exigirá que se traga a debate temas como a necessidade de abandonar uma visão produtivista da economia, assente na extração de recursos finitos e numa política de crescimento económico dependente do consumo insustentável.
Pensar as utopias à esquerda é também ter a coragem de desafiar princípios que nos parecem tão básicos como o da centralidade dos empregos remunerados - e do total de horas que a eles dedicamos - nas nossas vidas. Por extensão, podemos e devemos pensar numa sociedade pós-produtivista onde se reduza drasticamente o número de horas semanais dedicadas a um emprego, pensando em novos direitos como um rendimento básico incondicional, para que possamos, enfim, ser aquilo que quisermos ser.
Precisamos de novas utopias e de imaginários alternativos. O relançamento das forças políticas da esquerda e da ecologia passa - tem de passar - também pela sua capacidade de voltar a dar aos cidadãos um horizonte de futuro radicalmente diferente e melhor do que o presente. Nesse esforço, é essencial que os partidos se abram à cidadania, que sejam capazes de albergar novas visões e novas ansiedades, novas práticas e novas vozes. Só assim conseguiremos recuperar as utopias perdidas.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem Digo (no prelo). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.