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Opinião de Jorge Pinto

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente, e doutor em Filosofia Social e Política. A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI, e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade. Escreveu ainda o livro Tamem digo. Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Errar

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto fala-nos de como errar é a mais livre e a mais pura forma de andar a pé.

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Há um ano, publicava neste espaço um texto sobre andar a pé e como isso nos fazia humanos; hoje volto ao tema, detalhando uma das mais puras formas de o fazer: errando.

Errar é partir. Avançar, parar, continuar, sem se saber que caminho se fará. Tendo como partida um ponto mais ou menos aleatório que nos convenha naquele momento, damos um passo. Depois outro e outro e começamos a andar. Não levamos relógio, o sol nos dirá mais ou menos a hora do dia. Não levamos mapa, conhecemos minimamente o terreno e, se nos perdermos, bastarão outros tantos passos para nos voltarmos a encontrar. 

Mas talvez a errância sirva precisamente para nos perdermos; para deixarmos que os nossos pés nos levem e nos arrastem por sua própria vontade. Errando, descobrimo-nos quando nos perdemos. É na evasão mental que a errância nos permite que melhor nos podemos abstrair, como se caminhando num solo feito de dia-a-dia, em que os nossos pés calcam todos os problemas, angústias, inquietações, libertando-nos e abrindo portas que apenas assim conseguimos transpor. 

Se tivermos confiança suficiente, errando podemos até tornar-nos novas pessoas. Naqueles segundos em que, de pés na terra e a mente no éter, a realidade parece transformar-se. De repente, um pensamento inesperado cruza-nos a mente, algo se transforma. Os pés continuam a mover-se, agora de forma automática, como se de um autómato se tratasse. Agarramos aquele pensamento, tentamos que não nos escape. Continuamos, vemo-nos no presente, mas um presente diferente daquele que conhecemos. Estamos ali, sabemos que estamos ali, mas estamos também noutro lugar. Somos nós, sim, mas é um outro eu que por momentos vemos quando nos deixamos levar pela errância. E se?

Errar é o verbo andar conjugado no presente. Não há passado, não há futuro, há o instante em que estamos, o que ele nos dá e o que ele nos tira. Colocando-nos no tempo, abstrai-nos do espaço. Errando, estamos ali, mas estamos também em qualquer lugar, real ou imaginado, onde o nosso cérebro nos queira levar. 

É esta dimensão temporal na qual os nossos pés nos prendem ao presente que foi capturada pelo fotógrafo francês Raymond Depardon num livro que dedicou à ideia de errância. Num livro com dezenas de fotografias a preto e branco, resultado das muitas viagens pelo mundo feitas pelo francês, vemos representações do presente, um presente apenas possível porque Depardon errava. Vemos sobretudo paisagens, naturais e humanas, mas vemos poucas pessoas. Quase nenhumas, na verdade. Das poucas vezes em que as fotografias nos mostram pessoas, estas aparecem quase sempre sozinhas, como querendo reforçar que a errância é um ato do presente, mas é também um ato solitário. Não que Depardon fuja das pessoas; vemos várias aldeias e cidades nas suas fotos, mas quase não vemos pessoas. Esta escolha não pode ter sido inocente num livro sobre errância.

Em conjunto com as fotografias, é também interessante ler o que escreve Depardon: 

“A aventura da errância permitiu-me viver no presente, de me sentir bastante bem no presente. Tenho um problema com o presente. Penso muito no passado, sou obcecado com o passado, por amores mal partilhados, pelos arrependimentos, pelos falhanços, pelos prazeres e alegrias que relembro ao longo das minhas viagens. E ao mesmo tempo, fantasio, projeto-me no futuro. (…) A errância não está, ainda assim, associada ao sentimento de estar, de ficar em qualquer lugar, mas ela reside, pelo contrário, na procura de qualquer coisa. Esta errância é avançar.”

Acrescenta, umas páginas à frente, uma outra mensagem-chave: “a ideia forte da errância é que não ficamos com nada de ninguém. Não açambarcamos um lugar. Um errante é alguém que passa, que não se apropria, que não rouba.” Errar é andar sabendo que apenas somos donos dos nossos próprios passos.

De todas as formas de andar a pé, a errância é a que mais liberdade oferece. Ato solitário por definição, erramos apenas com nós próprios. Num diálogo interno, introspetivo, reflexivo, contemplativo. É esta dimensão que me parece ser perfeitamente capturada naquele que é para mim o melhor livro sobre errar e, porventura, sobre andar a pé: “O homem que passeia”, banda-desenhada do mestre Jiro Taniguchi. 

Permitam-me uma breve discussão sobre a tradução do título desta obra e o que ela implica. Olhemos para as traduções do título noutras línguas e comparemos com a tradução portuguesa: The walking man, El caminante, L’uommo che cammina, L’homme qui marche. Excetuando a tradução espanhola, aberta a todas as possibilidades e a tudo aquilo que um caminhante pode ser, as restantes parecem limitar à partida aquilo que o “homem” da história faz. 

Mas o nosso personagem, este nosso homem do qual nunca saberemos o nome, faz muito mais do que apenas andar. Ele erra, percorrendo os caminhos que conhece mas deixando-se surpreender e levar por qualquer surpresa que pareceria banal ou passaria desapercebida se o homem fosse apenas a andar. Errando em silêncio, o nosso homem contempla o canto do passarinho, procura um brinquedo que se perde numa árvore, surpreende-se com uma chuva inesperada que o deixa encharcado e feliz com isso. Momentos fugazes do quotidiano que, errando, ganham toda uma outra dimensão.

Peço ajuda a uma conhecida japonesa para perceber que nuance poderá haver no título original: 歩くひと. Será que “o homem que anda” ou o “o homem que caminha” capturam toda a essência que Taniguchi quis dar ao livro? Diz-me que a leitura imediata é, efetivamente, a de o homem que caminha. Explico-lhe a história do livro, o que retrata e de como esse homem anda a pé. Acrescento que a tradução portuguesa, contrariamente a outras, refere o ato de passear e não o ato de andar a pé. A isto responde dizendo que, efetivamente, passear é muito apropriado. Que a palavra japonesa refere-se a andar no sentido físico mas que pode também ter um sentido metafísico de, digamos, caminhada espiritual.

O homem que passeia talvez seja uma tradução melhor que as outras. Ainda assim, estou certo de que o “homem que erra” seria o título mais adequado – embora isso pudesse levar alguns leitores a comprar o livro a pensar na outra conotação do verbo errar.

Porque errar é ter os pés na terra e a mente em toda a parte.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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