Primeiro, damos um passo. Depois outro. E outro, e outro e outro. E, de repente, começamos a viajar. Levados pelos nossos pés que avançam de forma tão autónoma como quando respiramos sem disso nos darmos conta, marchamos.
Marchando, começamos a verdadeira viagem, aquela que nos leva ao interior de nós próprios. Quem, marchando, não foi nunca assomado por recordações, ideias ou até revelações? Quantos de nós não tivemos as melhores das ideias quando, marchando, deixávamos o nosso cérebro evadir-se?
A marcha exige tempo. Só com tempo nos conseguimos libertar do dia-a-dia. Só após algumas dezenas ou centenas de passos o nosso cérebro se transforma; confortável pelo embalar dos passos, o cérebro liberta-se, permite-se a esquecer a realidade que nos molda e leva-nos para onde quer verdadeiramente estar. Marchando, transformamo-nos em nós próprios.
É no meio da natureza que a marcha ganha todo o seu esplendor. Deambulando por caminhos mais ou menos trilhados, somos assoberbados pela beleza de tudo o que nos rodeia. O voo de uma qualquer borboleta prende a nossa atenção e obriga-nos a fixar os padrões das suas asas; o sol, brilhando como todos os dias, tem agora um brilho único e inigualável; a água do riacho que ao longe se ouve torna-se na fonte primitiva de toda a vida do planeta.
É preciso que nos saibamos perder enquanto marchamos. É esta a filosofia da marcha que tantos autores ao longo de séculos têm trabalhado, de Thoreau a Kant, passando por Rousseau ou os peripatéticos. Mas será marchar a palavra indicada? Penso no livro marcher do filósofo francês Frédéric Gros, traduzido em Portugal como caminhar e não estou certo de qual das palavras ser a indicada.
Caminhar implica caminhos o que rapidamente nos leva a trajetos já conhecidos e marcados. E é preciso que nos possamos perder. É preciso dar um passo fora do trajeto marcado, e depois outro e outro. E dar de caras com uma qualquer surpresa, uma sombra idealmente localizada, uma serpente devorando a sua presa, uma colónia de formigas num frenesim destoante da calma que o rodeia.
Por seu lado, marchar pode fazer-nos pensar nas marchas militares. Ou na modalidade desportiva. Mas marchar não é um desporto; marchar é anti-desportivo pois exige a ineficácia. Onde num desporto se procura o atalho, o caminho mais curto ou mais rápido, a certeza do trajeto repetido à exaustão, a marchar exige todo o contrário. Só marchamos verdadeiramente quando nos permitimos a ser ineficazes.
Guardemos o marchar, o caminhar, o andar a pé, o deambular. O sair, o avançar, o perder-se, o apreciar a beleza, o ver a vida como ela é, em toda a sua diversidade. Termino com uma longa citação do geógrafo anarquista Élisée Reclus, extraída do seu Histoire d’un ruisseau e onde nos dá conta das suas marchas:
E no entanto, não há qualquer desordem nesta fabulosa diversidade! Pelo contrário, as plantas livremente agrupadas, seguindo as suas afinidades secretas e a natureza do terreno onde se encontram, constituem pelo seu conjunto um espetáculo que enche a alma de uma singular impressão de harmonia e paz. (…) É verdade, nesta ravina, como na Terra inteira, a batalha da vida pelo usufruto do ar, da água, do espaço e da luz não cessa um instante entre as espécies e as famílias vegetais; mas esta luta não foi ainda regularizada pela intervenção do homem e, no meio destas plantas tão diversas e tão graciosamente associadas, pensaríamos estar no meio de uma república federativa onde cada existência é protegida pela aliança de todos.
É agosto, marchemos.