fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Shahd Wadi

Escrevo um poema

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi fala-nos sobre transformar os sentimentos em palavras.

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

“Se te inquirirem acerca da luta entre poesia e
morte, olha para a erva e diz sem faltar à verdade:
Nenhuma poesia é capaz de derrotar a morte.
Adia-a. Adia-a por um tempo necessário.”

Mahmoud Darwish - Na Presença da Ausência

Este é o poema que nunca quis escrever.

O medo do acontecer destas minhas palavras habitava em mim desde o nascer da caneta na minha existência. Intensificou-se severamente nos últimos meses quando apareciam de repente, sem convite, frases completas e sem hesitação sobre a partida. Montavam o meu sono, ocupando o meu corpo e ignorando todas as minhas tentativas de as afastar. Talvez insistisse em perseguir estas frases porque imaginava que se as pudesse afogar conseguiria mantê-lo aqui tal como então estava. Por isso, ficava acordada com uma borracha na mão sempre pronta para esmagar em pedaços as frases até que ficassem completamente apagadas e incompreensíveis para a morte.

Hoje não as tenho. O texto que parasitava o meu ser tornou-se em vão. 

Agora, este é o poema que não consigo escrever.

Com se as minhas palavras tivessem partido contigo.

Talvez nunca tivessem nascido em mim nem no mundo inteiro verbos que pudessem bordar a história de como o meu pai se tornou num poema.

Farouq Wadi, meu pai, nasceu e morreu no exílio, que é como quem diz nasceu e morreu escritor. A garganta da sua caneta ia-se rompendo mostrando uma história sua que só pode caber na escrita: aquela do último orvalho concebido na nossa vila de origem Al-Muzayri'a ainda antes que a ocupação israelita secasse a sua existência do mapa em 1948. A história que só pode caber na escrita de como a família lhe entregou um exílio eterno logo na tenda onde nasceu em Ramallah. A história que não pode caber no corpo de uma viagem em 1967 com o objectivo de terminar o liceu longe da guerra. Um caminho que era, sem saber, sem regresso à Palestina. A história que só pode caber na escrita de um início de um segundo exílio que começou em Alexandria e com ele a aurora de uma história de amor, com a pessoa a quem chamo hoje de mãe, que, como o exílio, nunca terá um fim. A história que só pode caber na maldade de uma frase que acompanhou, em Amã, o diploma da licenciatura: Pela sua actividade política, desaconselha-se dar emprego ao acima mencionado. É proibido viajar. A história de amor que não coube na escrita de cartas durante uma década, ultrapassou, então, as fronteiras e o cerco de Beirute. Mas só na escrita pode caber um corpo palestiniano, plantado naquela cidade sem documentos, escapando de uma explosão no seu local de trabalho, o Centro de Estudos Palestinianos, mas sem conseguir escapar ao seu aprisionamento, poucos dias antes do meu nascimento. Só na escrita pode caber a história deste meu nascimento, que teve que ser improvisado noutro país. Só na escrita. Só na escrita. Só na escrita podem caber as saudades do mar da Palestina, da sua chuva espalhada nas cidades que o meu pai habitou, nos seres que amou e em cada pessoa que o leu como se fosse um poema palestiniano. 

Só cabe na escrita a história que o meu pai não chegou a escrever sobre a sua própria partida, como não poderia deixar de ser, poética: no mesmo momento que o seu corpo adormeceu em Portugal, o seu último romance “Saudade: o abismo da Gazela” foi publicado na Palestina. A história neste livro viaja entre Portugal e Palestina, exactamente como a vida e a morte de quem o teceu!

O meu pai escolheu a "Saudade" como título para o seu último livro, como se estivesse a fixar esta mesma palavra como título para as nossas vidas daqui para frente. O romance é uma intertextualidade com versos de Fernando Pessoa, ou os seus heterónimos, versos esses que acabam por contar a história palestiniana, fazendo com que o texto se tornasse em si num poema. Um livro tão palestinianamente português. Como se o meu pai estivesse a contestar o meu desassossego eterno sobre a procura de um lugar que possa chamar meu. Como se fosse este livro uma nunca-resposta à minha pergunta sempiterna. Saudade. Talvez este seja o meu lugar.

“Quero escrever.” Foram estas as últimas palavras do meu pai, como se estivesse a dizer-nos que a morte o alcançou antes de acabar a tinta da sua caneta. O meu pai escrevia. Escrevia a arte, as pessoas, a luta, o exílio, o lugar e a Palestina. A sua história. Décadas de crónicas semanais. Centenas de romances, contos, estudos, livros de crítica literária e até livros infantis. Nenhum poema. O meu pai nunca escreveu um poema, guardou a poesia toda até ao seu texto final: ele próprio. Um poema. Simplesmente fintou a morte transformando-se ele próprio em palavras. O meu pai agarrou-se ao seu lugar eterno: ser um escritor da Palestina ocupada, ser um poema para uma Palestina livre.

Penso no meu pai, sinto dor precisamente naquele canto da minha mão onde os meus dedos acariciam o teclado e onde a minha caneta pausa o seu corpo. Como se fosse aquele lugar chamado escrita o nosso eterno abraço doloroso. Escrevo porque até o vazio é feito de palavras. Escrevo para adiar a morte mesmo depois de ter acontecido. Escrevo o meu pai, por assim dizer: escrevo um poema.

- Sobre Shahd Wadi -

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010).  Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua. 

Texto de Shahd Wadi
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

23 Abril 2025

É por isto que dançamos

16 Abril 2025

Quem define o que é terrorismo?

9 Abril 2025

Defesa, Europa e Autonomia

2 Abril 2025

As coisas que temos de voltar a fazer

19 Março 2025

A preguiça de sermos “todos iguais”

12 Março 2025

Fantasmas, violências e ruínas coloniais

19 Fevereiro 2025

No meu carro encostada à parede

12 Fevereiro 2025

Sara Bichão

5 Fevereiro 2025

O inimigo que vem de dentro

29 Janeiro 2025

O prazer de pisar os mais fracos

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

3 MARÇO 2025

Onde a mina rasga a montanha

Há sete anos, ao mesmo tempo que se tornava Património Agrícola Mundial, pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o Barroso viu-se no epicentro da corrida europeia pelo lítio, considerado um metal precioso no movimento de descarbonização das sociedades contemporâneas. “Onde a mina rasga a montanha” é uma investigação em 3 partes dedicada à problemática da exploração de lítio em Covas do Barroso.

20 JANEIRO 2025

A letra L da comunidade LGBTQIAP+: os desafios da visibilidade lésbica em Portugal

Para as lésbicas em Portugal, a sua visibilidade é um ato de resistência e de normalização das suas identidades. Contudo, o significado da palavra “lésbica” mudou nos últimos anos e continua a transformar-se.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0