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“FEMglocal”: um projeto de “investigação-ação” sobre os movimentos feministas glocais

Investigadoras pretendem “recuperar históricas memórias”, mas também “contribuir para a mudança social” em Portugal.

Texto de Flavia Brito

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Estudar a relação entre os movimentos feministas globais e locais, e recuperar memórias históricas dos feminismos em Portugal são dois dos objetivos do “FEMglocal”, um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, que pretende também cartografar os movimentos que existem em território nacional. Nas palavras das investigadoras principais, trata-se de um “projeto de investigação-ação”, que pretende analisar a visibilidade e reconhecimento que estes movimentos têm no espaço público e, assim, contribuir para a mudança social.

“O projeto é focado naquilo que são os movimentos feministas contemporâneos em Portugal, mas tem este olhar histórico. Não podemos analisar o presente sem ter esse olhar histórico”, refere Carla Cerqueira, professora associada na Universidade Lusófona, investigadora integrada no Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT), que deu a conhecer as iniciativas que levam o projeto para fora da academia.

Numa vertente pedagógica, foi criado o booklet História dos Ativismos Feministas em Portugal. “Temos levado esse booklet até às escolas, temos tentado trabalhar com professores e jovens para eles perceberem o que é que são estes feminismos, conceito que ainda é tão pejorativo, o ser feminista, que ainda é tão estigmatizante”, diz, por sua vez, Célia Taborda, também professora associada na Universidade Lusófona e investigadora no CICANT. “Estamos a tentar desconstruir essas narrativas únicas que têm sido veiculadas, ao longo do tempo e ao longo da história, para tentar que estas novas gerações tenham uma relação diferente com os feminismos, com a própria história, a história das mulheres que foi invisibilizada ao longo de tantos séculos”, continua, lembrando que as mulheres “nem sequer eram sujeitos históricos” e que, apesar de terem conseguido essa afirmação, isso não é um dado adquirido. “Como vemos, há avanços e recuos neste processo.”

Pensando na interseccionalidade, o podcast “Feminismos em ação” junta vozes da academia às da sociedade civil e dos próprios movimentos, procurando “uma diversidade” na abordagem ao tema, seja ela geográfica, étnica, etária ou de perspetivas.

Por fim, será ainda realizado um documentário que parte dos resultados da investigação, com o objetivo de ser um contributo para a recuperação da memória histórica, “para ser algo que perdure no tempo, que também possa depois ser utilizado até como uma ferramenta pedagógica”, diz Carla Cerqueira ao Gerador.

“Ao recuperar estas memórias, conseguimos dar voz ou fazer com que certas invisibilidades feministas e femininas possam ser recuperadas”, acrescenta Célia Taborda.

Não falta visibilidade, mas sim reconhecimento

Sediado na área das ciências comunicação e iniciado em 2022, o projeot “FEMglocal – Movimentos feministas glocais: interações e contradições” surge da constatação da falta de investigação nacional sobre a ligação entre a ação digital em rede e os movimentos ativistas feministas que têm vindo a emergir e a assumir uma dimensão global e local.

No âmbito da investigação, o grupo de investigadoras lideradas por Célia Taborda e Carla Cerqueira procuraram analisar as estratégias de mobilização social, de comunicação e a visibilidade mediática dos movimentos feministas transnacionais com repercussão no contexto português, tendo identificado quatro estudos de caso, nomeadamente, os movimentos Slutwalk, #MeToo, #EleNão e 8M.

Segundo Carla Cerqueira, tentaram perceber “de que forma é que os movimentos feministas, parecem mediatizados naquilo que são os meios de comunicação mainstream”, nomeadamente a imprensa. Foi feita uma recolha, exemplifica, de todas as associações e coletivos feministas, numa perspetiva longitudinal, para perceber quem é que aparece, de que forma é que aparece. “Percebemos que muitas vezes não estamos a falar de uma falta de visibilidade deste tipo de associações e coletivos, mas poderemos estar a falar aqui de uma falta de aprofundamentos, de temáticas, de reconhecimento daquilo que são os feminismos.” É a partir destes resultados da investigação que o grupo decidiu desenvolver outras vertentes pedagógicas.

“Vemos que, muitas vezes, a grande questão é a forma como se enquadram estes temas, sem nenhuma contextualização, sem nenhum aprofundamento. Há temáticas que são mais mediatizadas [como a violência doméstica, violência na intimidade ou o assédio], mas nem sempre isso contribui para uma discussão aprofundada sobre o fenómeno social. Claro que vemos, ao mesmo tempo, que há uma evolução”, refere Carla Cerqueira, estabelecendo uma diferenciação ente “visibilidade e visibilização, ou visibilidade e reconhecimento”.

No caso do #MeToo, o projeto analisou também a vertente de opinião na imprensa, uma área com menos investigação académica. "Neste caso em concreto, verificámos, por exemplo, que estamos perante aquilo que é uma completa polarização de discursos. Isto, se calhar, leva-nos novamente à questão: será que se contribui para uma discussão pública séria sobre o que são, efetivamente, as questões de assédio sexual nas diferentes esferas? Se calhar esse é um ponto importante, até porque nós, ao fazer este estudo, estamos sempre a analisá-lo através da complexidade que ele tem. Não podemos falar destas questões sem falar, por exemplo, da proliferação dos antifemininismos, que também acabam por estar ali visíveis, que de algum modo estão conectados àquilo que é também o desenvolvimento de movimentos ligados à extrema-direita.” Todas estas questões foram problematizadas, explica Carla Cerqueira.

Quem tem voz dentro dos movimentos?

A falta de interseccionalidade é outra questão muito presente. “Quem aparece são sempre as mulheres brancas dentro de um ideal de beleza normativo que corresponde a um ideal de vítima e, portanto, isso também nos permite a discussão deste movimento, que começa precisamente para trazer a voz e uma discussão sobre as questões da interseccionalidade: quem é que não tem voz dentro deste movimento que começa precisamente para trazer a voz e uma discussão sobre as formas de violência sexual sobre mulheres negras?” Adicionalmente, as celebridades são aquelas que acabam por alavancar uma discussão pública.

Sobretudo no #MeToo mas também no 8M – Greve Feminista Internacional , “encontramos, por um lado, um discurso que apela à interseccionalidade, mas depois essa interseccionalidade não está presente naquilo que são as vozes que aparecem, que têm a expressão. E estamos a falar de uma expressão que, às vezes, não tem só a ver com a cultura jornalística, mas tem a ver com uma expressão dos próprios movimentos”, diz Carla. “Se calhar é um bocado esse contributo também que pretendemos dar, esta reflexão com os próprios movimentos para pensarem até nas próprias estratégias de comunicação.”

Assimetrias geográficas

O projeto procurou mapear as associações e coletivos feministas, para perceber a existência de assimetrias em termos geográficos no país. “Verificamos que realmente quase não encontramos nada no Alentejo, no Algarve ou no Minho, mais a norte”, diz Célia Taborda. “Há uma concentração nos grandes centros urbanos, o que também nos leva a refletir sobre as associações, ou como é que os feminismos podem chegar a outras partes do país, se não estão lá representados esse tipo de associações ou coletivos.”

Como explica a investigadora, na Primeira República os feminismos estiveram muito mais ativos, sobretudo o ativismo, mais do que o feminismo como movimento social. “Depois com a ditadura houve um apagamento, um silenciamento praticamente desse primeiro movimento feminista. Em termos históricos é como se houvesse um volte atrás”, analisa.

“Quando estamos em democracia temos que recuperar essas memórias que ficaram quase apagadas durante a ditadura. Estas discrepância ou assimetrias geográficas podem refletir, de alguma forma, este contexto histórico e, por isso, é que estamos a estudar em que medida estas singularidades ou especificidades portuguesas têm a ver com a própria história”, explica.

Segundo as investigadores há ainda muita investigação que precisa ser feita para cobrir todas as áreas ligadas ao feminismo em Portugal. "Dessa análise que fizemos, em breve, ficará disponível uma plataforma que é um mapa onde vamos colocar a informação, para que as pessoas tenham uma ideia de onde estão localizadas, quer associações, quer coletivos, e onde tenha a sua caracterização também. Pode ser uma ferramenta útil para quem fizer, por exemplo, a cobertura [jornalística] de alguns temas", conclui Carla, sobre esta plataforma colaborativa que poderá ser constantemente atualizada.

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