Em abril deste ano o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) lançou um concurso de apoio à Escrita e Desenvolvimento de Argumento. Ao todo, foram admitidos 1.198 projetos e, entre esses, 10 foram escolhidos para a atribuição de 25 mil euros aos cinco melhores e seis mil aos restantes. O júri constituído pela diretora de conteúdos da Netflix, Verónica Fernández, o adjunto de comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian, Luís Proença, o escritor Possidónio Cachapa, a jornalista Isabel Lucas e o realizador Jorge Paixão da Costa fez a pré-seleção dos projetos e, no passado dia 10 de agosto, foram divulgados publicamente os resultados.
“Finisterra” (ficção), de Guilherme Branquinho e Leone Niel, e “This is Not a Kanga” (documentário), de João Nuno Pinto, Fernanda Polacow e Bruno Morais Cabral, são dois desses projetos apoiados com 25 mil euros e 6 mil euros, respetivamente. Numa altura em que o meio audiovisual atravessa dificuldades trazidas pela covid-19, este apoio representa um incentivo.
Os projetos ainda se encontram numa fase embrionária, uma vez que estão ainda num momento inicial do processo criativo - relembre-se que o apoio se destinava a essa mesma fase inicial - mas Guilherme Branquinho e Fernanda Polacow aceitaram partilhar um pouco das suas ideias gerais e da importância de um apoio monetário à criação.
Até à concretização dos seus projetos, tudo continua em aberto, e foi com base nessa possibilidade que conversámos. Porque, afinal, é nessa possibilidade que vive cada processo criativo.
Um trabalho em equipa já sedimentado pelo tempo
Fernanda Polacow, guionista, documentarista e socióloga natural de São Paulo, a viver atualmente entre o Brasil e Portugal, afirma que “este apoio significa um impulso” para seguirem [Fernanda e a restante equipa] com um projeto em que “acreditamos muito”. “This is Not Kanga” é “uma série documental sobre artistas contemporâneos africanos” que, neste momento, se encontra na “fase de firmar algumas parcerias” e à procura “de financiamento para, eventualmente, rodar um piloto”. Ao seu lado estão João Nuno Pinto, parceiro de trabalho e de vida, com quem já tinha feito recentemente “Mosquito”, e Bruno Morais Cabral, que “além de amigo” é “um produtor de quem gostamos muito e com experiência em documentário”, conta Fernanda.
No caso de “Finisterra”, Guilherme Branquinho partilha que “não querendo, nesta altura do processo, revelar muitos detalhes acerca do projeto” se pode “dizer que se trata de um coming of age em que acontecimentos históricos se fundem com o folclore português, formando o pano de fundo para uma história que navega vários géneros narrativos como o drama histórico, a aventura, o mistério, a guerra e o oculto”. “Foi nossa ambição tecer uma narrativa cativante que explorasse a ténue e muitas vezes inexistente fronteira entre o mito e a realidade, e a surpreendente facilidade com que ilusões e mentiras permeiam uma sociedade dominada pelo medo. É, na sua essência, uma história sobre a procura pela verdade no seio de uma comunidade que, ao lhe ser barrado o acesso à informação, a factos, recorre ao mito e superstição para explicar os terríveis males que enfrenta.”
Também a equipa de “Finisterra” se compõe por mais do que uma pessoa. A série de ficção é assinada por Branquinho e Leone Niel, que conheceu na produtora Ministério dos Filmes, na altura em que foi convidado para ir trabalhar em “Sara”, série pensada por Bruno Nogueira e dirigida por Marco Martins. “Na altura, o Leone já fazia parte integrante da produtora e eu estava em modo freelance. Iamo-nos cruzando durante a produção, mas foi quando me instalei na produtora para o processo de montagem, que ainda durou uns bons meses, que começámos a trocar ideias e a estabelecer uma forte afinidade criativa. Assim que terminei a montagem da “Sara”, formámos uma dupla de realização dentro da produtora”, recorda.
Quando Guilherme Branquinho saiu da Ministério dos Filmes, em 2019, para se juntar à Take it Easy, a dupla de realização terminou, mas decidiram continuar a trabalhar juntos para pôr em prática alguns projetos já pensados. A parceria que começou por acaso é, hoje, “muito fluida”: “conhecemo-nos muito bem, aos nossos gostos, à nossa maneira de pensar, de ver e fazer cinema. Acima de tudo, ao longo destes anos, criámos um espaço de confiança absolutamente essencial ao processo criativo, um lugar onde não há medos nem pudores, onde podemos conversar e pensar livremente, testar ideias, testar-nos um ao outro”, explica.
Um incentivo numa fase de urgência
Durante o período de confinamento obrigatório, devido à pandemia da covid-19, as dificuldades do setor foram-se agravando. No início de maio deste ano, o Gerador publicava “No escuro de cada sala, escondem-se os planos do futuro do cinema”, uma reportagem que dava a conhecer as dificuldades atravessadas pelo meio audiovisual e as incógnitas em projetos já a decorrer. Nesta fase, o concurso Netflix | ICA já tinha sido anunciado e abria-se uma janela de esperança para quem tinha projetos em mente que, por força das circunstâncias, poderia ver adiados.
É por isso que, quando soube que tinha sido um dos vencedores, Guilherme Branquinho sentiu “alívio” — “alívio pela interrupção forçada das nossas vidas não ter sido uma total perda de tempo”. A “falta de trabalho, de oportunidades, da perspetiva de um futuro minimamente próspero” convidava a “mergulhar numa ansiedade brutal”; pensar em “Finisterra” e, posteriormente, perceber que o projeto poderia avançar, foi voltar à tona. “Apesar deste projeto não ter nascido durante a quarentena, certamente motivou-nos a manter uma rotina de trabalho, mesmo que à distância — era como que a nossa guerra pessoal contra o vírus. Neste sentido, este apoio é uma vitória e veio validar esse esforço contra a letargia”, partilha Guilherme Branquinho.
Fernanda, que na altura do confinamento se encontrava no Brasil em trabalho, conseguiu um “voo de resgate no princípio de maio”. No seu “país de origem”, a presença da Netflix já se começava a vincar e a quantidade de co-produções tem vindo a ser crescente — são disso exemplo o documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, e “Coisa Mais Linda”, a série dirigida por Caíto Ortiz, Hugo Prata e Julia Rezende, que integram o catálogo da Netflix em Portugal.
“Seria maravilhoso Portugal poder contar com um streaming deste porte para suas produções, alargando consideravelmente o mercado, impulsionando novas ideias e difundindo o cinema português”, sugere Fernanda Polacow. Guilherme Branquinho acrescenta que acredita “que temos talento e que temos histórias e personagens que apelam a uma audiência internacional, sem perder a sua essência regional” e que “há uma nova geração sedenta por criar uma nova forma de fazer cinema em Portugal, que não seja tão virada em si mesma, e que dialogue com um leque mais abrangente de pessoas”. “Julgo que é só uma questão de tempo até começarmos a ver produções portuguesas com o selo da Netflix.”
Neste concurso Netflix | ICA, a presença dos projetos no catálogo da gigante de streaming não era uma garantia mas fica, naturalmente, a esperança de que esta seja uma nova fase que incentive a essa aposta. Além de “Finisterra” e “This is Not a Kanga”, foram selecionados os projetos “Paradoxa” (ficção), de Luísa Costa Gomes; “Paredes Brancas, Povo Mundo” (documentário), de Alexandre Farto (Vhils), André Costa, Catarina Crua e Ricardo Oliveira; “Barranco dos Cegos” (ficção), de Luís Filipe Rocha; “Cleptocracia” (ficção), de João Brandão; “My name is Jorge: A redemption story” (documentário), de Sofia Pinto Coelho; “O chefe Jacob” (ficção), de Raquel Palermo e João Lacerda Matos; “Rabo de Peixe” (ficção), de Augusto Fraga; Marcos Castiel e André Szankowski; e “Victoria” (ficção), de Dinis M. Costa.