1.
Primeira imagem: as mãos abertas da actriz Nádia Yracema, viradas de palmas para nós, em grande plano, tapando o seu rosto, transformando-o e quase tocando o nosso. [Still retirado de teaser que a realizadora Patrícia Sequeira fez para “Limbo”. Janeiro de 2019.]
“Era uma noite maravilhosa, - uma daquelas noites como só a nossa juventude conheceu, caro leitor. O firmamento estava tão cheio de estrelas e tão calmas que, ao olhá-lo, os homens faziam involuntariamente a si mesmos esta pergunta: - Podem existir seres maus sob um céu tão belo? ”
O pensamento fragmenta-se continuamente. A vida, parece-me, ainda não começou.
Como conservar juvenil o coração? Como lidar com a brutalidade? O que fazer à nossa besta?
E ainda assim olhar a beleza do firmamento? Uma amiga escritora disse-me em confidência, durante a pandemia de 2021: “Estou a escrever tão mal. Só consigo escrever sobre coisas pequeninas, formigas que passam no chão da minha varanda”.
Formigas que passam, então. Que seja.
2.
Polaroid tirada nos jardins do Palácio Pancas Palha. Em cima de um dos muretes de um tanque já abandonado estão os actores, desconhecidos ainda que eram uns aos outros. Não lhes vemos as caras - a fotografia corta-lhes o pescoço, só seis corpos em pé - sandálias, ténis, pés descalços, vestidos, casacos compridos, calças e mãos que se adivinham. Gostamos deles tanto, já. [Fotografia de Sara Carinhas. Agosto de 2018.]
No princípio alguém se senta à mesa tendo por companhia outro alguém. Em torno de uma mesa ou em torno de uma inquietação. Assim começa. O “Limbo”, mesmo antes de se chamar limbo, foi pensado como desculpa que me permitisse reflectir com pessoas da minha geração. Sobre nós e sobre a nossa inscrição (ou falta dela) neste mundo. Gira o planeta e nós com ele, embatendo uns nos outros.
Poder escolher “quem” se senta à mesa é um gesto político. O primeiro. É no estender desse convite, desse contrato, que a construção se inicia. Como na vida. Há portanto o instinto, o destino e o erro. E o deslumbramento também, espera-se.
O espectáculo, que ainda não existia enquanto espectáculo, era sobre as falhas do futuro. Depois sobre fronteiras, traumas, pesadelos, infância.
Seis seres chegaram, corajosos, ao encontro marcado. Aceitaram ser família. É o que vamos fazendo com esta profissão. Construir uma série de agregados familiares crescentes. Marcas no espírito.
3.
Na imagem, uma folha branca cheia de rabiscos e apontamentos, quase todos a vermelho. Uma folha de trabalho, que auxilie o pensar. “Soldado mulher Pierre” diz no canto superior direito, em frente “heart”, “Sophie’s choice”, “Les invisible” e mais abaixo a meio “tomate com sal”, “Elza Soares?”, “coreografia mãos”, “carta António”, “pesadelo Mena”, desenhos de movimentações, a lápis. [Dezembro de 2018.]
Acontece que o processo de construção deste projecto foi bem mais importante e essencial do que o resultado final, em formato de espectáculo. Mais: o processo de transformação do espectáculo de cada vez que é reposto num espaço novo (não convencional) permite-nos lidar com a dramaturgia como sendo moldável, coisa-não-fixa. O significado do nosso título foi igualmente metamorfoseando-se, consoante o mês, consoante as estações do ano, consoante a realidade à qual a palavra se associava.
Estávamos ensaiando em Torres Vedras quando nos foi dito que o espectáculo estava cancelado. Todos os espectáculos do país estavam cancelados. Nessa noite decidimos ir dançar a nossa coreografia ao ar livre, numa pequena ponte em cima de um rio que passava pelo Parque do Choupal. Filmamos esse nosso último gesto em jeito de despedida. Todos os movimentos pareciam ser sobre precisarmos uns dos outros, e mal sabíamos na altura o quanto assim seria. Ainda pouco, como sempre, sabemos do que nos vai acontecer.
Lembro, aqui, o dia em que o Marco [Nanetti] nos explicou, sorrindo, como se cozinha verdadeiramente uma panela de massa. Ou quando o Pierre [Ensergueix] se levantou pela primeira vez da mesa e contou um pesadelo terrível que o acompanha, que fez a sala tremer de silêncio. A Carolina [Amaral] a dançar de improviso, sentada, ao som de uma ária de ópera. A Mena [Filomena Cautela] a escrever uma carta ao seu cão. A Náná [Nádia Yracema] a falar de menstruação, de drogas, de galinhas. Ou quando o António fez de leão com medo pela primeira vez. E sei de todas as outras imagens que não podem ser contadas, nem escritas, guardadas que vão ficar em cofre íntimo fechado.
4.
Os queridos actores, numa sessão de fotografias em busca da imagem do cartaz, num imenso armazém/antiga estação de comboios, abraçam-se por uns momentos, num círculo fechado, apertando-se na ternura uns dos outros. A luz insiste em entrar por pequenas frestas das janelas do telhado. [Fotografia de Azuky. Outubro de 2018.]
Não esquecer: ser actor, fazer teatro, é um imenso luxo e uma estrondosa responsabilidade.
5.
Na imagem um desenho de Catarina Rodrigues de uma criança de pé, vestida com um pijama com um gato desenhado na camisola. Do seu nariz sai um tubo que se liga a uma botija de ar. Na mão traz uma almofada com desenhos de flores. Olha-nos com os olhos enormes. [Printscreen de post de Instagram]
Um dia, no estúdio, re-descobri uma notícia que tinha lido sobre o “Síndrome de Resignação” - um assunto tão grave e surreal que acabou por nos dar a chave do nosso espectáculo. Podíamos não saber como contar mais nada, mas tínhamos de contar disto. Crianças que entram num estado de sono tal (de limbo) que é como se hibernassem deste mundo à espera que venha outro, melhor, no seu lugar. O pudor de falar disto em teatro era imprescindível para que aprendêssemos a fazê-lo.
6.
Fotografia arrastada de António Bollaño dançando em ensaios de “Limbo” no salão/ginásio da Escola da Voz do Operário. Laranja, vermelho fogo, e um olhar que ele nos lança a meio de um movimento delicado. Ou talvez ele se lance com força ao ar e nos deixe sem fôlego de rompante. [Fotografia de Azuky. Janeiro de 2019]
Faz parte da minha pesquisa a busca do intérprete completo, o artista que tenha em si a capacidade de se expressar em cena de forma total, dançando, cantando, falando, tocando, desenhando, escrevendo... como se tudo tivesse a mesma importância e tudo fosse um só veículo de comunicação. Não recuso aqui a ideia de especialização mas os actores podem ser os mais maravilhosos ladrões, acredito que conseguem conter em si as mais incríveis valências, esticando-se em todas as direcções, surpreendendo-se, sem medo do ridículo. Não é, claro, tarefa fácil.
Apercebi-me da minha felicidade na criação porque me apaixonei pela possibilidade da transformação, da construção do que é único, da comunicação em potência que existe em quem alimenta o brilhantismo e também a fragilidade de quem se dá a ver.
O “Limbo” também me foi charneira. Experiência de alavanca para chegar a uma linguagem que não sei abarcar, que se deseja perto talvez do cabaret mas também das “Mil e uma Noites”... contar histórias ainda, e cantar ainda uma canção ao piano. Confiar nos gestos, nos silêncios, na empatia, e no que é bizarro, no que não se alcança no primeiro olhar.
Às vezes, em casa, num momento mais sonhador penso: talvez possamos continuar a fazer o “Limbo” durante muitos anos. Já todos velhinhos. Sempre a transformar o espectáculo consoante os nossos corpos e as nossas pulsões. E o mundo a continuar. E nós a continuar em resposta. E o título, ainda e sempre, a construir vários sentidos. Ou talvez possamos deixar de o fazer completamente, e daqui a quarenta anos encontramo-nos e voltamos a fazer este espectáculo. Sim?
7.
Montagem de fotografias de Pierre, em período de ensaios no Teatro Municipal de Vila Real, escondendo a cara de várias formas, apertando-a, esborrachando-a, de mão aberta. [Fotografia de Sofia Bernardo. Março de 2020.]
Do que tenho verdadeiro medo é do silenciamento, e talvez do adormecimento também, parece-me. Medo do futuro não sei se tenho. Só me faz confusão a ideia de morrer. Mas também já quase me convenceram de que somos todos esferinhas andantes, a passar de plano em plano, e que isto é tudo só passagem, experiência nível um. Enquanto isso, fará sentido termos por cá alguma missão, alguma paixão, algum amor pelas maravilhas da humanidade. A arte pode ser das maiores homenagens à coisa-de-ser-pessoa. E ser pessoa não é repetir, cristalizar, papaguear, não pode ser só copiar, obedecer, sofrer com a imperfeição, não pode ser sobre o ego, sobre o berro, sobre a força. Tenho pensado num retrato ideal do que poderia desejar às actrizes, aos actores, e aos artistas que se permitam dar de si: e se começássemos por uma nova escola que ensinasse a profissão de forma saudável, sem macaquinhos no sótão, sem bengalas, sem facilitismos, que fosse sobre pensar em conjunto, sobre brincar de verdade, sobre cultura e pensamento? E se houvesse o hábito de voltarmos a estudar a nossa profissão sempre que possível e até sempre, porque é preciso continuamente aprender, falhar e não fazer as coisas para apresentar resultado? E se fazer teatro fosse um acto revolucionário, sobre liberdade, sobre urgência, sobre termos escolhido viver em conjunto com aquelas pessoas ao longo da vida?
Do outro lado da minha cabeça penso nos actores passando fome, companhias chegando ao fim, todos correndo em competição por uma oportunidade, por mais dinheiro, por condições de trabalho, por tempo, por reconhecimento, por igualdade.
Assalta-me uma sensação de peso na barriga.
Tenho tantas dúvidas.
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.