Há dias foi publicado aqui, no Gerador, uma crónica da Miriam Sabjaly, intitulada “Futebol, ou o desporto que já me fez chorar”. Partilho com ela esse prazer irracional pelo desporto rei “que se materializa em superstições patéticas”, como vestir uma determinada camisola durante o jogo. É um absurdo, eu sei, mas não consigo não acreditar que um ato insignificante da minha parte não tenha interferência no resultado de uma partida a decorrer a vários quilómetros de distância. À semelhança da Miriam, também organizo a minha vida em função do horário dos jogos de uma equipa. Vou ainda mais longe, porque, no meu caso, a equipa é de uma cidade que nunca visitei. Quantos planos ajustei aos jogos do Arsenal? Os meus amigos saberão que não foram poucos. Tudo por 90 minutos que só saberei no fim se serão de alegria ou de sofrimento.
Para além do jogo em campo, gosto de acompanhar os rumores do mercado de transferência, as propostas de projetos desportivos, a identidade dos clubes e dos seus adeptos, as associações políticas e os interesses extra futebol dos jogadores, como música, moda, ou ativismo. Por ser licenciado em Relações Internacionais, também não sou indiferente às grandes movimentações geopolíticas feitas através do futebol. Mais concretamente, as aquisições de clubes europeus feitas pelos países do Golfo Pérsico por via de fundos de investimento.
No passado fim de semana, o Manchester City venceu, finalmente, a Liga dos Campeões. O clube que pertence ao Sheik Mansour, dos Emirados Árabes Unidos e membro da família real de Abu Dhabi, tem, na opinião de muitos, a melhor equipa do mundo. Recheada de estrelas e comandada pelo técnico Pep Guardiola. À medida que se aproximavam desse feito, surgiam entrevistas e artigos de ex-futebolistas, jornalistas e dirigentes de outros clubes que criticavam a forma como o iam conseguir — gastando muito dinheiro do bolso sem fundo de um multimilionário árabe.
À semelhança do clube inglês, o Paris Saint Germain (PSG) também passou a ter dono no Médio Oriente, quando em 2011 foi adquirido pela Qatar Sports Investment (QSI) — um fundo de investimento privado do Estado do Qatar. O que era novidade na altura, um clube europeu de futebol ser propriedade de um Estado, repetiu-se em 2021, desta vez a Arábia Saudita. Através de um fundo de investimento, compraram a maioria das ações do Newcastle United, de Inglaterra. Os projetos são semelhantes: montar um plantel com jogadores estabelecidos, oferecendo contratos que a maioria dos clubes não consegue comportar, competir por títulos importantes e criar uma marca global.
Alguns adeptos desses clubes celebraram o novo poder de compra e potencial para ganhar grandes competições, mas o mundo do futebol europeu condenou essas aquisições. O PSG, particularmente, é alvo de chacota por ter gastado milhares de milhões nos últimos 10 anos e continuar sem ganhar uma Liga dos Campeões. No entanto, falham em perceber que o grande troféu para os Estados e particulares excêntricos do Médio Oriente que compram clubes europeus não é a Liga dos Campeões ou qualquer outro título desportivo. O triunfo é o acesso aos mercados económicos europeus e a melhoria da reputação dos seus regimes políticos — sportswashing. No caso dos donos do clube parisiense, a ligação ao próprio governo francês vem do princípio. Tanto a atribuição do Mundial de 2022 ao Qatar, como a compra do PSG pelo QSI, foram facilitadas pelo presidente francês na altura, Nicolas Sarkozy.
A proximidade com os chefes de Estado franceses continua, agora com Emmanuel Macron a assumir publicamente que irá pressionar o maior talento do futebol francês e mundial, Kylian Mbappe, a renovar o contrato. Podem até achar que é um cidadão normal a tentar usar a sua influência para garantir o melhor para o seu clube, mas Macron é adepto do histórico rival, o Marselha. Nesta relação de política internacional e futebol, quem ganha é a França e o Qatar. Os primeiros garantem a venda de equipamento militar e industrial através de grandes contratos comerciais. Os segundos têm acesso ao mercado europeu e lavam a imagem do seu regime. Quem perde são os clubes e os adeptos — deixa de haver uma identidade que os una.
O primeiro grande caso de sucesso neste modelo foi o do multimilionário russo, agora português, Roman Abramovich e o Chelsea. Injetou capital no clube, ganhou títulos importantes e ficou na história como o impulsionador da modernização dos Blues. Depois da invasão da Ucrânia, ficou exposta a sua relação com o presidente russo Vladimir Putin e foi obrigado a vender o clube e viu todas as suas propriedades no Reino Unido serem-lhe expropriadas. O governo britânico esteve bem. Nenhum oligarca deve se beneficiar da popularidade do futebol para melhorar a sua imagem ou a do regime do seu país. Mas esse mesmo governo deu luz verde à compra do Newcastle pelos sauditas, sabendo das suas constantes violações de direitos humanos — incluindo o chocante caso do assassinato do jornalista Jamal Kashoggi. Sendo Londres a capital mundial de lavagem de dinheiro, é evidente o porquê dos clubes da Premier League, o principal escalão de futebol inglês, serem tão apetecíveis. Principalmente, esta liga, mas o fenómeno estende-se ao futebol europeu. É um recreio para multimilionários exploradores, Estados com regimes antidemocráticos e fundos de investimento privado predatórios. Sejam eles sauditas, chineses, americanos ou ingleses, o objetivo é ter no seu portfólio um bem que lhes garanta reconhecimento e que tenha apoio daqueles que sofrem desta paixão irracional, como eu e a Miriam. Não vamos deixar de apoiar os clubes com os quais nos identificamos por terem um novo sugar daddy árabe ou americano.
-Sobre Airton Cesar Monteiro-
Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.