Tenho poucos prazeres irracionais e o maior deles é o futebol. Em adulta, é um amor inalterável e envolvente que se materializa em superstições patéticas, nervosismo leve pela manhã de um dia de jogo, mau-humor menor depois dos 90’+, a ocasional euforia e o mais rotineiro desgosto inconsequente de quem é de um clube que pouco ganha e muito sofre (“o futebol é um prazer que dói”, dizia Galeano). Faço planos e organizo a vida diária em torno de jogos do Sporting, para desdém e perplexidade dos meus amigos mais antigos, que comicamente me dizem vezes sem conta que gostar de futebol é talvez o meu pior traço de personalidade. O pior duvido que seja, mas é, certamente, o mais complicado, ou o menos elogiável. O meu amor pelo futebol reside não naquilo que o futebol é, mas naquilo que significa. Tampouco o consigo enquadrar coerentemente. Gosto de futebol porque o meu pai me ensinou a gostar de futebol e assim se cria uma nova linguagem de amor, uma identidade coletiva. Gosto de futebol porque o meu pai me queria levar, a mim e à minha irmã, ao “nosso” estádio, porque insistia que aquele mundo também era para nós, e que podia ser bonito, teatral, preenchido de fantasia e reinvenção, e eu acreditei. E às vezes, ainda hoje, é bonito, mesmo que mais imaginário do que materialmente praticável.
Gosto de futebol pelo museu de memórias familiares e afetivas que vou curando dentro de mim e que têm sempre o jogo como elemento comum, o alicerce. Para mim, o futebol sempre foi um conjunto de instantes de ternura e espontaneidade: crescer ao lado do estádio do meu clube, ouvir sempre o golo pela janela 30 segundos antes de o ver pela televisão, celebrar no sofá por mais tempo. De vez em quando, ir para as aulas com um trapo verde enrolado na alça da mochila e ver dezenas iguais. Foi a viagem que fiz com o meu pai para ver o Sporting B jogar numa quarta-feira de escola ao Estádio Municipal de Rio Maior, porque havia menos razões para não ir do que para ir. É a gaveta de cachecóis da cómoda no corredor, tão cheia que demora sempre a fechar.
O futebol é objeto de devoção universal, consome a consciência, tolda todas as emoções, move as massas. É a exibição da imprevisibilidade, a celebração da arte da surpresa, do exagero, da sorte e da superação. Quando saio de um estádio esvaziado de cânticos em uníssono, de tarjas embrulhadas e luzes extintas, sinto sempre um tipo particular de solidão que não consigo descrever sem soar demasiado crédula ou melodramática. O futebol tornou-se, para mim, uma paixão herdada, incutida, quase inata. Mas nunca foi uma paixão acrítica. É, antes, um exercício constante de reconciliação entre o sonho e a realidade. É o reconhecimento de uma jornada trágica da beleza ao lucro, da liberdade à comercialização. Hoje em dia, mais do que protagonistas ou heróis, os jogadores são produtos; o jogo é o negócio, um espetáculo para consumir e descartar; tudo é prescindível e efémero; tudo se reduz à corrupção, ao poder de poucos sobre muitos. O mundo do futebol é tingido por tudo o que recusa confrontar, mas que não desvanece.
Como mulher, sou forçada a conviver com a glorificação incessante de atletas envoltos em acusações de violência sexual e doméstica e perpetuamente impunes. O jogador que violenta é absolvido por adeptos com uma conceção bizarra de justiça, afeição ou fidelidade, segundo a qual o mais cruel e desumano comportamento fica à sombra da quantidade de troféus que o jogador conquistou, dos recordes quebrados, da sua técnica irrepetível ou polivalência, das vantagens desportivas e financeiras que traz para o clube que representa. A narrativa é: separar a capacidade de lesar do corpo que lesa; uma coisa é a cabeça e outra são os braços e outra são as pernas, que constroem jogadas belas e ganham finais, é o que importa. Como pessoa racializada, se não partilho bancadas com quem agride verbalmente jovens rapazes negros pela camisola que vestem, partilho-as com quem ignora, desvaloriza ou recusa condenar essas agressões, ou com quem admite que a violência racista existe, até, mas em estádios em Espanha, não em Portugal. Di-lo-á com vigor e obstinação mesmo perante os seus ídolos portugueses, que insistem no contrário. Isto tudo é o mesmo que dizer: o futebol fragmenta a minha identidade, mesmo que também a tenha construído.E mesmo assim, quase nunca me arrependo de me agarrar a este jogo. Ainda encontro alguma plausibilidade na utopia. Penso no meu amigo que me contou a história de movimentação social do FC St. Pauli enquanto me mostrava postais oficiais do clube com a frase “ninguém é ilegal”. Penso em organizações populares como O Relâmpago, ou no que escreveu Eduardo Galeano em “Futebol ao Sol e à Sombra”. Sobretudo, penso que há ainda quem pegue neste prazer supérfluo e ilógico e o célebre, e o construa, e o redirecione: com tudo o que simboliza, tudo o que podia ser, o que nunca foi e o que se perdeu. O futebol, uma linguagem de amor, a paragem do tempo, o escapar ao tempo, o reclamar do tempo.
-Sobre Miriam Sabjaly-
Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).