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Gestação de substituição: maternidade por regulamentar

Foi em 2016 que a gestação de substituição entrou pela primeira vez na legislação nacional. Dez anos depois da consagração da Procriação Medicamente Assistida, esta possibilidade, até aqui vedada, era acrescentada ao diploma. Mas um pedido de fiscalização sucessiva culminaria num acórdão do Tribunal Constitucional que, em 2018, voltaria a negar a possibilidade de se entregar a gestação a outrem. No final de 2021, pouco antes da dissolução do Parlamento, os deputados redigiram o diploma que respondia às dúvidas dos juízes. A gestação de substituição volta a ser legal a 16 de dezembro, mas fica a faltar o diploma necessário à regulamentação da lei. Até lá, muitos projetos de parentalidade continuam em espera.

Texto de Redação

Ilustração de Marina Mota

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Joana Freire, 36 anos, tinha 17 quando descobriu que sofria de síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser. MRKH. Rokitansky. Roki. São várias as simplificações linguísticas que as mulheres com este diagnóstico utilizam para tratarem por tu a condição que lhes tira a possibilidade de gerar filhos. A síndrome de MRKH é uma anomalia congénita do aparelho reprodutor feminino que afeta uma em cada 4500 a 5000 mulheres. Pode haver um pequeno útero funcionante devido ao hematométrio, isto é, a hemorragia resultante da descamação menstrual que, por não poder sair, se acumula no interior da cavidade uterina. Pode haver, ou não, um mínimo de profundidade vaginal (por vezes, até 3,5 cm), e também pode haver, ou não, útero e ovários. É com uma ecografia abdominal e ginecológica que se pode perceber se existem dois rins normais e dois ovários, e se há um útero, ou restos de um útero. A abertura do canal vaginal pode ser feita cirurgicamente.

Estas explicações são dadas por Joana no livro A Viagem que não Escolhemos. Histórias sobre a Infertilidade. Aqui, a autora reúne testemunhos de mulheres que, como ela, descobriram que a natureza não lhes permitiria uma maternidade convencional. Uma boa parte delas só encontrará resposta na gestação de substituição. Muitas são Rokitansky, mas esta não é a única razão para não se poder gerar um filho, nem sequer com recurso a outras técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Endometriose ou tratamentos de quimioterapia também podem ter esta consequência, e há casos de infertilidade sem causa conhecida.

“O meu mundo caiu, chorava de noite, sorria de dia, tinha de continuar.”

“Tinha sonhado vir a ser mãe um dia, ter os meus próprios filhos. Esse sonho morreu. Não me sinto mulher”.

“Era como se estivéssemos numa fila de espera em que toda a gente nos passava à frente. Sentia que estávamos a ser desprezados pela sorte.”

As histórias de infertilidade recolhidas por Joana constroem-se com guiões diferentes, mas são quase invariavelmente pautadas pelo desalento. Algumas, porém, conseguem conjugar-se no futuro. E, por enquanto, vai-se alimentando o presente.

Joana Freire trabalha agora na Associação Portuguesa de Fertilidade (APF), onde se dedica a dar voz a quem, como ela, vem conjugando sonhos no condicional.

Joana Freire. Fotografia da cortesia da própria

O que diz a lei?

A gestação de substituição passou a ser admitida na lei para dar resposta a casos de “ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão ou outra situação clínica que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher”. Reveste-se de caráter excecional, e os processos estão sujeitos a autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), que supervisiona todo o processo. Apenas é obrigatório que o material genético seja proveniente de um dos beneficiários (quando se trata de casais), e a gestante nunca pode ser dadora.

Uma das alterações mais relevantes face a 2016 tem que ver com a revogação do consentimento da gestante, ou seja, a possibilidade de se arrepender. Na primeira versão da lei, essa revogação era possível até ao início dos procedimentos terapêuticos de PMA. Agora, a lei consagra a possibilidade do arrependimento até ao momento do registo da criança nascida, respondendo, assim, a uma das objeções levantadas pelos juízes do Constitucional e conferindo à gestante o direito a ficar com a criança. A gestante também não pode ser impedida de recorrer à Interrupção Voluntária da Gravidez, à semelhança do que acontece em qualquer outro processo de gestação.

Beneficiários e gestante assinam um contrato em cujas condições não poderá constar qualquer pagamento, com exceção de despesas médicas e transporte associado. É ainda reservado à gestante o direito a receber apoio psicológico antes, durante e após o parto.

Em 2016, o aval aos processos estava dependente de um parecer da Ordem dos Médicos, mas o atual quadro legal junta-lhe um parecer da Ordem dos Psicólogos.

Apesar de estar publicada, a Lei n.º 90/2021 não pode ser aplicada enquanto não sair o respetivo diploma regulamentar. Para esse efeito, o Governo criou uma Comissão de Regulamentação, que já entregou uma proposta de regulamentação da lei, cujo teor não foi divulgado. Neste momento, apenas é conhecido o anteprojeto de diploma regulamentar, entretanto objeto de pareceres de entidades como o CNPMA, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e a Ordem dos Psicólogos. É a regulamentação que determina de que forma se procede ao pedido de autorização prévia junto do CNPMA, quais os prazos para a emissão dos pareceres das Ordens e qual o regime de proteção da parentalidade, entre outros aspetos.

Diana Coutinho doutorou-se com a tese As problemáticas e os desafios contemporâneos em torno da gestação de substituição. É professora convidada da Escola de Direito da Universidade do Minho e professora auxiliar da Universidade Lusófona do Porto. Ao Gerador, aponta várias lacunas à lei e ao anteprojeto de diploma regulamentar. Este último levanta a possibilidade de serem fixadas cláusulas indemnizatórias, ainda que sem determinar a que tipo de incumprimento estas cláusulas seriam aplicadas. Diana Coutinho considera que esta disposição abre caminho à obrigatoriedade de a gestante pagar uma indemnização no caso de pretender, por exemplo, revogar o consentimento ou interromper a gravidez. Para a docente, tal possibilidade entraria em conflito com as garantias de liberdade e a autodeterminação da mulher que o Tribunal Constitucional também procurou assegurar no seu acórdão: “Se eu fixar uma cláusula indemnizatória de um dado montante, a gestante, se calhar, prefere avançar com a gravidez a interromper ou prefere entregar a criança a revogar o seu consentimento”, resume. Diana Coutinho considera mesmo que a possibilidade de introduzir cláusulas indemnizatórias que limitem a vontade da gestante pode ser alvo de novas reservas por parte do Tribunal Constitucional. No mesmo sentido vai o parecer do CNECV, que classifica de “indigno” para a gestante a aceitação de tais cláusulas, já que “o receio de montantes indemnizatórios por exercício do seu direito de revogação (um verdadeiro direito de arrependimento) colocaria em situação de limitação de liberdade e subordinação a mulher gestante”.

Outra das questões, até ao momento sem resposta, é a dos termos em que a gestante pode invocar a revogação do consentimento. Essa revogação pode acontecer até ao momento do registo da criança, mas não está fixado um prazo ou um intervalo para esse registo, nem na lei nem no anteprojeto de diploma regulamentar. O Código do Registo Civil estipula que o registo seja feito até ao vigésimo dia após o nascimento, mas nada obsta a que a criança seja registada no próprio dia, no hospital. Haverá uma alteração que permita acomodar um eventual arrependimento, e a respetiva ponderação? Não se sabe. Para Diana Coutinho, o prazo para um possível arrependimento até deveria ultrapassar os 20 dias e, por comparação com os processos de adoção, ir pelo menos até às seis semanas, para dar lugar a um período de reflexão. O arrependimento, a acontecer, também pode acarretar problemas quanto ao estabelecimento da filiação da criança. Se tudo correr como previsto, a filiação será estabelecida em relação aos beneficiários, mas se tal não se verificar, Diana Coutinho considera que a lei deveria ter clarificado que a criança é filha da gestante de substituição. A paternidade é ainda mais complexa. “Em relação à mulher [beneficiária], mesmo tendo contribuído com o material, poderíamos discutir aqui que prevalecia o direito da gestante porque ela revogou [o consentimento], mas nunca se poderia afastar o estabelecimento da paternidade em relação ao beneficiário que contribuiu com o material genético”, nota Diana Coutinho. O que, de resto, também vai ao encontro de algumas das preocupações expressas pelo CNECV no seu parecer. Da forma como está redigida, a lei parece apontar um caminho de monoparentalidade em caso de revogação do consentimento. Diana Coutinho é perentória: “Se o pai for pai biológico, independentemente de a gestante se arrepender, a paternidade terá de lhe ser estabelecida. Isto decorreria desde logo das nossas normas gerais do Código Civil.” Também o CNECV considera desejável “estabelecer inequivocamente os direitos e deveres dos beneficiários biologicamente relacionados com a criança a nascer por gestação de substituição na situação de recusa de entrega desta por parte da gestante, em prol da clarificação de uma situação por natureza complexa, conflituosa e emotiva”. Caso a criança seja concebida com esperma de um dador, o CNECV considera que faz sentido que a paternidade não seja estabelecida face ao beneficiário, ou seja, a revogação do consentimento alargar-se-lhe-ia.

A complexidade da matéria leva Diana Coutinho a sugerir um modelo jurídico com “intervenção de uma autoridade judicial, quer numa fase inicial, quer, sobretudo, numa fase final”.

Também para o CNECV, não é apenas a renúncia à entrega da criança que deveria revestir-se de uma formalidade, mas a confirmação da entrega que, além de acompanhada de um documento formal, deveria, para aquela entidade, ser testemunhada por um assistente social.

Ilustração de Marina Mota

Uma lei para casos excecionais

A gestação de substituição é uma opção de recurso para mulheres que não conseguem engravidar ou levar a gestação até ao final. Um homem sozinho ou um casal de homens não se poderá candidatar a este quadro legislativo. Questionada sobre se a redação da lei pode abrir a porta ao recurso a esta técnica de PMA por parte de mulheres transgénero, Diana Coutinho crê que o legislador não pensou nessa questão, até porque a lei está redigida numa tónica de excecionalidade, embora reconheça que as condições de partida são abstratas. “A intenção primeira do legislador foi pensada para um problema físico, um problema que impede uma mulher, inclusivamente, de recorrer a uma mera técnica de PMA”, ressalva a docente.

Embora reconheça que se possam levantar questões de desigualdade ao vedar-se o acesso a homens, Diana Coutinho inscreve a opção do legislador numa atitude cautelosa. Tratando-se de um processo com tamanha complexidade, a ideia será, primeiro, ver como poderá funcionar em situações pontuais e excecionais, sem prejuízo de, no futuro, se abrir a possibilidade a homens solteiros e casais de homens de recorrer à gestação de substituição. O facto de se tratar de um modelo altruísta, radicado na vontade da gestante de ajudar uma mulher ou um casal a concretizar o seu projeto parental, também dificulta a generalização do procedimento — e no caso de homens, casais de homens ou mulheres transgénero, a gestação de substituição não poderia ser a exceção, mas a regra, já que não há outra forma de ter um filho biológico.

©Nadezhda Moryak / Pexels

Para Joana Freire, também se trata de um caminho a percorrer: “Eu acho que a própria sociedade também ainda tem de trabalhar muito estas questões da homossexualidade para nós, efetivamente, conseguirmos ter uma lei muito mais inclusiva, e claro, o suposto é que todas as pessoas tenham o direito a realizar o seu projeto de parentalidade”. Na mesma linha de Diana Coutinho, reconhece que se o objetivo passasse, desde já, por uma lei mais inclusiva, o esforço seria muito maior. Um passo de cada vez, portanto.

Relativamente aos avanços e recuos que a lei tem experimentado, a APF compreende o processo, mas a principal preocupação da associação, transmitida por Joana ao Gerador, é a demora. “Para nós, não é um choque que isto seja bem escrutinado e que a lei esteja o melhor possível e digna para ambas as partes”, começa por sublinhar. O problema é que os sucessivos adiamentos podem comprometer a viabilidade de muitos projetos parentais: “Nós sabemos que o material genético, com o avançar da idade, começa a perder a qualidade, nós próprias podemos até ter outra complicação de saúde, e isto tudo condiciona-nos se um dia quisermos efetivamente colocar o nosso pedido para a gestação de substituição”, adverte.

Joana Freire não esconde alguma apreensão com a salvaguarda do arrependimento, embora prefira acreditar que isso não vai acontecer. “Desde que os processos começam, efetivamente há aqui uma grande triagem. Foi também integrada a questão do parecer psicológico, que nos permite ter mais ferramentas de avaliação que permitem, ao máximo, o escrutínio do processo”, reconhece.

Além disso, a lei prevê que a gestante seja, preferencialmente, uma mulher que já tenha sido mãe, o que Joana considera “uma grande mais-valia”. Afinal, uma mulher que já tenha passado pela maternidade é capaz de antecipar os processos pelos quais vai passar, e se tiver o seu próprio projeto de parentalidade definido, a probabilidade de o arrependimento ser colocado em cima da mesa será, à partida, menor.

Há lei. Haverá regulamentação. E recursos?

Uma vez aprovada a legislação, os recursos disponíveis no terreno também podem comprometer a celeridade do processo. Joana Freire situa o tempo de espera para aceder a consultas de PMA em a dois anos, sendo a espera idêntica no caso do acesso à terapêutica, mas a realidade nacional não é uniforme. O Sul do país está mais desprovido de centros de PMA do que o Norte, e as equipas médicas não estão exclusivamente dedicadas a estes tratamentos, alerta Joana. Com a regulamentação da lei, a carga de trabalho destes profissionais também irá aumentar, caso não se aumentem os recursos disponíveis.

A falta de recursos é, aliás, um problema que pode deitar por terra todo o processo, se não for devidamente acautelado. O alerta vem da presidente do CNPMA, a jurista Carla Rodrigues.

O Conselho foi criado em 2006, através da lei da PMA, e formalmente constituído em 2007. Apesar da designação, a sua atividade vai muito além da emissão de pareceres e conselhos. É ao CNPMA que cabe a autorização de funcionamento (e a revogação) de centros de PMA, a respetiva inspeção, juntamente com a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, a aprovação dos projetos de investigação que envolvam embriões, e mais um conjunto de atributos, a que se vem juntar a autorização e acompanhamento dos processos de gestação de substituição. É uma entidade formada por nove personalidades de reconhecido mérito, entre pessoas ligadas ao Direito e à Saúde, sendo que cinco conselheiros são eleitos pela Assembleia da República e quatro nomeados pelos membros do Governo que tutelam as áreas da Saúde e da Ciência. Mas, neste momento, o CNPMA está reduzido a oito elementos. Em fevereiro de 2020, o conselheiro Alexandre Quintanilha requereu a cessação do seu mandato por via da entrada em vigor das alterações ao Estatuto dos Deputados, que o colocavam numa situação de incompatibilidade de funções. Por várias vezes, o Conselho pediu a sua substituição, o que, até ao momento, não aconteceu.

Os conselheiros não exercem as suas funções em dedicação exclusiva nem têm estatuto remuneratório. “Recebemos uma senha de presença pelas nossas reuniões plenárias, ponto”, resume Carla Rodrigues. “Só com muito sacrifício pessoal, familiar e com muito sentido de serviço público” é possível levar este trabalho por diante, assegura.

A curta vigência da anterior legislação obrigou os conselheiros a dedicarem-se apenas à gestação de substituição, deixando de lado as restantes tarefas. No quadro de uma lei que se prevê mais estável e duradoura, os pedidos deverão aumentar. “Há anos que nos debatemos e lutamos para que haja gestação de substituição em Portugal porque entendemos que é da mais elementar justiça para estas mulheres e para estas famílias. Mas, por outro lado, não temos condições para pôr esta lei em prática”, assume a jurista. Para solucionar esta ambivalência, o Conselho propõe, no seu parecer ao anteprojeto de diploma regulamentar, e a título de solução provisória, a criação da figura do relator de processos de gestação de substituição, a designar pelo CNPMA, com remuneração.

A intervenção do CNPMA começa com a receção dos processos, incluindo a documentação médica que atesta a impossibilidade de a mulher levar uma gravidez até ao fim e a avaliação psicológica da gestante e dos beneficiários (a lei apenas prevê acompanhamento psicológico para a gestante durante o processo, mas a avaliação prévia terá de ser feita às duas partes). A ideia é procurar garantir que ambos os lados estão cientes do processo prestes a desenrolar-se e têm estrutura para o suportar.

O CNPMA analisa, depois, a conformidade da documentação e emite um despacho preliminar. Se houver algum documento em falta, as partes são notificadas. Os relatórios médicos são, depois, remetidos à Ordem dos Médicos, que terá um prazo — a definir pela regulamentação — para se pronunciar sobre a compatibilidade daquela situação clínica com o acesso à gestação de substituição. O mesmo trâmite é seguido com a Ordem dos Psicólogos, que se debruçará sobre as avaliações psicológicas. À partida, estes pareceres não serão vinculativos, mas a tendência será respeitá-los: “Eu, na qualidade de presidente, não estou a imaginar o CNPMA a decidir em contrário daquilo que seja o parecer da Ordem dos Psicólogos ou da Ordem dos Médicos”, diz Carla Rodrigues. Pode, contudo, acontecer o oposto, ou seja, os pareceres das Ordens serem favoráveis e o CNPMA, por outros fatores, entender que o processo não deve ser aprovado.

Segue-se a avaliação das partes pelo próprio CNPMA. Se a regulamentação anterior previa um período de entrevistas, ainda se desconhece o que acontecerá agora, mas para Carla Rodrigues faz sentido haver uma conversa demorada e pormenorizada com os beneficiários, a gestante e, por fim, com ambas as partes em conjunto: “Era aí que nós percebíamos a predisposição das pessoas envolvidas, as suas intenções, a forma até como encaravam o processo, e tudo isso é muito importante”, sublinha. Se a candidatura for aprovada, o processo transita para o centro de PMA, para o agendamento das consultas e atos médicos.

À semelhança de Diana Coutinho, também Carla Rodrigues inscreve o recurso à gestação de substituição numa lógica de excecionalidade. Por isso, se uma mulher transgénero invocar o pressuposto de ausência de útero para recorrer a este procedimento, a jurista entende que a situação terá de ser analisada, até porque com a conclusão da lei é expectável que novas questões venham a colocar-se, mas chama a atenção para o espírito do legislador: é uma técnica para uma mulher doente, para uma mulher cujo problema de saúde não encontra resposta nas restantes técnicas de PMA. “Era uma injustiça porque eram as únicas mulheres com uma doença diagnosticada que não tinham qualquer recurso para ultrapassarem a sua doença, e foi com este espírito que a lei nasceu”, salienta Carla Rodrigues.

Questionada sobre se a regulamentação deveria definir um enquadramento temporal para o registo da criança, para que a gestante saiba qual é o seu período de reflexão antes de um eventual arrependimento, Carla Rodrigues realça o direito da criança a ser registada de imediato, a ter um nome, uma filiação e uma nacionalidade. E lembra que ainda que o Código Civil preveja um prazo máximo de 20 dias, hoje as unidades de saúde estão equipadas com balcões Nascer Cidadão, em nome da celeridade. Ao direito da criança junta-se o direito dos beneficiários a proceder imediatamente ao registo, e terá de se juntar o direito da gestante ao arrependimento, o que faz antever o surgimento de problemas jurídicos. “Por muito clara que a lei seja, há sempre várias interpretações, e, aqui, vai haver sempre dois lados: a gestante vai defender a sua posição e os beneficiários vão defender a posição deles, e, portanto, era de todo aconselhável que isso não acontecesse”, resume Carla Rodrigues. Na mesma linha de Diana Coutinho, também a presidente do CNPMA não concebe que a paternidade da criança não seja estabelecida em relação ao beneficiário que contribui com material genético. Para Carla Rodrigues, a batalha judicial decorrente destas questões poria em causa o próprio instituto da gestação de substituição e a bondade de uma lei criada para ajudar as pessoas a ultrapassar um problema de saúde. Na ótica da jurista, as novas questões que emergem da lei apenas reforçam a importância do papel do CNPMA na avaliação de todas as partes envolvidas: “Se for gerado no nosso espírito que há aqui a probabilidade de esta gestação de substituição não ser bem-sucedida, temos de ponderar muito bem se aprovamos ou não”, avisa.

“Só quero que isto ande”

Andreia Oliveira tem 37 anos e, aos 11, descobriu que tinha leucemia mieloide crónica. Fez um transplante de medula e foi submetida a tratamentos de quimioterapia que, por terem sido administrados ainda antes da puberdade, a terão deixado infértil. Já na idade adulta, iniciou os procedimentos para um tratamento de PMA com recurso a ovodoação. Após três anos no serviço público a aguardar para receber o material genético, recorreu ao privado na tentativa de abreviar a espera. Em 2021, confirmaram-lhe que o seu caso não seria solucionado com uma técnica de PMA convencional. Restava a gestação de substituição.

Depois de ter contado a sua experiência a algumas pessoas, a oportunidade surgiu: alguém do seu círculo, com quem nem tinha uma relação íntima, mostrou interesse em gestar o seu filho. Entretanto, uma amiga de vários anos voluntariou-se também. Apesar de tudo, Andreia procura não alimentar demasiadas expectativas porque os avanços e recuos da legislação têm fomentado a descrença.

A nova possibilidade de arrependimento da gestante não é algo que Andreia tenha escolhido ignorar. A questão está lá, mas tenta não lhe dar excessiva importância: “Eu acho que a maior confusão é da parte dos outros, de quem está de fora, do que propriamente da nossa parte”. Andreia quer que a futura gestante faça parte da vida do seu filho, seja madrinha, seja alguém sempre próximo. “Elas sentem imensa vontade de fazer isto por mim, dizem que é um ato muito bondoso, é quase como se estivessem a fazer uma bondade enorme no mundo”, conta. E esta perspetiva acaba por afastar receios.

Paralelamente, Andreia Oliveira está em lista de espera para adoção, mas também aqui os processos são demorados. Gostaria, contudo, de passar pela maternidade desde uma fase o mais inicial possível, pelo que se a adoção for a sua única saída, gostaria de ter oportunidade de adotar um bebé muito pequeno. Caso consiga ser mãe através da gestação de substituição, mantém a intenção de adotar, embora aí o critério da idade já não seja tão apertado.

Perguntámos a Andreia se há algo na lei que gostasse de ver melhorado. “Eu só quero que isto ande, de qualquer das formas”, é a resposta.

Andreia Oliveira. Fotografia da cortesia da própria

“Tenho vontade de ajudar a construir famílias”

Para Ângela Monteiro Querido, as coisas chegaram mesmo a andar. Ao abrigo da lei de 2016, candidatou-se a ser gestante de substituição. O seu processo — e do casal beneficiário que se comprometeu a ajudar — foi o segundo a ser aprovado, mas esbarrou no chumbo do Tribunal Constitucional. Ao abrigo do acórdão, apenas quem tivesse iniciado as consultas médicas poderia dar seguimento ao processo, e não era o caso.

Aos 35 anos e com três filhos, Ângela quer “ajudar a construir [mais] famílias”. Começou por materializar esse objetivo através da doação de gâmetas, mas este procedimento está limitado a três vezes. Com a aprovação da lei da gestação de substituição, ainda em 2016, a ideia instalou-se e amadureceu. Deixou um comentário na página da APF e foi contactada por um casal que não tinha a quem recorrer para concretizar o seu projeto parental. O casal e a gestante construíram uma relação de afinidade e o processo avançou para o CNPMA, que o aprovaria após as entrevistas e os exames médicos requeridos.

Agora, resta-lhes esperar, porque tudo o resto vai sendo antecipado. O casal pretende que ambas as famílias se mantenham em contacto, “como se fôssemos uns tios afastados”, compara. Ainda assim, após o parto, Ângela considera que a criança deve iniciar de imediato o contacto com os pais, pelo que, à partida, a amamentação não será equacionada, ainda que admita retirar o leite com a bomba durante um período inicial, se tal lhe for pedido. “A criança já passa nove meses dentro de um útero que não é o da mãe. Não ouve a voz da mãe, não ouve a voz do pai, não tem contacto com eles”, aponta, pelo que considera importante que os laços comecem a criar-se logo após o nascimento, para que a criança reconheça os cheiros e comece a estabelecer vínculos emocionais.

Ao contrário do que acontecia em 2016, a lei agora aprovada concede a Ângela (e a qualquer gestante) a possibilidade de não entregar a criança, uma salvaguarda com a qual manifesta desacordo: “Quando uma mulher se oferece para ser gestante sabe perfeitamente no que se está a meter. Tem de saber que vai passar um processo demorado, são feitas muitas consultas. Aliás, não deixam sequer o processo ter início se psicologicamente não for apresentado um quadro favorável para isso”, justifica. Reconhece, contudo, que o espírito da lei portuguesa, altruísta, longe da prestação de serviços praticada noutros países, tenha de acautelar essa possibilidade à gestante. Se se tratar de uma mulher que já tenha passado pela maternidade, situação a que a legislação dá preferência, Ângela também acredita que o processo seja mais fácil.

Para um melhor desenho da lei, Ângela considera que a Comissão Parlamentar de Saúde deveria ter ouvido gestantes. “Não fomos tidas nem achadas, e aí, sim, achei que estávamos a ser tratadas como um objeto”, sublinha. Restam-lhe, por isso, dúvidas que, espera, venham a ser aclaradas. Desde logo, a questão dos pagamentos. A lei prevê que os beneficiários reembolsem a gestante das despesas médicas, mas há outros cenários que podem surgir: “Se por algum motivo eu não puder trabalhar, quem é que me acautela um valor para eu poder continuar a alimentar-me, pagar as minhas despesas…?”, questiona. Neste momento, o anteprojeto de diploma regulamentar prevê que “o regime de faltas e dispensas relativas à proteção na parentalidade” seja “aplicável à gestante de substituição e à parte beneficiária”, mas será necessário aguardar pela regulamentação definitiva. A futura gestante também gostaria de ver esclarecido quem vai ter direito a requerer o abono pré-natal — se a gestante, que passa pelo processo, se os beneficiários, que terão as despesas com a criança —, e gostaria de ver fixado o período de licença pós-parto em dois a três meses, o tempo que considera necessário para o corpo regressar ao normal. A regulamentação da lei anterior, que o novo anteprojeto de diploma regulamentar recupera, diz que o parto “é considerado como sendo dos beneficiários para efeitos de licença parental”, e que “no que respeita à gestante de substituição, o seu parto beneficia de regime equivalente ao previsto para situação de interrupção da gravidez, no âmbito da aplicação do regime de proteção da parentalidade.” Ora, o artigo 38.º do Código do Trabalho prevê uma licença de 14 a 30 dias em caso de interrupção da gravidez. Também aqui será necessário aguardar pelo novo diploma regulamentar.

Ângela Monteiro Querido. Fotografia da cortesia da própria

O caminho legal da gestação de substituição começou há seis anos, mas tem sido feito aos tropeções. A regulamentação é, por agora, o passo mais aguardado, mas a recomposição da equipa ministerial da Saúde faz prever mais atrasos. Apesar de os diplomas regulamentares serem competência do Governo, o CNPMA tem indicação de que existe a possibilidade de levar o documento à apreciação da Assembleia da República, o que garantiria respaldo parlamentar a uma matéria de grande sensibilidade e controvérsia. Chegar à perfeição legislativa e regulamentar parece utópico, por isso o caminho será o da cautela e ponderação, em todos os passos, para evitar tropeções mais à frente. Para já, Joana, Andreia, Ângela e mais famílias esperam, enquanto o relógio biológico lhes ameaça o futuro. Por isso, a espera vem com ansiedade e frustração. Para Joana, não se trata apenas do sonho de ser mãe, mas de uma urgência demográfica que, do seu ponto de vista, também devia de ser tida em conta pelos governantes: “A natalidade cada vez é menor. Como é que não se pensa nestes impactos?”

*Esta reportagem foi inicialmente publicada a 1 de outubro de 2022.

Texto de Cátia Vilaça

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