Há uma “ferramenta poderosa” que poderia contribuir para a compreensão do suicídio, daria apoio aos enlutados e traria alguma luz aos milhares de óbitos cujas causas são consideradas indeterminadas, mas a sua aplicação é ainda residual em Portugal. A chamada autópsia psicológica envolve equipas multidisciplinares e um processo de análise que pode ser moroso, não havendo hoje recursos suficientes nos serviços competentes para pôr esta prática no terreno. Os especialistas defendem, contudo, que seria importante o país fazer um esforço nesse sentido.
“A autópsia psicológica permite traçar um perfil psicológico e emocional da pessoa e definir a causa da morte, designadamente se ocorreu devido a causa natural, acidental, suicídio ou homicídio”, começa por explicar Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), que considera que este é um “instrumento fundamental” para se perceber, retrospetivamente, a decisão tomada por “algumas pessoas de praticar atos de violência autoinfligida”. “A investigação demonstra que a autópsia psicológica é um instrumento fundamental para a compreensão do suicídio”, assegura a mesma.
Também Inês Rothes, investigadora da Universidade do Porto, destaca a importância dessa “poderosa ferramenta” para a investigação científica em suicidologia, na medida em que permite “conhecer características e circunstâncias da morte e de quem morreu por suicídio”. A especialista detalha que esta prática implica não só a análise dos registos médicos da pessoa em questão, mas também entrevistas e conversas com os familiares, amigos e colegas. “Implica uma equipa multidisciplinar forense, incluindo o psicólogo forense”, indica a investigadora.
É um processo complexo, adjetiva Renata Benavente, que acrescenta que a autópsia psicológica, por melhorar a compreensão das circunstâncias do óbito, permite aos enlutados “integrarem de forma mais adaptativa a perda da pessoa que tomou a decisão de pôr termo à vida”. “Nos casos de morte ambígua – ou seja, quando não se sabe de forma exata como ocorreu e o que a desencadeou – são frequentes os sentimentos conflituosos, geradores de angústia e infelicidade entre familiares, amigos e colegas da pessoa falecida. Pondo-se a hipótese de morte por suicídio são frequentes os sentimentos de culpa entre as pessoas próximas e as dúvidas sobre o que levou a pessoa a praticar tal ato”, descreve a vice-presidente da OPP.
Inês Rothes partilha dessa leitura, dizendo que a técnica em causa pode ser útil para “ajudar a restabelecer o bem-estar e dar suportes aos afetados e enlutados por determinado suicídio”. “Isto porque permite de forma sistematizada fornecer determinadas respostas e explicações acerca daquela morte”, sublinha a investigadora, que afirma, assim, que a autópsia psicológica pode ser também uma prática adequada de “gestão pós-suicídio ou posvenção”.
Já Renata Benavente acrescenta que os procedimentos que essa autópsia implica, nomeadamente as referidas entrevistas com os enlutados, podem mesmo servir de “ações preventivas de desenvolvimento de problemas de saúde psicológica nestas pessoas”. Além disso, sem essa análise detalhada, “pode haver subnotificação dos casos de suicídio”, alerta a psicóloga. “Tal afeta a sua quantificação e compromete o conhecimento sobre o fenómeno bem como a implementação de medidas para a sua prevenção”, observa.
Aliás, Portugal é dos países europeus com mais mortes por causas não identificadas, realçam ambas as especialistas mencionadas. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), só em 2020 – ano ao qual se referem os dados mais recentes – foram registados mais de quatro mil óbitos súbitos de causa desconhecida ou com causas “mal definidas e não especificadas”.
Perante este cenário, Renata Benavente atira: “A implementação generalizada desta metodologia [a autópsia psicológica] deveria ser uma aposta dos serviços públicos, uma vez que somos um dos países da Europa com maior número de mortes por causa não identificada, e é fundamental o conhecimento aprofundado dos motivos de muitas destas mortes para uma contabilização exata do número de suicídios, implementar estratégias mais eficazes para a sua prevenção e contribuir para a promoção da saúde psicológica dos sobreviventes.”
Segundo relata a vice-presidente da OPP, em Portugal, a autópsia psicológica não é uma prática implementada de forma consistente, sobretudo devido à escassez de profissionais adequados nos serviços competentes, nomeadamente psicólogos. De notar que, numa entrevista recente, o bastonário da OPP, Francisco Miranda Rodrigues, indicava que faltam, pelo menos, mil psicólogos no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“Falta investimento”, reforça Inês Rothes, que denuncia que tem havido uma “não aposta nesta ferramenta de investigação com potencial ao nível criminal, científico e de gestão emocional pós-morte por suicídio ou de posvenção”.
A investigadora salienta que esta é uma prática que exige equipas multidisciplinares e o uso de várias fontes e métodos de recolha de dados, daí que possa ser morosa e, consequentemente, cara. “A investigação requer tempo, mas o facto de ser cara é relativo”, entende. “Dizendo de outra forma, há que pensar, política e estrategicamente, em custo-benefício a médio e longo prazo”, defende. E acrescenta: “Ter dados rigorosos e abrangentes sobre as características e circunstâncias das mortes por suicídio e mortes equívocas em janelas temporais alargadas é muito valioso para informar as estratégias de prevenção e outras medidas de saúde e sociais.”
A investigadora da Universidade do Porto declara, em jeito de remate, que deveria haver um esforço no sentido da aplicação mais generalizada desta prática, quiçá uma parceria entre o Ministério da Justiça (que tutela os institutos de medicina legal) e o Ministério da Saúde.