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Helena Amaro: “A forma como nos movemos poderá fazer-nos retroceder face à geração dos nossos pais”

Depois de os preços dos combustíveis terem atingido números históricos, ultrapassando a fasquia dos dois…

Texto de Flavia Brito

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Depois de os preços dos combustíveis terem atingido números históricos, ultrapassando a fasquia dos dois euros, retomamos uma entrevista realizada, em janeiro, com Helena Amaro, doutoranda em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e pelo CHAIA – Centro de História da Arte e Investigação Artística da Universidade de Évora.

Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Helena Amaro tem-se dedicado a perceber “quando é que a mudança de casa, ou quando é que a mudança de emprego, importam uma mudança de um padrão de mobilidade”, explicou-nos.

Em conversa com o Gerador, no âmbito do tema de capa da última edição da revista, a investigadora fala-nos do peso da mobilidade nos nossos rendimentos, mas também na nossa capacidade de mobilidade social, de como as políticas de mobilidade podem ser um fator de coesão social e de redistribuição de rendimentos, ou de como o aumento dos combustíveis pode criar um problema de mão-de-obra em várias cidades, influenciando mudanças na redistribuição da população entre o centros e as periferias das áreas metropolitanas, mas também entre o litoral e o interior do país.

Gerador (G.) – Movemo-nos para ir trabalhar, mas, muitas vezes, já estamos a perder dinheiro quando o fazemos, correto?

Helena Amaro (H. A.) – Muitas vezes, as pessoas não fazem as contas ao peso da mobilidade no seu rendimento, e estão longe de terem noção do seu impacto na sua mobilidade social. Ou seja, não têm noção do custo, em tempo e dinheiro, da sua deslocação diária. E não têm noção de que a forma como se deslocam – muitas vezes, sem alternativa – preclude a mobilidade social positiva. A forma como nos movemos pode empobrecer-nos, mesmo com níveis mais elevados de escolarização.

Os ordenados não são elásticos. Se ganhar mil euros por mês e pagar 600 euros pela casa, o peso da habitação no rendimento já são 60 por cento. Há casos em que é ainda maior. Só duas pessoas, com dois salários, é que conseguem pagar uma casa, a manutenção das viaturas, a alimentação e as despesas do agregado.

Helena Amaro, investigadora e bolseira de doutoramento da FCT, inserida no CEAU da FAUP da U.Porto e no CHAIA da Universidade de Évora. Fotografia de Isabel Abreu

Alain Bourdin falava disto, em 2011. Muito antes de aparecer o movimento dos coletes amarelos, em França – no início, um movimento social de reação à subida do preço dos combustíveis. Alain Bourdin dizia que, quando o preço do combustível subisse, tal tornar-se-ia insuportável, as pessoas não iriam conseguir pagar [os combustíveis] sem tirarem comida do prato – comem pior, para conseguirem manter o seu padrão de mobilidade, para manterem o seu emprego, para não perderem a sua casa.

Estávamos em 2011, na crise de Lehman Brothers. Pensava eu: não conseguimos mexer na variável da habitação. A maior parte de nós é proprietária de uma casa, tem uma hipoteca ao banco e, portanto, dificilmente, se irá desfazer dela. A partir do momento em que se tem aquela ancoragem, o mais natural é que se aceite as deslocações, se o emprego mudar – para mais perto, ou para mais longe, de transporte público, ou transporte individual –, mas a casa é sempre uma centralidade. Portanto, se eu não consigo mexer na variável da habitação, a única solução é mexer na variável da mobilidade.

G. – E como se pode fazê-lo?

H. A. – Preciso oferecer um transporte, a preço acessível ou gratuito, seguro, limpo, com horários confiáveis, e que tenha uma cobertura de rede e de articulações de interface. Porque todas estas questões são importantes, quando estamos oferecer transportes às pessoas que já usam transportes públicos, e às que queremos que façam uma alteração modal, do transporte individual para o público. Se disponibilizar um transporte que me ponha uma viagem cómoda no bolso, em que consiga ler ou dormir durante a viagem, a mobilidade está a ser o fator que me põe comida na mesa.

Ao fornecer um transporte que liberta rendimento, para fazer face ao aumento do custo da habitação ou da alimentação, redistribui-se rendimento. Por isto, as políticas de mobilidade podem ser instrumentos de coesão social.

Ao distribuir o acesso a serviços, às prestações sociais do Estado e, acima de tudo – isto parece-me ser o mais importante -, sem mexer nos salários – porque não consigo mexer nos salários, a não ser subindo o Salário Mínimo Nacional –, consigo determinar que a mobilidade vai ter o menor peso possível na vida das pessoas. 

O grande problema é que até posso diminuir, ou praticamente querer esmagar, o custo da mobilidade, mas só consigo fazê-lo relativamente aos transportes públicos. Não o consigo fazer quanto aos que precisam de recorrer ao transporte individual – pouco posso nas portagens. Não conseguindo mexer no preço dos combustíveis, para àqueles que andam de transporte individual, porque não têm alternativa, não tenho maneira de lhes redistribuir rendimento.

O universo de pessoas beneficiadas por estas medidas, ainda que fosse muita gente, seria uma imensa minoria, porque é maioritária a percentagem de pessoas que se vê forçada, para cumprimento de horários, a ter de andar de transporte individual. A essas pessoas não consigo chegar, e aí vou ter um problema grave. No dia em que a gasolina chegar aos dois euros – e estamos lá muito perto, falta muito pouco; vamos chegar aos dois euros, em 2022 –, vamos ter um problema de mão-de-obra. E isto é transversal à sociedade: vai acontecer com os operários fabris, as empregadas da limpeza, os seguranças dos armazéns, os professores, o pessoal de enfermagem e médico.

Haverá uma correlação direta entre maus transportes e exclusão social. Com esta leitura, os transportes assegurados poderão ser uma ferramenta de coesão social.

G. – Desvalorizamos a questão da mobilidade? Não é tantas vezes falada como a questão do preço da habitação, por exemplo.

H. A. – Pois não. Há uma conquista na Lei de Bases da Habitação, que me parece importante. Quando foi ouvida a Faculdade de Arquitectura do Porto sobre o que tinha a dizer sobre o projeto-lei, uma das propostas que fizemos foi precisamente sobre a questão da definição de habitat: que, no lugar onde vamos colocar uma casa, tenha de ser garantida a mobilidade, ou seja, que o espaço seja dotado de infraestruturas de transporte. Isto encerra uma alteração de posição metodológica. Não posso prever um conjunto habitacional, ou deslocar um determinado grupo de pessoas para um conjunto habitacional já existente, sem garantir que eles não vão ficar periféricos. Ou seja, ou prevejo o transporte ao mesmo tempo que prevejo habitação, ou então não posso por aquelas pessoas acolá sem assegurar as duas coisas ao mesmo tempo. Ou estarei a criar um gueto. Haverá uma correlação direta entre maus transportes e exclusão social. Com esta leitura, os transportes assegurados poderão ser uma ferramenta de coesão social. 

Neste momento, no Porto, identifica-se já um problema de mão-de-obra. Seja para as tarefas mais desqualificadas, seja para as tarefas mais qualificadas, deixa de haver pessoas disponíveis para trabalhar. As pessoas fazem as contas e, se o teletrabalho não for possível, ponderam várias vezes aceitar o trabalho.

Provavelmente, nos próximos tempos, com esta questão do teletrabalho, a cidade vai enfrentar uma perda de massa crítica das pessoas mais qualificadas. Vão sair do centro. Deliberadamente. Investigadores, nómadas digitais, profissionais liberais, mesmo até as empresas todas de consultadoria e, provavelmente, isto vai acabar por chegar à banca, aos seguros. Os contratos de trabalho passarão a ser negociados com o número de horas dentro da empresa e o número prestado no domicílio. E as contas que as pessoas vão fazer já nem é sequer a questão da semana de trabalho dos quatro dias – que acho louvável. É mesmo decidirem viver numa dita periferia, por não terem de pagar 700, 800, mil euros de renda de casa, todos os meses – já não digo para viverem no centro –, mas para viverem no primeiro subúrbio. E isto vai ter um efeito que, provavelmente, se vai notar, a longo prazo.

G. – Que efeito será esse?

H. A. – Receio de que as Universidades do Porto, Lisboa, Coimbra, Aveiro, Faro, e de Évora – por uma razão diferente –, as universidades ditas do litoral, vão perder a corrida, relativamente a universidades europeias e a outras universidades do país, por não resolverem a questão da habitação dos seus alunos e dos seus professores. Falta-lhes poder de reivindicação.

Os melhores alunos, as melhores cabeças pensantes, que não tenham capacidade para pagar o seu alojamento numa residência universitária destas luxuosas que abriram para aí, mas que não sejam pobres o suficiente para terem acesso e vaga numa residência universitária do Estado, estas cabeças pensantes vão estudar para outro lado. E as pessoas, quando saem do lugar de origem, para ir estudar noutra faculdade que não é o local da sua residência, tendem a ficar a viver no sítio onde estudaram: ali aparecem oportunidades de emprego. As próprias cidades ganham outra dinâmica, e criaram uma vinculação ao lugar. É uma questão de identidade, porque se sentem melhor ali do que se sentem na terra de origem e, depois, vão ficando.

Fotografia de Megdal, via Unsplash

Quando não conseguimos mobilizar esses alunos para serem estudantes nestas cidades, não é depois que eles vêm para cá viver ou trabalhar. Portanto, será, no longo prazo, um dos principais fatores de envelhecimento destas cidades ditas do litoral, se quisermos falar destas dicotomias litoral-interior, centro-periferia. A ser assim, o litoral seria centro e o interior seria periferia. Vamos ter um envelhecimento atroz destas cidades ditas endinheiradas. Envelhecimento no pensamento, nos modos de vida, mesmo até nas questões das criatividades e da participação pública, nas questões cívicas e na participação na vida política. Se estas cidades não oferecerem condições de vida – a mobilidade é cara, a habitação é cara, a alimentação é cara –, essas pessoas vão estudar para outro lado.

Os municípios do interior, do dito interior, que soubessem fazer um investimento, angariando as cabeças pensantes que estejam com vontade de sair do dito centro, para serem professores, e que conseguissem oferecer habitação, mobilidade e alimentação a custos mais acessíveis do que os destas grandes cidades, provavelmente, conseguiam criar muito mais incentivo à procura de universidades como Vila Real, Bragança, Covilhã, Évora. Mais do que, se calhar, muitos planos de muitos ministros e ministérios para o interior. O que vai acontecer é que, não conseguindo a universidade atrair estudantes, não vai conseguir fixar população. Isto não vai lá de Erasmus – 10% dos alunos de Erasmus que fiquem a viver em Portugal por terem vindo para cá a estudar e terem gostado da comida não é suficiente para a renovação da população.

Na cidade do Porto, nos cinemas, nos espetáculos de teatro, nos cafés, nas conferências, nas exposições, a revolução é grisalha, ou seja, a maior parte das pessoas com quem me cruzo são todas da minha idade ou muito mais velhas do que eu. Têm ainda mais cabelos brancos do que eu. O que isto significa? Significa que os filhos destas pessoas já emigraram, ou já são nómadas digitais e já não vivem na cidade, no dito centro. As periferias vão periferias explosivas, no seu melhor sentido. Os sítios para onde estes ditos nómadas digitais forem viver e trabalhar vão aproveitar, se forem inteligentes, a presença dessas pessoas nas periferias escolhidas.

As infraestruturas públicas, pagas com investimento público, estarão a servir uma imensa minoria que vai ter as habitações ao preço que as pode pagar, excluindo, para a ultraperiferia, aqueles que têm de vir de transporte individual para apanhar o metro, ou que tem de vir de bicicleta, ou que têm de vir a pé e têm uma hora de marcha, para conseguirem chegar à estação e entrarem em transporte público.

G. – Outra das questões que tem estudado é o efeito das infraestruturas de transporte na redistribuição de rendimento, ou, pelo contrário, no exacerbar de desigualdades. Como olha para o exemplo do Metro do Porto?

H. A. – As infraestruturas de transporte deviam servir para distribuir rendimento, ou seja, serem um instrumento de coesão social. A disponibilização de um transporte barato, cómodo e capaz permite aceder a uma habitação condigna, com uma renda mais baixa. Perdem sempre o tempo da viagem, mas conseguem ter uma habitação, ainda que mais longe, a preços que podem pagar.

E nesse aspeto o Metro do Porto foi uma oportunidade perdida, absolutamente perdida. O metro só se revelou um instrumento de especulação imobiliária. Pegam num lápis, dizem “o Metro vem por aqui”, desenham um traçado, e definem a mais-valia imobiliária de todos os proprietários que ficam ao longo da linha do metro. Porque a linha do metro tinha de ter sido pensada, tal como as linhas dos comboios, mas principalmente a linha de metro, para permitir precisamente uma ligação rápida, em ferrovia pesada, em canal dedicado, centro-periferia, para criar uma homogeneização. Ou seja, ser um instrumento de nivelamento do rendimento.  Num quarto de hora, em meia hora, vou daqui à Senhora da Hora, ou vou daqui ao aeroporto. É como se, na prática, fizesse um apagamento dos picos das descontinuidades urbanas e tivesse tudo no mesmo grau. Mas, na prática, o que houve foi uma harmonização de preço.

O metro desenhou o traçado da linha e as estações, e um ou outro park & ride, mas não teve um plano de investimento imobiliário que, não só criasse, em cada zona de estação, uma previsão de capacidades construtivas mais elevadas, mas também dissesse, a quem constrói acolá, que 20, 30, 40, ou 50 por cento da construção tinha de ser habitação para todos. O efeito do Metro do Porto – e isso é muito perverso, e é-o cada vez mais – é que é visto como um transporte de A para B, com rapidez e conforto, que permite que o preço a que se vende, no centro do Porto, na estação de origem, seja o preço que a que se vende o metro quadrado – já está a acontecer agora – em Vila do Conde, ou na Póvoa do Varzim. Ou seja, aquilo que é suposto ser uma infraestrutura de democratização de acesso e de apagamento das dicotomias centro-periferia, em que ninguém é periférico, porque toda a gente está dentro da rede, tem o efeito exatamente oposto. 

O que faria sentido era terem adotado um sistema TOD (Transit Oriented Development), um desenvolvimento de projeto e de planeamento, considerando o que são os fluxos existentes, planeando a área de influência à volta das estações.

Quando pego num lápis e digo qual é a capacidade construtiva, e promovo a densificação dos nós ou das estações, crio uma polaridade, tenho uma oportunidade de criar uma centralidade. Implica fazer uma distribuição de um determinado nível de serviços em volta, equipamentos, espaços comerciais, espaços verdes e, claro, habitação. Se não for previsto que 50% da habitação tem de ser entregue ao Estado, para administrar, não conseguiremos um mix social, quando é feito um investimento público tão elevado, para dotar aquela zona de infraestrutura de transporte. Problema: quem vai viver a cinco minutos de uma estação de metro, metro esse que permite, no máximo, em 40 minutos, ter uma abrangência de mais de 25 quilómetros de rede? Quem pode pagar pela habitação que foi para lá. E isto é a completa perversão do sistema. As infraestruturas públicas, pagas com investimento público, estarão a servir uma imensa minoria que vai ter as habitações ao preço que as pode pagar, excluindo, para a ultraperiferia, aqueles que têm de vir de transporte individual para apanhar o metro, ou que tem de vir de bicicleta, ou que têm de vir a pé e têm uma hora de marcha, para conseguirem chegar à estação e entrarem em transporte público.

Nunca é inocente ou inconsequente o pousar-se um lápis em cima do mapa e definir-se para onde é que vai ser o traçado da infraestrutura, e quais são os seus efeitos, tanto benéficos, como danosos. O investimento público não pode ser uma ferramenta de distribuição de mais-valias imobiliárias a privados que não dão solução – como tinham obrigação de dar – ao problema da habitação. Habitação para todos.

Fotografia de Alberto Di Maria, via Unsplash
G. – Dizia numa entrevista ao Fumaça, em 2019, que uma pessoa que se consegue deslocar no espaço, consegue deslocar-se socialmente. E o inverso: quem não se move tende a ficar no mesmo sítio do ponto de vista social. O que quer dizer com isto? 

H. A. – Tendemos a ter o mesmo nível de rendimento dos nossos pais. Muitas vezes, até a mesma profissão, ou andamos ali perto. Nasci em 1975, a minha mãe nasceu em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, e a minha avó materna, em 1918, no fim da Primeira Guerra Mundial.

A minha avó tinha a segunda classe, a minha mãe tinha o primeiro ano da faculdade, e eu estou a fazer um doutoramento, ainda que já há quase dez anos – evidentemente, porque estive a trabalhar ao mesmo tempo. O que é que isto significa? Significa que, em cada geração, ganhamos um grau completo de escolarização. Evidentemente que isso só foi possível com a Primeira República e com o 25 de Abril.

Não termos a mesma profissão que as nossas mães, ou que os nossos avós, é explicado por três fatores essenciais. Como diz João Ferrão, há sempre três questões. O primeiro fator é a escolaridade: quem estuda e quem, em regra geral, consegue estudar um grau acima da geração anterior, tende, ou a não ter a mesma profissão, ou, se tiver a mesma profissão, ser melhor remunerado por ela. O segundo fator é a habitação: pessoas que vivem em casas com mais conforto, não sobre-ocupadas, com melhores inscrições territoriais, que tenham acesso a um determinado nível de serviços, não é uma inevitabilidade terem a categoria social ou profissão dos seus pais ou das suas mães. O terceiro fator é a mobilidade.

A minha avó andava de comboio, não tinha carta de condução e andava a pé. Não saía do seu concelho, fora para um raro passeio ou outro. A minha mãe foi emancipada aos 20 anos para poder ter a carta de condução. Antes e depois disso, andava de transportes públicos, comboio, elétrico, de madrugada e de noite, para se deslocar para os locais para onde era mandada ir. Corria o Minho todo, em substituições nos CTT. Só teve um carro seu já eu estudava no secundário. A geração anterior mover-se e fazê-lo, sendo mulher, em transportes públicos, com limitações, riscos e constrangimentos, talvez me tenha feito pensar nisto desde sempre. Os transportes permitiram o acesso à escolarização e ao emprego, e nos idos anos sessenta do séc. XX, ainda que caros e deficientes. E para as mulheres não se ficarem nas periferias físicas, e do trabalho, isso foi determinante.

A mim, deram-me a carta de condução aos 19 anos, e um carro usado, com 160 mil quilómetros, a diesel, quando já trabalhava no Porto, em Lisboa, e estudava numa pós-graduação em Coimbra. Deixei o comboio, que me permitia dormir e ler, e passei a viajar de noite, para poder ganhar mais umas horas na jornada de trabalho e de estudo.

A minha mãe não poderia ter tido a profissão que teve, se não tivesse tido carta de condução cedo, e eu não podia ter tido a profissão que tive e que tenho, sem ter tido a carta de condução cedo e carro também. Mais do que só mobilidade, estamos a falar de capacidade para conduzir e ter uma viatura própria ou emprestada para fazê-lo. A mobilidade conferiu uma aceleração na progressão na carreira e no rendimento, que não teria sido possível, mesmo que tivesse havido escolarização e a habitação condigna.

A forma como nos movemos poderá fazer-nos retroceder face à geração dos nossos pais. Associada à precariedade do emprego e da habitação, está feito o cocktail para justificar baixas natalidades, dificuldades na reconversão profissional após desemprego, e no apoio aos mais novos e aos mais velhos, comprometendo-se três gerações.

Somos o país em que uma empregada doméstica com a 4ª classe, com carta de condução, porque consegue levar os filhos a explicação, porque consegue trabalhar em mais sítios e não ficar dependente do emprego da frente da porta, por ter mobilidade, consegue ter mais oportunidades de emprego e mais oportunidades de dar uma maior rede social aos seus próprios filhos. Esta mulher vai pôr os seus filhos na faculdade, apesar de elas próprias não terem habilitações literárias suficientes para conseguirem acompanhar os seus estudos. Mas conseguem levá-los a sítios onde eles conseguiram ser acompanhados.

Por que é que esta questão é importante? É que, se a mobilidade me der o acesso àquilo que eu não tenho em casa – às escolas de línguas, à prática de desporto, às explicações, aos ATLs –, provavelmente, vou conseguir ter um mecanismo de compensação que faça com que o nível literário dos meus pais não seja um constrangimento para o meu próprio progresso. Isto é importante. Ou seja, os pais desta geração podem não ter habilitações suficientes para acompanharem os seus filhos, se calhar, do nono ano de escolaridade para a frente, ou do décimo segundo ano para a frente, mas a falta das habilitações é compensada pela capacidade de deslocação. Por que é que isto me parece uma questão importante? É que, provavelmente, a nossa geração é a primeira geração em que os pais se endividaram para pagar um curso superior aos filhos, em que os pais deram aos filhos a carta de condução, muitas vezes, até um automóvel em segunda mão, e os filhos mais qualificados e com mobilidade têm hoje ordenados mais baixos que os seus próprios pais, vivem em situação mais instável, tanto no vínculo do contrato de trabalho, como no contrato de arrendamento. Alguma coisa vai mal no reino da Dinamarca. Se tenho mais escolaridade e tenho mais mobilidade, por que é que as pessoas ganham menos, comparativamente com a geração anterior, por que é que, muitas vezes, trabalham em profissões para as quais estão sobre-qualificadas?

A mobilidade espacial, por si só, não garante a mobilidade social. Mas, neste momento, os encargos crescentes da mobilidade, diminuem o rendimento disponível, levando tempo, dinheiro e cabeça às pessoas. A forma como nos deslocamos no espaço poderá explicar muita da estagnação ou retrocesso na escala social. Se passar muito tempo nos transportes, chegar a casa exausta, não vou ter paciência para mais coisa nenhuma, especialmente, para voltar a trabalhar ou estudar, ou para acompanhar os estudos dos filhos. Se gastar muito dinheiro nas minhas deslocações, não tenho rendimento disponível para aceder à cultura, para viajar, para conhecer outras coisas. Encargos acrescidos com combustíveis, portagens, manutenção da viatura, impedem-me de constituir uma poupança mensal, que permita fazer uma amortização do meu empréstimo ao banco, para diminuir o peso da habitação no meu rendimento. A forma como nos movemos poderá fazer-nos retroceder face à geração dos nossos pais. Associada à precaridade do emprego e da habitação, está feito o cocktail para justificar baixas natalidades, dificuldades na reconversão profissional após desemprego, e no apoio aos mais novos e aos mais velhos, comprometendo-se três gerações.

Em suma: uma política pública de mobilidade capaz conseguirá compensar os erros das outras políticas públicas: da localização dos equipamentos, das não-densidades, ou não obrigatoriedade de previsão de habitação, nas imediações das nucleações, criadas pelas próprias infraestruturas de transporte, por exemplo. Numa segunda fase, a política pública de mobilidade deverá ser uma das vertentes de uma política pública de paisagem, deixando de ser praticamente cega à infraestrutura ecológica, e para ser tributária de um desenho de paisagem justo, espacial e socialmente.

Texto por Flávia Brito
Fotografia de Megdal, via Unsplash

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