Real women have bodies -— é este o título de um conto que li recentemente de Carmén Maria Machado, escritora norte-americana. Uma doença desconhecida ataca somente mulheres, transformando-as em seres incorpóreos, condenando-as a, em alguns meses, irem desaparecendo pouco a pouco. É uma praga que assola, sem ser possível perceber o que a causa, mulheres de todas as idades. Não obstante, pouco se parece importar o mundo com estas mulheres que se tornam apenas consciência. Estas mulheres ganham uma dimensão desconhecida, sendo até capazes de entrar em servidores de bancos ou em sistemas de voto, causando disrupção com forma de protesto. Ninguém sabe se as mulheres sem corpo podem morrer.
O corpo. Uma mulher tem sempre consciência dele. Desde pequenas que somos seres profundamente corpóreos, raramente pensadas de forma que o transcenda. O corpo que parece nunca nos pertencer inteiramente, o corpo que, conforme o entendimento (nome masculino) temos de proteger, cuidar, modificar, esconder ou mostrar. Um corpo governável mediante a sua suposta fraqueza - a de menstruar, engravidar ou de ser usado à força. Tem de ser bonito mas não provocador, magro sem deixar de ser sensual, recatado sem deixar de ser apelativo, tem de cumprir padrões rígidos para ser um corpo “de mulher”. As exigências são infinitas. É um corpo que ocupa freneticamente as maquinações do poder e das leis: este precisa de ser vigiado, regulado e controlado. Talvez por isso as mulheres incorpóreas de Machado pareçam tão irreais. Porque, na nossa infinita pluralidade como mulheres - racializadas, trans, brancas, cis, heterosexuais, lésbicas, bissexuais, com deficiência, migrantes, de qualquer parte do mundo -, somos todas vítimas de uma opressão que se baseia num corpo (controlado, vigiado, regrado, avaliado, agredido, violado, menosprezado). Talvez um dia o corpo que ocupamos pouco ou nada importe. Estamos ainda longe desse dia.
Resolvi escrever este artigo sobre mulheres - nós - por várias razões. Dia 8 de março é dia da mulher, dia 11 de fevereiro celebraram-se dezassete anos da vitória do “sim” no referendo da Interrupção Voluntária da Gravidez, ainda há dias um homem esfaqueou a sua mulher em Lisboa em contexto de violência doméstica. Femicídio - o crime que mais mata em Portugal. Matar uma mulher, não suportar mais a sua independência, a sua liberdade, a sua vida. Talvez tenha decidido escrever sobre mulheres porque nos aproximamos de mais umas eleições legislativas nas quais, como em todas as outras, a integridade e liberdade dos nossos corpos vai a votos. Abrimos as notícias e ouvimos falar de “ideologia de género” (esse termo ultraconservador que, no fundo, serve apenas para indicar o desejo de combater a igualdade de género), questiona-se a pertinência do direito ao aborto (direito esse ainda incompleto e cada vez mais posto em causa por hospitais e serviços cheios de “objetores de consciência”), homens interrompem sucessivamente mulheres, partidos com assento parlamentar propõem acabar com verbas de ajuda a mulheres vítimas de violência doméstica. Os nossos corpos são ainda - talvez sejam sempre - campo de batalha política. Por muito que os queiramos esquecer, que desejemos que ninguém repare neles, que achemos que está tudo ganho. O tempo passa e damos por nós a ter que defender que eles são nossos e que nós somos as suas únicas donas.
Ler literatura escrita por mulheres — de todos os tipos, de todas as épocas da história - permite-nos uma espécie de visão panorâmica da forma como o poder masculino foi tentando delinear-nos um campo do possível, uma esfera limitada dentro da qual existir. As mulheres foram-se sempre esticando e esticando, saltando vedações e alargando esse mundo que se queria pequeno. Como que um quarto no qual as paredes e teto são demasiado apertadas, demasiado baixo. Conseguimos viver dentro dele mas não conseguimos realmente estar de pé. Em certos momentos da história, quando estamos quase quase a conseguir estar de pé, parece que as paredes se comprimem sobre nós com uma força inesperada.
Talvez nunca tenhamos estado tão perto de estar de pé, de ser donas dos corpos que os outros (nome masculino plural) querem governar. Por isso mesmo, parece que as paredes ameaçam comprimir-se uma vez mais. Ao acabar de escrever este texto, compreendo que talvez ele seja mesmo um apelo. Ainda não somos incorpóreas. Enquanto formos mulheres, sentiremos toda a opressão patriarcal no controlo dos nossos corpos. Por isso, no dia 10 de março, saibamos todas votar por quem estica o horizonte da nossa imaginação e não pelas paredes que nos comprimem.
-Sobre Leonor Rosas-
É doutoranda em Antropologia no ICS onde estuda colonialismo, memória e cidade. É licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH. Fez um mestrado em Antropologia na mesma faculdade. É deputada na AM de Lisboa pelo Bloco de Esquerda. Marxista e feminista.