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João Matias: “É o primeiro Museu do Cante e é uma referência regional para o cante alentejano”

O cante alentejano é um género musical tradicional do Alentejo usado para “espantar os males”…

Texto de Isabel Marques

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O cante alentejano é um género musical tradicional do Alentejo usado para “espantar os males” do dia a dia daquele povo. De forma a preservar esta tradição, desde agosto do ano passado que a região de Serpa, em Beja, viu nascer um novo espaço cultural: o Museu do Cante. O objetivo é promover e fazer com que esta arte chegue a todos.

Dotado de um inovador espaço expositivo e interativo, o Centro Interpretativo do Cante, junta-se às valências já existentes, até aqui designado por Casa do Cante, nomeadamente ao Centro Documental Manuel Dias Nunes, à galeria de exposições temporárias, à loja e ao auditório, transformando este equipamento cultural no Museu do Cante Alentejano.

No projeto inicial, a Casa do Cante foi a entidade gestora da candidatura do cante alentejano à lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, apresentada pelo Estado Português à UNESCO em 2013. A candidatura foi aprovada em 27 de novembro de 2014.

Nesta nova etapa, o Museu do Cante Alentejano assume a execução do Plano de Salvaguarda, compromisso decorrente da inscrição.

O Museu do Cante Alentejano é a continuação da Casa do Cante, que nasceu da vontade do município de Serpa de contribuir para a valorização das identidades do Sul, assim como de manter o cante vivo pela região.

O Gerador esteve à conversa com João Matias, coordenador do Museu do Cante, para conhecer este projeto mais de perto. Ao longo da conversa, o responsável procurou ainda refletir sobre a importância de preservar esta arte, bem como as consequências que a pandemia trouxe para estes grupos corais.

Gerador (G.) – É em Beja que está sediado o Museu do Cante Alentejano. Essencialmente, o que é que este museu representa para o cante e para a região da Serpa?

João Matias (J. M.) – Isto tem uma história para trás. Portanto, o nome museu veio sobrepor-se a uma realidade que já existia, que era uma coisa chamada Casa do Cante, que foi inaugurada aqui em Serpa, em 2012, e que tinha como finalidade o processo de inscrição do cante alentejano na lista representativa do património cultural imaterial da UNESCO. Por isso, as coisas iniciaram-se aqui, mas porquê? Porque o cante alentejano é uma prática vocal que é fundamentalmente do Baixo Alentejo. E, dentro do Baixo Alentejo, grosso modo do distrito de Beja, ele tem uma forte presença em Serpa. Desde sempre que houve muitos grupos corais em Serpa, que houve essa prática.

Entretanto, a candidatura concretizou-se em 2014, e Serpa passou a ser comunidade representativa do cante alentejano perante a UNESCO. Portanto, tem um compromisso com esta instituição que é a execução do plano de salvaguarda. O plano de salvaguarda tem uma data de medidas que tem que ver com a promoção, com a salvaguarda do cante, com o apoio, o estabelecimento de redes, etc.

Para além do mais, há uma parte que diz respeito à política municipal de apoio ao movimento associativo de Serpa, no qual os grupos corais desempenham um papel muito importante. Portanto, dentro das associações todas que incluem clubes de futebol, bandas de música, teatros, há os grupos corais que aqui são 13. Eles têm uma importância muito grande e constituem o grupo à parte dentro dos apoios gerais.

Agora, porque é que isto mudou de nome? A Casa do Cante ou o Museu do Cante tem várias valências. Tem aqui o sítio onde estou, que é o sítio onde trabalho. Nós temos um inventário nacional de todos os grupos corais, fazemos uma espécie de monitorização dos grupos para saber o que se está a passar. Depois, temos o centro de documentação em que reunimos documentos relacionados com o cante alentejano. Chama-se Centro de Documentação Manuel Dias Nunes, que foi uma pessoa muito importante em Serpa, um publicista. Depois, há uma loja, há um auditório onde se realizam debates, conferências, seminários e interpretações de cante alentejano, e há uma galeria de exposições temporárias. Foi inaugurado ainda em agosto um Centro Interpretativo do Cante Alentejano que é uma exposição permanente daquilo que se designa como museu. E, é nessa altura, em 15 de agosto, que este espaço muda de nome para Museu do Cante.

É para já um centro de referência. É o primeiro Museu do Cante e é uma referência regional para o cante alentejano. Procura ser também um centro turístico, embora esse não seja o objetivo principal.

G. – O museu tem como objetivo dar a conhecer o cante a todos. De que forma o pretendem promover e fazer com que chegue a todos?

J. M. – Isto tem várias fases. Neste momento o que está feito é que há aqui uma exposição permanente. Depois, esta exposição tem também uns elementos tecnológicos. Tem informação estática, tem um pequeno estúdio em que as pessoas podem cantar, gravar-se a si próprias, e depois ficam com o ficheiro. Isto são pequenas curiosidades.

Está também em construção na Internet um sítio onde ficarão alojadas as informações que nós recolhermos sobre os grupos corais e uma agenda de eventos.

Temos ainda um programa de rádio semanal, que dura uma hora, na rádio Voz da Planície, aos domingos, sobre o cante alentejano. Normalmente, é dos domingos das 11h00 às 12h00.

G. – Têm notado uma boa adesão das pessoas? Já agora as visitas são gratuitas?

J. M. – São, sim! A adesão tem sido razoável. O Museu foi inaugurado no dia 15 de agosto, e nós entre o dia 1 e o 15, quando não tínhamos aberto o museu, tivemos 40 e poucas visitas. Do dia 15 ao 31 de agosto, tivemos 400 e tal pessoas. Praticamente, multiplicou por 10, mas esta foi uma situação muito especial.

Há um programa que se vai reiniciar agora que é a rota do cante. O que significa esta oferta? É ter disponível para os visitantes a possibilidade de assistir aos ensaios dos grupos corais aqui no concelho de Serpa. Como os grupos corais são muitos eles, regra geral, ensaiam uma vez por semana. Mas também como são muitos há ensaios todos os dias. Eles ensaiam nas suas próprias sedes, à noite. Portanto, aquilo que nós fazemos é levar a assistir as pessoas aos ensaios como uma forma interessante de contactar com o cante alentejano porque está se muito próxima dos cantadores. Eles estão no seu meio, não é uma coisa coreografada, nem uma coisa feita de propósito. Às vezes, até as pessoas cantam, partilham petiscos, etc.

G. – Tendo em conta o impacto negativo da pandemia na cultura, o surgimento deste museu foi também uma das formas de contornar ou aligeirar estas consequências para o cante alentejano?

J. M. – Contornar, não sei, mas um dos trabalhos que tentamos fazer ao longo da pandemia foi o de manter o contacto com estes grupos corais. E, apercebemo-nos de que, de facto, o primeiro efeito da pandemia foi a paragem da atividade. Os grupos vivem do coletivo e houve grupos que tentaram ultrapassar isso cantando distanciados, em roda, mas acabou por não resultar lá muito bem. Houve uma paragem grande. Muitos destes grupos têm idades avançadas, as pessoas foram morrendo, não havendo ensaios não houve renovações, e isso teve um efeito grande.

G. – Este pretende ser um espaço expositivo, mas também interativo. Dos registos presentes há algum que o marque de uma forma particular?

J. M. – Nós temos um estúdio, uma box, embora ainda esteja numa fase experimental que atrai muita gente. Mas o que eu realço mais na construção deste museu é o esforço coletivo. Ele representa uma atividade coletiva. Primeiro é praticado por um grupo de pessoas, depois é marcado por grupos corais que se espalham pela região, já para não falar que tivemos de pedir um esforço de muita gente para construirmos esta exposição.

G. – Por curiosidade, por quanto tempo se deu a recolha de material?

J. M. – Uns meses... E ela é constante porque está sempre em transformação. Aliás, nós até tivemos uma pessoa fulcral nisto, que foi o Paulo Nascimento, que pertence ao grupo coral de Castro Verde, e foi ele que coordenou este inventário. Isto demorou, de facto, alguns meses porque tiveram de se contactar vários grupos, tiveram de se ir à procura de grupos, que não sabíamos que existiam, e depois recolher informações muito detalhadas.

G. – Falávamos há pouco que o cante alentejano foi classificado em 2014 como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO. Sente que esta conquista trouxe realmente outra valorização a esta arte?

J. M. – Aquilo que a UNESCO reconhece é o cante alentejano praticado por grupos corais, que começou a acontecer mais ao menos nos anos 20, do século passado. As pessoas cantavam quando iam para o trabalho, quando vinham, nas tabernas, nas festividades religiosas, e a partir de uma dada altura este canto espontâneo que continua a acontecer nas tabernas, por aí fora, passou a ser mais organizado através de grupos corais. Passaram-se a organizar nos vários locais e a ter ensaios regulares. Depois, quando chegou ali ao 25 de Abril, houve uma explosão de grupos corais, nomeadamente, aqui na zona do Alentejo inspirado com a reforma agrária. Depois, voltou a cair e agora com a história da UNESCO voltou a ressurgir. Isto ligado a projetos de cante nas escolas.

O cante hoje também é ensinado nas escolas. Para lhe dar uma ideia de 2014, quando houve o tal processo da UNESCO, a 2020 foram criados 57 grupos corais. É uma coisa muito recente, embora também tenham desaparecido 28.

G. – E no que toca ao mais jovens. Nota que realmente este processo do cante alentejano nas escolas trouxe um maior interesse por parte destas faixas etárias?

J. M. – O processo de cante alentejano nas escolas começou há uns bons anos, no concelho de Serpa. Ele é obrigatório no 1.º ciclo, no momento em que as crianças aprendem canto coral. Isto introduziu uma mudança na forma de transmissão tradicional, que era de pais para filhos, até porque essa transmissão de pais para filhos já vai sendo menos evidente. O contexto social, onde o cante se desenvolveu muito que era o da agricultura, já não existe.

Hoje em dia, os trabalhadores rurais aqui do Baixo Alentejo são imigrantes. Vêm do Nepal, do Meio Oriente, há uma transformação muito grande. Apesar de em muitos locais se continuar a transmitir de pais para filhos, a escola é um novo local de transmissão. Isto introduz mudanças. Muitas vezes, perdem-se especificidades locais na maneira de cantar.

Por um lado, é bom porque isto faz com que haja um regresso dos jovens ao cante alentejano e os jovens trazem as suas preocupações, as suas maneiras de cantar, as suas influências, e tudo isto introduz mudanças. Tal como as modas e as melodias. Continua-se a compor, por exemplo, há grupos corais que cantam agora os efeitos do olival intensivo. Antigamente, cantava-se o trigo, a terra do pão, estas coisas já não existem. Agora existe, sim, no Alentejo as culturas intensivas. Isso é uma mudança no reflexo do quotidiano das pessoas, portanto, isso reflete-se no cante alentejano.

Como ele é muito identitário, está muito enraizado, e é uma forma de expressão popular forte que traduz as preocupações das pessoas.

G. – Ou seja, é uma arte para continuar e permanecer?

J. M. – Sim, está bastante vivo porque continua a ser discutido. Não vejo que isto vá acabar tão cedo. Há grupos corais que estão quase a fazer 100 anos.

É uma arte que acompanha a vida do quotidiano.

Texto de Isabel Marques
Fotografia da cortesia do Museu do Cante

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