“À beira dos 50 anos do fim do colonialismo português há, ainda, histórias que não se contam. Ou que, contando-se, evitam a crueza da realidade por onde se esconde a culpa, a exploração, o racismo, a negligência”, lê-se na sinopse de A Nossa Última Manhã Aqui, uma produção que resultou da bolsa de investigação “Reclamar Tempo”, do Teatro Municipal do Porto, e partiu da procura exaustiva de toda a documentação textual, física e auditiva da história passada da família de Manuel Tur.
A Nossa Última Manhã Aqui é relativa ao derradeiro dia que a mãe do encenador passou em Quelimane, Moçambique, a 16 de dezembro de 1974 - o ponto de partida do espetáculo. Mas esta história familiar começa cerca de duas décadas antes, quando um homem jovem - o avô - decide partir para Moçambique, em maio de 1951, em busca de uma vida melhor.
A narrativa parte da correspondência enviada pelo avô, entre 1951 e 1974, para os familiares na dita metrópole, e onde são partilhadas as expectativas, as conquistas e, de uma forma muito clara e crua, a banalização da violência que a dominação colonial proporcionou.
Manuel Tur contou com mais de 280 cartas, inúmeros vídeos, fotografias, múltiplos relatos, e também algumas apropriações do romance O Retorno, de Dulce Maria Cardoso - que relata a vivência de um adolescente pela fuga atribulada de Angola e a chegada a Portugal.
Em entrevista ao Gerador, o encenador e intérprete partilha que descobrir a sua "posição artística, pessoal e política num trabalho como este" foi a grande dificuldade na construção deste espetáculo.
Em que momento decidiste criar esta peça, que parte da tua história familiar para abordar um tema tão complexo como o processo colonial?
Na prática, na minha cabeça, isto nunca foi um espetáculo. Quando concorri ao "Reclamar Tempo", que é a bolsa de investigação do Teatro Municipal do Porto, concorri exatamente por ser uma bolsa de investigação. Porque há muito tempo que me confrontava com os materiais, mais reais, mais ficcionais, sobre o passado da minha família, muito antes de ter assente que o passado colonialista era realmente o passado também da minha família. Ou seja, sabia da nossa história em Moçambique, e este nosso é plural majestático sempre, porque eu nasci cá, mas sabia desta história. Sabia da relação da minha mãe e das minhas tias, que nasceram lá, com o território, com as pessoas. Sabia mais ou menos o que é que o meu avô tinha feito, mas, para mim, havia sempre uma espécie de neblina que pairava por aqui, porque nós... ou eu, pelo menos, como antirracista, anti-passado colonizador, achava sempre que a história da minha família poderia não ter passado exatamente por isso.
Em 2015, quando o romance da Dulce Maria Cardoso, O Retorno, me caiu nas mãos, até falei com a Dulce sobre a possibilidade de poder adaptar o romance, fazer qualquer coisa. Por isso, não sei se por ignorância não intencional, ou por, quase inconscientemente, não me querer confrontar com a coisa, digamos assim, fui sempre achando que, se calhar, podia ir investigando, poderia ir pensando, mas que a coisa não seria tão grave do nosso lado.
Quando me é atribuída a bolsa, fui fazer uma investigação. A proposta deste trabalho, que, como disse, nunca foi um espetáculo na minha cabeça... Chamava se "Arquivo Morto" e a ideia era exatamente radiografar a história da minha família com o romance da Dulce. Portanto, sobrepô-los e perceber o que é que era comum, o que é que não era comum, o que é que não conhecia, etc., com as devidas diferenças. Nós somos de Moçambique, o romance da Dulce é de Angola. Os nomes das personagens são diferentes... Mas, na investigação, ao desenhar uma árvore genealógica ou uma cartografia emocional, fui começando a perceber que as coisas eram demasiado próximas.
Na altura em que estive realmente estes dois meses a trabalhar intensivamente sobre isto, comecei a perceber com os colegas de investigação, com os próprios tutores da Bolsa, que havia uma coisa que todos me diziam, que era que achavam que estava a fugir de construir um espetáculo sobre isto. Mas achava que não queria, queria era investigar, queria perceber, queria entender... porque estamos a trabalhar sobre material que emocionalmente é muito complexo.
Não tínhamos obrigatoriedade de apresentar nada, uma conclusão da investigação. Mas um dia, tenho uma insónia muito grande e decido ir arrumar o escritório e, quando arrumei o escritório, descobri uma caixa, uma caixa de arquivo, que juro - isto parece completamente construído e fantasioso -, juro que não sabia que lá estava. Percebi depois que ela tinha vindo da casa da minha bisavó cá de Portugal ,e essa caixa continha 280 cartas, telegramas, algumas folhas rasgadas e uma série de pequenas coisas que o meu avô e o seu irmão, que posteriormente foi viver também para Moçambique, tinham enviado de lá.
A certa altura, a investigação também se separou um bocado do que era o romance da Dulce e começou a ganhar corpo e território a partir da história real da minha família, porque ela passou a estar verbalizada naquelas cartas e naquele material que fomos encontrando. Portanto, nesse momento, sem querer acreditar em grandes coincidências, percebi que, de alguma maneira, estava a ser empurrado para construir uma reflexão, para construir qualquer coisa mais corpórea, que realmente era um espetáculo que estava a evitar.
Portanto, este preâmbulo todo para responder a isto. Acho que fui empurrado para construir est'A Nossa Última Manhã Aqui, sem recusa nenhuma da minha parte. A partir do momento em que comecei a descobrir tudo isto, era completamente impossível negar o que poderia ter acontecido, ou evitar... Não conseguia voltar a guardar isto tudo na gaveta e ir trabalhar um Shakespeare ou um Strindberg qualquer.
Como é que foi o processo, também emocional, como referiste, de trabalhar esta temática e de construir a história que é agora apresentada no espetáculo?
Começou por ser muito duro. Depois acabei por fazer uma outra formação em teatro documental com a Lola Arias, em Barcelona, exatamente porque queria perceber... Perdoem-me a presunção, [mas] dramaturgicamente a minha cabeça funciona muito agilmente, ou seja, consigo perceber como é que os materiais se ligam, como é que podem funcionar.
Para mim, a grande dúvida, e foi esse o momento em que fui trabalhar com a Lola Arias, foi: como é que te confrontas com o material documental, com o material que é teu? Como é que percebes o que é que pode ficar de fora? Como é que evitas ou aceitas a demonização daquelas figuras? Porque é a tua família, são as tuas pessoas. E, principalmente, como é que, a partir de um ponto de vista documental, decides como é que a tua figura deveria existir? Que personagem é aquela? Que persona é aquela? Sou isento disto tudo ou eu sou imparcial? Quero ser isento ou eu não quero ser isento? O grande confronto emocional e a grande dificuldade no trabalho, para mim, e curiosamente para a equipa que me acompanhou em toda a construção do espetáculo, foi exatamente como é que poderia descobrir a minha posição artística, pessoal e política num trabalho como este.
No meio disto tudo, a caixa de Pandora existe. A partir do momento em que descubro estas cartas e em que decido um dia telefonar a uma das irmãs do meu avô, que ainda está viva, que me faz chegar um álbum de fotografias; [a partir do momento em que] alguém me faz chegar uma fita com umas coisas gravadas, falo com [mais] não sei quem e há outro primo com quem nunca estive, que entretanto descobriu um Super 8, etc... a caixa de Pandora abre-se realmente,
e o material deixa de ser só sobre o retorno, e principalmente sob o ponto de vista do homem branco, e da sua família, que a certa altura é obrigado a regressar a um país que não é o seu, ou que já foi a sua casa, mas passa a ser sobre uma reflexão muito profunda sobre o que realmente foi a expropriação de território, a ocupação de um país, sob um ponto de vista pessoal, sob o ponto de vista desta figura que era o meu avô, ou o seu irmão, e todas as figuras que a partir daí foram aparecendo nesta história.
Durante o processo com a restante equipa, sendo este um tema com que as pessoas se relacionam de maneiras muito diferentes, foram surgindo outras perspetivas e opiniões que ajudaram a chegar a este resultado final?
Sim, o que é muito curioso quando se usa a expressão "passado comum" é que realmente percebes que o "passado comum" é absolutamente transversal à geração entre o final dos anos 50 e a geração que é a minha dos meados dos anos 80. Todos nós na equipa, a certa altura, tínhamos um tio ou uma mãe que tinha nascido lá, ou tínhamos um avô, ou uma avó, ou um tio-avô que tinha saído daqui, tinha ido para lá e tinha retornado, ou tínhamos alguém que sempre tinha ouvido falar sobre isto, sob o ponto de vista da conquista, da descoberta, do império, mas que nunca tinha tido lá ninguém.
Dizer que isto começou por ser um espetáculo muito pequeno, onde estava eu, a Belisa Branças, que fez o apoio ao projeto, portanto, uma espécie de assistência de encenação, apoio à produção, acompanhamento teórico e tudo; o desenho de luz da Cárin Geada, e a cenografia da Ana Gormicho. Portanto, isto era uma coisa muito reduzida enquanto espetáculo documental, e a certa altura começaram-se a agregar pessoas.
A Cátia Vilaça aparece a meio do caminho, o Paulo Ribeiro Silva, da revista INTRO, também se cruza no caminho, porque ele também estava a trabalhar sobre o passado colonialista, mas sobre o ponto de vista da Guerra do Ultramar, e isto começa a ser uma catadupa de gente que se vai começando a agregar ao projeto, ou porque tem uma ligação muito direta, ou porque está a investigar o tema, ou porque tem uma mãe arquivista que, a certa altura, pode ser útil à própria organização dos arquivos e do processo. E o que foi muito curioso também foi perceber que os pontos de vista, ou até mesmo os ideais, apesar de as histórias dos passados serem completamente distantes ou até dispares, eram absolutamente "cruzativos", inventando aqui uma palavra.
A Belisa, por exemplo, não tinha relação direta com a história, digamos assim, com o passado comum colonizador, mas tinha ouvido falar, ou tinha lido, ou entretanto para a investigação, leu as coisas da Joana Gorjão Henriques, ou pegamos no Atrito da Memória do Miguel Cardina. Nunca houve... e isso foi muito bonito... Nunca houve uma espécie de desmentir ou desdizer de qualquer pessoa que se agregasse ao projeto, mesmo que ela pudesse pensar de uma maneira ligeiramente diferente.
Isto é absolutamente egocêntrico. [Mas] Acho que se percebe a formulação que vou fazer, que é, quem poderia realmente sentir-se melindrado ou magoado no meio disto tudo poderia ser eu, porque estava a trabalhar, a expor, a trazer para cima da mesa a figura do meu avô, que já morreu, portanto, não se pode defender, uma figura que é absolutamente central da minha família.
Como digo inclusive num dos momentos do espetáculo, [é] a pessoa que me ensinou uma série de coisas, que me ensinou a respeitar o outro, que me ensinou que África e Moçambique eram territórios absolutamente brutais, que me ensinou a não dizer preto, que era mais ofensivo, [ensinou a] dizer negro, mas, ao mesmo tempo, esta é a figura que trago para cima da mesa e que percebo que tem o comportamento, o discurso - não à época, porque não interessa para nada - que é aquele. E nunca houve ninguém que desdissesse ou que se atravessasse por meio disto tudo. Os discursos cruzavam-se sempre de alguma maneira, porque realmente percebíamos que estávamos a trazer material importante para cima da mesa.
Já se fala o suficiente do passado colonial, e particularmente desta perspetiva das pessoas que retornaram?
São dois pontos de vista sobre um exato mesmo tema, e um não invalida o outro. Claro que não posso dizer à minha mãe, que nasceu em Moçambique, que a certa altura, quando lhe dizem em 74 que rebentou uma revolução, que eles têm de fugir e tem de voltar para um país que não é o dela, ela com 15 anos não consegue compreender o que é que pode ter feito de errado. Mas o que é brutal é a minha mãe estar na primeira fila deste espetáculo, sem saber quase nada do que estava a acontecer na criação deste projeto, com 65 anos e, pela primeira vez na vida, dizer, "ah, ok, eu nunca tinha pensado sobre este ponto de vista."
Nós não ouvíamos a Grândola [Vila Morena] em casa, por exemplo. Não ouvíamos e não é porque não sejamos de esquerda, ou sejamos de direita, ou sejamos anticolonialistas ou pró-colonialistas. É porque aquela música espoletava uma memória na minha mãe do dia mais triste da vida dela. Ela tem de abandonar tudo, e aqui não interessa se deixa para trás bens materiais. É o que ela deixa para trás enquanto pessoa, enquanto adolescente, para chegar a um território que não é o seu, absolutamente desamparada, sem saber o que é o IARN [Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais], sem saber como é que pode ser apoiada, com uma família que não conhece.
Este discurso, que foi a grande tentativa de equilíbrio dramatúrgico no espetáculo, não é nem um discurso autocomplacente nem de coitadinho, nem isto invalida recuar-se 30 anos e perceber, "mas, para tu teres nascido em Moçambique, o teu pai chegou e trabalhou aqui, fez isto e teve alguns comportamentos" - o teu pai, leia-se, os pais de não sei quantas pessoas.
Agora, se se fala o suficiente, acho que não se fala de todo. Continuamos sem ter o pudor de usar a palavra império, mas continuamos a ter uma vergonha imensa de usar a palavra colonialismo.
Claro que, naturalmente, as comemorações dos 50 anos de 25 de Abril trazem para cima da mesa a experienciação do pensamento do discurso e trazem a possibilidade, e ainda bem, de se poder trabalhar, falar sobre isto, ouvir muitas coisas, muitas palestras, ver-se muitas coisas.
Mas continuo a achar que há um pudor imenso em nos sentarmos à mesa com os nossos próprios amigos, ou com os nossos companheiros de trabalho e admitirmos que somos netos de retornados, que realmente o meu tio avô pode ter partido o relógio com tanta porrada que deu ao criado. Acho que há que falar sobre isto.
Não sei até hoje se a minha família me perdoa, entre aspas, o facto de ter feito este trabalho. É emocionalmente muito complexo porque há uma espécie de sensação de traição porque estás a expor algumas coisas e, principalmente, pessoas que já cá não estão. É horrível esta expressão, mas há um dever cívico e ético de, pelo menos, trazer este pensamento para que possa ser discutido mais à frente.
O que queres provocar no público, ou que reflexão sugeres?
O que me interessa muito com o espetáculo é esta inquietação - parafraseando o Zé Mário Branco - que ela te provoca, durante e principalmente depois [do espetáculo]; que é a mesma inquietação que acho que fui escondendo durante algum tempo, guardando durante algum tempo, e a partir do momento em que comecei a mexer nos materiais, percebi que isto tinha de ser exposto. E sempre sobre o ponto de vista quase do veículo de transmissão. Nós entregamos todos estes materiais, que são pessoais, que são transversais a outras famílias, para que esta inquietação fique presente. Quase nunca sem ponto de vista. Há dois ou três momentos em que é impossível que esse ponto de vista não aconteça, e quero que ele aconteça, como autor, como criador, mas é muito sobre deixar do outro lado o que é o meu pensamento, o que aconteceu, e agora decidam o que é que podem fazer com isto.