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Mónica de Miranda, uma voz política nas artes visuais

Em 2019, quando “já não era jovem”, Mónica de Miranda foi nomeada o Prémio Novos Artistas Fundação EDP. Mas o seu percurso era já longo.

Texto de Flavia Brito

Mónica de Miranda na exposição “Caminho para as estrelas”, que aconteceu no Jahmek Contemporary Art Luanda, setembro 2022 | DR

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Nascida no Porto, em 1976, no seio de uma família angolana, a artista e investigadora formou-se em Artes Visuais, na Camberwell College of Arts, em Londres, onde viveu ao longo de 15 anos.

Em 2007, quando chegou a Lisboa, uma cidade que desconhecia, encontrou um mundo artístico virado para os cânones europeus, “fechado em si próprio” e para as questões do Sul Global. Decidiu então viver entre as duas localizações: Lisboa tinha a qualidade de vida, Londres a estrutura e as condições para o trabalho que desenvolvia.

Vários anos depois, perante uma impossibilidade de viajar, surgiu a ideia do Hangar – Centro de Investigação Artística, que fundou em 2014, como um “lugar de resistência”, de representação e de pertença para as diásporas africanas, na capital portuguesa.

Hoje, estabelece-se entre Lisboa e Luanda. A política, a memória, a história dos lugares ou a arqueologia dos espaços são temas que marcam o seu trabalho interdisciplinar, onde fala a vários tempos e nas fronteiras entre a ficção e o documentário. Em entrevista à BANTUMEN, em novembro do ano passado, Mónica de Miranda falou-nos do seu percurso, do seu trabalho, do espaço que não encontrou em Lisboa, da responsabilidade de criar imagens, e dos desafios que acarreta ter uma voz política nas artes visuais.

Podes contar-nos um pouco do teu percurso até te tornares uma artista visual?

São muitas páginas de currículo, mas também muitas viagens e muitas histórias. Não é uma história linear. Tem várias experiências, por vários lugares, e várias relações culturais.

Nasci na diáspora, de família angolana, e vivo [atualmente] entre Luanda e Lisboa. Estive em Inglaterra durante quase 15 anos. Depois vim para Lisboa, já em idade adulta, aos 33 anos. Cresci em Portugal, mas no Norte, então, Lisboa era uma cidade completamente desconhecida para mim. Depois tive a minha filha e fiquei cá.

E foi uma cidade que me encantou, mas também me desiludiu. Na altura, havia pouco espaço para o tipo de trabalho que estava a fazer. Estava a vir de Londres, onde havia uma outra dimensão, principalmente, nos assuntos que referem uma abordagem biográfica pós-colonial. Em Portugal, na altura, havia muito pouco espaço. 

Tinha a experiência de trabalhar com coletivos de artistas e em programas de regeneração urbana. Estive muito tempo na área de Brixton e Streatham, a sul de Londres, onde desenvolvi vários projetos artísticos, já um pouco underground, mas também com o apoio do Lambeth Council. Desde os anos 90, vi cidades, como Peckham e Brixton, que eram assim áreas mais escuras da cidade a gentrificar. Vi vários motins raciais em Brixton. Fiz parte de um coletivo que se chamava Área 10. Isto para dar um pouco de background de como surgiu o Hangar – não foi ao caso. Teve essa história, essa raiz e essa experiência em Londres. Fiz muita produção também, organizei vários eventos, como o Carnaval del Pueblo, em Elephant and Castle. Fui júri no Notting Hill Carnival, onde fiz várias coisas. Fui também artista educadora em várias galerias, como a Tate Britain. Mas também trabalhei com a polícia, porque tenho o meu passado em arte terapêutica e trabalhei com hospitais, com vários grupos. Trabalhei durante dez anos com as comunidades jamaicanas e africanas de Brixton. Isso foi o meu background, onde trabalhava muito com socially engaged arts, empoderamento a partir da arte, de uma arte relacional. Fiz isso imenso tempo. Depois, quando vim para Portugal, comecei a focar-me mais no meu trabalho artístico…

Isso foi em que ano?

Em 2007, mas andava entre lá e cá, porque achava que não tinha muito espaço aqui. Já estava num outro lugar profissionalmente, e, aqui, tudo o que me era oferecido era muito precário. E não havia muito espaço para o meu tipo de trabalho. Ainda andei bastantes anos entre lá e cá a trabalhar. Vinha para aqui, porque gostava…

E vieste com um propósito, inicialmente? 

Já estava um pouco cansada de Londres, por causa da qualidade de vida. Fiquei lá 15 anos. Fui com 19. Lisboa, para mim, era um escape, embora fosse uma relação amor-ódio, embora tivesse uma outra qualidade de vida. Já estava [a morar] na periferia de Londres e era cansativo o dia-a-dia. Quando vim, Lisboa ainda não estava gentrificada, então vim para o centro a pagar “nada”. Foi isso que me fez ficar: poder vir da periferia, de bairros em Londres em que vivi, e poder ocupar o centro de Lisboa. 

Quando vim para Lisboa, ainda podia ocupar esse centro, porque estava a trabalhar lá e vinha com outro poder económico. Foi o que me permitiu ficar e também estar numa posição de conseguir não depender da precariedade, ou de estruturas que não te deixam entrar. Tive essa flexibilidade. Ganhava dinheiro em Londres, ia e voltava. Fiz isso durante bastante tempo, depois fiquei grávida e não consegui mais viajar. Tive uma gravidez de risco e foi aí que surgiu a ideia do Hangar. 

O Hangar foi, de certa forma, tentar criar uma estrutura que não existia. Ou tentar criar um sistema onde me conseguia inserir. Acho que podemos estar a lutar muito contra o sistema, mas ele, às vezes, condiciona-nos, então, estamos sempre a viver num lugar de recusa. E o que podemos fazer, se conseguirmos os meios ou a força, é criar o nosso próprio sistema

Fundei [o Hangar] com o apoio de uma organização, em Inglaterra, que foi a Gasworks, da Triangle Network, que é uma rede muito grande em África. [A Triangle Network] Começou na África do Sul, porque há muitos países que não têm um ensino formal artístico. Então, foi uma rede, criada desde os anos 80, para que os artistas pudessem estar em residência e fazer workshops onde houvesse troca de experiências. Desde artistas nacionais, como artistas internacionais. E a Triangle Network foi fundamental para a criação de várias comunidades artísticas. 

Na altura, cheguei a Portugal e falei com a pessoa que estava à frente dessa rede para montar [o espaço] aqui. Houve também, na altura, o [programa] BIPZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa e, como tinha experiência em programas de regeneração urbana, concorri. Foi assim que começámos.

No fundo, criar um lugar que não encontraste quando chegaste a Lisboa. Falavas num amor-ódio. O que te impactou negativamente relativamente ao trabalho disponível em artes visuais?

Quando cheguei, era uma arte muito virada para cânones europeus, muito uma reflexão da arte por ela própria, muito fechada para as questões do Sul Global, as questões africanas. O meu trabalho agora é um pouco mais auto-referencial, [mas], na altura, era muito biográfico. Trabalhava muito a questão da biografia. Essa relação da diáspora com África. E não havia quase um espaço para [isso]. Posso dizer que fui convidada, só passado dez anos de estar em Portugal, para o prémio da EDP, como jovem emergente. Já não era jovem! Foi há três anos. Então sempre trabalhei muito fora  do contexto artístico português. 

O Hangar foi sempre um lugar de resistência. É um lugar de encontro entre várias áreas, mas principalmente das artes visuais. Como viajo, como artista, acabo também por trazer uma rede de fora, desde que fui, em 2016, à Bienal de Dakar. Acabou por se abrir um mundo onde há uma interação entre Lisboa e o panorama artístico internacional. 

Foi sempre uma surpresa como [o Hangar] foi crescendo. Às vezes, pensas que não tens as condições para o fazer, as coisas vão acontecendo, tens uma rede, e vai crescendo por si. [Atualmente] Já é uma estrutura que dá trabalho a várias pessoas, que reflete muito as questões do Sul Global, em Lisboa, e que tem feito um trabalho, principalmente educativo com a comunidade.

A questão de a arte aqui ser um mundo muito branco e de não haver uma representação, nas artes visuais, da própria população de Lisboa. Não haver representatividade. Na altura, eram poucos os artistas da minha geração. Alguns foram embora. Houve muitos angolanos que passaram por cá e depois acabaram por sair, como Yonamine, Délio Jasse, Francisco Vidal, Eugénia Musa, Carlos Bonga. Então, pensamos que, no Hangar, era importante fazer um projeto de educação e de formação, e começamos a investir bastante nisso. 

Fizemos o programa Compasso, que foi para afrodescendentes, e passado algum tempo – isto foi em 2015 – vês que, em Portugal, começa a haver alguma abertura e muito mais jovens a sentirem que há um espaço para falarem e para pertencerem a um contexto de artes visuais. As estruturas estão a começar, neste momento, a abrir e a ter mais espaço também para esse discurso. Ainda é um trabalho que se está a começar mas em evolução. 

Falavas das questões do Sul Global, em Lisboa. Que questões são essas? 

Tem de haver uma reflexão sobre a própria história. Portugal tem de se questionar mais sobre o seu papel na colonização e todos os efeitos da colonização em várias questões de racismo estrutural. É importante haver uma reflexão de Portugal em relação a isso, e também haver um espaço para as diásporas africanas poderem ser representadas e poderem criar as suas próprias estruturas. 

Porque, neste momento, também há a questão do tokenismo. [Porque] Tem de haver representatividade. Tem de haver um sentido de responsabilidade e de reflexão. O mundo das artes, quando cheguei era super fechado em si próprio. E o Hangar também surgiu nesse sentido de dar acesso, de fazer essa ponte entre entre os dois mundos. Porque há quem queira começar e não saiba como entrar numa estrutura que é super fechada. Então, acabamos por conseguir mediar. 

O projeto tem vários programas: programas de exposições, residências e investigação. Trazemos pessoas de fora sempre, mas sempre em relação com o local. O global e o local, uma relação onde há várias reflexões. Não queremos ficar fechados numa reflexão, mas várias reflexões à volta dessa questão do Sul Global, em interação com o Global Norte. Sempre num lugar de contacto com a memória, com a história e as diásporas africanas.

Portugal está atrasado nessa reflexão comparativamente com outros países da Europa, que partilham a mesma experiência colonizadora?

Em relação à Inglaterra, acho que bastante. Na Inglaterra, houve, nos anos 80, um movimento negro das artes, Black British Arts, e também movimentos cívicos. Não tivemos isso aqui. Quando cheguei, havia conversas que eram muito complexas de se ter. Quase nem as tocavas. E neste momento há conversas que se têm em debates públicos. Estão a mudar mentalidades. Mas estamos a falar, se calhar, de um atraso de 40 anos.

Na Inglaterra, já há, no dia a dia, políticas de integração que fazem com que não haja um racismo estrutural como há aqui. Ou seja, há a lei de igualdade de oportunidades. Todas as empresas, todas as instituições, têm de ter representatividade, o que aqui não existe. Uma mudança tem de vir daí também, das políticas que se fazem. Senão fica um nicho de pessoas que realmente estão a tentar mudar.

[Em Portugal] Há toda uma pressão de um sistema que não muda, em termos de leis e integração. Tem de haver políticas para que haja uma mudança maior. Há vários trabalhos a serem feitos nesse sentido. Há associações a ser formadas nesse sentido, que estão em conversa com a DGArtes. Então, está a haver mudanças graduais desde que cheguei até agora. 

O pós-colonialismo, pós-arquivo, pós-memória são temas que marcam o teu trabalho. Foram os temas que te interessaram desde logo, quando te tornaste este artista visual?

Quando nasces num lugar e não te sentes completamente desse lugar, há sempre uma procura de um outro espaço que não habitas. Ou habitas na tua própria memória. O teu lugar físico é diferente do teu lugar espiritual, ou emocional, ou mais ancestral. 

Através do meu trabalho, a pós-memória foi, de certa forma, um resgatar dessa memória, que tinha a partir das histórias que vi contar. Quando não nascemos em África, mas temos família africana em casa, estamos em África. Mas na rua já não estamos. Então, a partir do meu trabalho, foi um exercício de tentar o retorno: o contar histórias que surgiam de histórias biográficas, mas que, depois, são transmutadas para uma ficção; ou tentar imaginar um lugar que não é presente, mas que também habita dentro de nós. Um exercício de pós-memória é ir a esses lugares, à memória que nos foi passada, a nossa herança, e a partir daí contar a nossa história. Mas não estar num lugar de vítima ou de dor. 

A história da colonização deixou bastantes mágoas e feridas, mas estamos num momento em que não podemos estar no presente a viver um trauma, independentemente das dificuldades que vamos passando. Na arte, temos um lugar seguro para nos reimaginar e criar um outro espaço. No meu trabalho, sempre tentei reimaginar. Sempre falei a vários tempos. Ou seja, a questão da política, o lugar, a política do lugar, a memória, a história. Também estou bastante interessada na história dos lugares, a arqueologia dos espaços. Isso são temas que têm sido frequentes. 

O meu trabalho também demora bastante tempo a ser criado. Tem uma parte de investigação muito forte, porque é uma coisa que está em aberto. Vou procurando, vou deixando que o trabalho me encontre a mim, às vezes, porque também há a poética do espaço e dos lugares, quando estamos a falar de assuntos que têm a ver com um passado mais sombrio da nossa história e queremos transmutar, os espaços têm histórias e são essas histórias que procuro contar.  

Quando vou fotografar as ruínas dos impérios coloniais em Angola, ou quando estou a fotografar os bairros da periferia de Lisboa são feridas na própria malha urbana. Mas a própria malha urbana fala-nos de um estado psicológico, social, da sociedade onde vivemos, ou da própria história. Em Luanda, esses edifícios são quase esquecidos, ou são demolidos, ou ficam ao abandono – não se sabe muito bem o que fazer, é uma ferida na cidade. 

Como já referiste, foste nomeada para o Prémio Novos Artistas Fundação EDP, em 2019, e apresentaste no MAAT, um trabalho que, na verdade, já tinhas começado anos antes… 

Estive a explorar bastante a história da estrada militar, que é uma estrada que está à volta de Lisboa, que foi usada como defesa das invasões francesas e inglesas, no século XIX. No pós-independência, com as guerras civis em Angola e Moçambique, houve uma ocupação dessas estradas pelas populações africanas que queriam pertencer à cidade, mas não conseguiram e ficaram nas margens, na estrada militar, onde temos todos os bairros: a Cova da Moura, a Estrela de África – que já não existe –, a Azinhaga dos Besouros – que fotografei e também já não existe… Ao longo de dez anos, fotografei essa estrada militar. 

Tinha começado, em 2009, a fazer esse trabalho. Quando me convidaram para o prémio, em 2019, disse que queria trazer esses assuntos para um espaço central que é o MAAT [Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia], que é a própria cidade. Porque é um lugar onde tens uma audiência muito grande, e queria que a história de Lisboa estivesse em discussão

Trabalhei com o teatro Griot, que são colaboradores, e com o Chullage, com quem também tenho vindo a trabalhar ao longo do tempo. E fiz um trabalho que se chamava “Circular do Sul”, que é essa estrada – a circunvalação, ou a estrada que está à volta, que todas as cidades têm, está no sul. Então, foi trazer essas histórias do passado. Essa estrada ainda é um forte que não deixa entrar imigrantes na cidade. No entanto, neste momento, há uma gentrificação muito grande da cidade e até os próprios bairros estão a ser puxados [para fora], principalmente em Loures. 

A especulação imobiliária é muito grande. Houve uma altura em que ia a esses locais e havia muitas demolições. Fotografei-as todas. Depois acabei por ter fotografias de bairros que já não existem, de uma cidade que desapareceu. E acabei por doar as fotografias ao Arquivo de Lisboa, como uma memória de uma cidade que já desapareceu. 

Isso tem sido um trabalho ao longo do tempo. Como às vezes faço um trabalho documental que não exponho, o trabalho documental acabo por o ficcionar. Porque não sou fotojornalista, mas gosto do que é real e concreto, mas depois tento sempre imaginar esses outros lugares. 

Quando fiz a “Circular do Sul”, em 2019, também havia a questão da Jamaica. Eram assuntos que estavam muito nos mass media e, como artista, acho que temos uma responsabilidade. Não queria estar a pegar só nessa imagem de bairros pobres, ou só as fachadas, porque não vemos para além da fachada. Então, demorei imenso tempo a saber o que fazer com isso, para que houvesse uma meta-narrativa que chegasse a um outro lugar. Foi quando fiz esse filme, que é baseado em várias histórias da estrada militar, mas em que há uma ficção, onde o teatro Griot, com vários atores, acaba por encenar personagens do passado, como Napoleão Bonaparte, para falar como a história se repete: no passado, [houve] as invasões francesas; neste momento, [a estrada militar] ainda é uma fortaleza que não deixa entrar imigrantes; e depois havia este presente. 

Foi uma história falada a muitos tempos, a três tempos, nesse mesmo espaço, onde também incluí os fortes. E foi interessante as dinâmicas que houve para ter acesso aos lugares, porque quando dizia a história que queria contar, muitos desses lugares que ainda vangloriam a História portuguesa da expansão, dos Descobrimentos, como Museu dos Combatentes, não me deram acesso a filmar. E estamos a falar em 2019. Ou seja, era quase uma censura ao trabalho. Acabamos por tirar coisas do guião para pedir autorizações e acabamos por ter uma ou duas autorizações, quando retiramos várias componentes políticas do trabalho.

Mónica de Miranda na exposição “Caminho para as estrelas”, que aconteceu no Jahmek Contemporary Art Luanda, setembro 2022 | DR

Recentemente, na Gulbenkian, na “Europa Oxalá”, e numa exposição que está a viajar fiz os “Contos de Lisboa”. Como doei as imagens mais documentais ao arquivo, queriam que fizesse uma exposição. [Mas] as imagens documentais não acho que elas me pertençam, porque fazem parte de realidades super difíceis de várias comunidades. 

Na verdade, fotografei pessoas – ainda tenho [essas imagens] fechadas no meu arquivo. Acabei só por doar as imagens das casas e dos espaços que foram demolidos, ou as casas que foram feitas e estavam construídas. (Depois acabei por fazer um trabalho que era a “Casa Portuguesa”. Dei [as imagens] a uns arquitetos para fazerem a requalificação da casa que esteve no MAAT, na exposição “Interferências”. Uma dupla ironia. Casa portuguesa, que não era casa portuguesa, era casa africana.)

Mas, voltando aos “Contos de Lisboa”, queriam que fizesse uma exposição com aquelas imagens, e eu disse que gostava de pegar na exposição e abordar o tema de outra forma. Então, acabei por voltar outra vez aos bairros e, nas casas demolidas, apanhei objetos que ficaram para trás.

Como artistas visuais, estamos sempre a produzir imagens e, na altura, estávamos a ser bombardeados por imagens da Jamaica. Temos de ter um sentido de responsabilidade com o que fazer com essas imagens. Há estigmas de representação. Como uma arqueóloga, retirei os objetos. Havia um manual de estudos de política internacional dentro destas casas, vários manuais de estudos universitários, documentos, sapatos de festa deixados para trás… Encontrei variadas coisas. E [o exercício] era tentar imaginar quem tinha vivido nessa casa. 

Fotografei os objetos todos e trabalhei com escritores angolanos – Yara Monteiro, Kalaf Epalanga, Ondjaki, Telma Tvon. Dei os objetos e eles escreveram histórias. Acabou por ser os “Contos sobre Lisboa”.

Era uma exposição no centro de Lisboa, onde há imenso turismo, onde há sempre a imagem do postal. Queria que as pessoas fossem ver o que eram os “Contos de Lisboa”, porque há quase uma fantasia. Lisboa tornou-se um museu a céu aberto, um Disney World, onde as próprias pessoas da cidade já não conseguem ter acesso. E, nesse sentido, queria que esses “Contos de Lisboa” fossem uma ironia. Que também falassem da outra cidade que está a ser demolida, que está a ser apagada e que foi sempre em invisibilizada. As histórias são lindíssimas. Mas não são explicitamente de uma vitimização, mas surgem de um lugar de resistência, de adaptação, de reconfiguração, de ressignificação, e de criar novos futuros.

A propósito do que contavas, de teres tirado do guião do filme “Circular do Sul” algumas coisas, para que conseguir ter acesso a determinados lugares, sentes que trabalhos que tentam explorar estas questões e estas narrativas mais pós-coloniais são mais aceites quanto menos incómodos forem?

Sim, até alguns convites de algumas instituições são dirigidos a artistas que estão a começar, mais novos, porque não têm politicamente uma voz tão forte. E também quando estamos num lugar de dependermos mais dos outros, temos de nos submeter. Quando criamos o nosso próprio universo, ou nossa própria estrutura, quando temos esse poder, é que começamos a sentir mais machismo e racismo. Porque acabas por competir com as estruturas de poder, porque tens mais voz. Sinto mais agora do que sentia antes. Antes, sentia, mas não estavas a partilhar poder. 

Falo numa sociedade patriarcal, capitalista e com um problema de racismo grande, em termos de integração de outras vozes. Quando lidas com questões políticas, vais ter mais dificuldade de aceitação. Não acho que seja só aqui em Portugal. Em Angola também já tive de esconder partes do guião para conseguir ter acesso. Ou agora: estou a fazer um trabalho com as fronteiras de Marrocos. Tem sido extremamente difícil conseguir autorizações, principalmente em Marrocos. Porque é uma sociedade onde muitas coisas são censuradas. 

Aqui na Europa lidamos com várias questões de integração racial, mas em África também temos várias questões. Há vários assuntos em que não se pode tocar, ou edifícios que não se podem gravar. Há várias censuras.

*Esta entrevista, feita por Flávia Brito, foi publicada no âmbito da parceria com a Bantumen.

Texto de Flávia Brito

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