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Não entramos duas vezes nas águas do mesmo rio…

Os dias que vivemos são tristes e o que sentimos não se disfarça. Em plena…

Opinião de Sara Barriga Brighenti

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Os dias que vivemos são tristes e o que sentimos não se disfarça. Em plena segunda vaga da pandemia, na véspera do previsível anúncio de restrições adicionais, que circunscrevem liberdades e acrescentam deveres, ouvimos e vemos notícias sobre o crescimento sistémico dos contágios, sobre os retrocessos na estratégia; confrontamo-nos com novos “muros” de intolerância, com emoções virais de ansiedade, medo e descontrolo. Será esta a forma de vida que se normalizou?

Arundhati Roy escreveu em abril uma crónica com o título The Pandemic is a Portal. Em pleno confinamento, em Nova York, questionava: “E mesmo enquanto o vírus prolifera, quem não se deixa entusiasmar pela ondulação das aves nas cidades, pelos pavões a dançar nas passagens de tráfego e pelo silêncio nos céus?”[i]

Nestes dias, procuro também os sinais construtivos de mudança, epifanias, comportamentos inspiradores, preciso de conforto... sete meses depois, pergunto-me o mesmo, se a pandemia é um portal para a evolução. Afinal, o que aprendemos? O que mudou, como mudámos? Que marcas nos deixa esta experiência? Somos outros?

Há uma série de imagens que me perseguem, trechos do filme Stalker, de Andrei Tarkovsky. A personagem principal, um “batedor”, um guia, num futuro indefinido, leva três viajantes para uma zona proibida e perigosa, onde as leis da normalidade não se aplicam, as fantasias são realizadas e a verdade é revelada. Para caminhar nesta zona, o batedor, um homem enigmático, mediador entre os dois mundos e o único capaz de orientar a viagem, vai lançando pedras para se assegurar do caminho mais seguro pela vegetação fulgurante, onde tudo o que parece normal, afinal não o é.

Nós, humanos, precisamos de histórias, somos criadores de mitos. Precisamos do lúdico e do mero prazer sem propósito, fazer por prazer. Usamos a imaginação e a linguagem para criar e comunicar alternativas e possibilidades. As estórias, os rituais, o lúdico e o fazer por prazer são necessidades essenciais ao bem-estar humano. Parece-me, aliás, que no futuro próximo a voz humana, das histórias de vida, será o que mais nos vai ajudar a reconstruir o quotidiano e a compreender tudo o que se passou. A resolver as perdas. Noah Yuval Harari, o historiador israelita, diz-nos que se mudarmos o mito, mudamos o mundo.

Neste mundo as questões que emergem são iguais às que emergiram noutras crises: o medo da morte, da fratura, da separação, do vazio. O medo da mudança. E o vírus mostrou-nos que tudo pode mudar de um dia para o outro, que a vida tal qual a vivemos nos pode ser “arrancada” sem aviso; esta experiência alterou o modo como encaramos o futuro, a confiança das pessoas nos líderes, na democracia e nas regras sociais. Vemos claramente que uma população empenhada e esclarecida é mais cooperante do que uma população policiada e ignorante. O facto é que cooperamos, porque acreditamos num bem comum, numa intencionalidade partilhada.

O Cardeal Tolentino Mendonça, numa recente conferência em Leiria disse que “a cultura é a chave necessária para navegar no emaranhado do presente, e a primeira antena dos sinais do futuro”[ii]. Para pensar o presente, “aqui e agora”, precisamos fixar o que está próximo e trabalhar a partir desse “húmus” fértil que é a comunidade, apostando no fortalecimento das relações, da convivência, da educação cívica, do desenvolvimento da sensibilidade e do sentido crítico, tendo em vista um maior compromisso social que nos permita criar possibilidades antes inimagináveis.

Regresso à questão de partida: se a pandemia é um portal, seremos capazes de aprender com esta crise? Ou, retomaremos os velhos hábitos? São estas experiências suficientemente fortes para modelar opções no futuro?

Nos últimos meses ouvimos falar mais de colaboração e de solidariedade. Daniel Christian Wahl, numa entrevista de março de 2020 dizia: “A nossa espécie evoluiu como colaboradores, somos humanos apenas porque aprendemos a colaborar há muitos anos. Portanto, é mais realista criar um mundo que serve todos, e vai da escassez competitiva à abundância colaborativa partilhada.”[iii]

Sim, adaptámo-nos, e a cada dia tomamos consciência disso, o que é determinante para que o futuro não seja pautado por frustrações, apatia ou negação. Seria, aliás, um erro nostálgico querer simplesmente regressar à vida anterior e ignorar uma aprendizagem forjada no respeito pelas pessoas, pelas ciências, pelos sistemas, pelas diferenças e pela empatia. Há ganhos inimagináveis que não podemos esquecer, como o poder dos laços comunitários, a regeneração da natureza nalguns ecossistemas, a cooperação na sociedade civil, a transição digital no trabalho e na educação, o sentido de pertença vivido na descoberta do lugar onde permanecemos seguros.

Creio que para entender o sentido dos últimos meses é preciso uma intencionalidade, encontrá-la depende da vontade de perscrutar sinais, como Hansel e Gretel, no sábio reconto dos Irmãos Grimm, seguindo pedrinhas para refazer um percurso. É este o caminho que nos permitirá seguir em frente e responder a perguntas mais difíceis sobre como imaginamos o mundo daqui a duas ou três décadas, e de que forma estamos a contribuir para esse futuro. Como podemos entregar o planeta à próxima geração, num estado melhor do que estava quando o recebemos dos nossos pais?

A esperança num futuro melhor exige ação — não podemos ter esperança sem ação. O que está a acontecer exige abrir espaço para a mudança. Pensar a partir do Nós e não apenas a partir do Eu.

A Pandemia tornou bem clara a relação de interdependência que nos liga aos outros seres e ao planeta, mostrando que somos uma entidade global, um corpo que se prolonga muito além dos seus limites físicos. Mostrou-nos que temos de nos cuidar como um todo, ou, que neste “corpo” todas as partes são valiosas e nada se pode perder. Somos um. É este o caminho criativo e sagaz que nos permitirá seguir em frente, com esperança.

Uma nota final para os artistas, que têm imenso para dar neste “agora”, porque inspiram, porque nos fazem pensar em alternativas divergentes (que hoje podem parecer utópicas). Os artistas são, como em Stalker, os guias para a Zona onde tudo é incerto, instável, mas onde há uma promessa de revelação.

Heráclito, o filosofo citado no título desta crónica, deixou-nos um conforto mostrando que tudo flui, que tudo é efémero. Também o vírus pede para repensarmos a forma como vivemos no planeta em transição. Também o vírus está de passagem. 

À beira de novas restrições, que limitam a nossa ação e a relação com os outros, sabemos que evoluímos, resistimos, que nos adaptamos...já não somos os mesmos.


[i]Tradução livre, Arundhati Roy: ‘The pandemic is a portal’, 3 abril 2020 Financial Times,

https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca

[ii] Cardeal Tolentino Mendonça, 23 de outubro 2020, Jornal de Leiria, https://www.jornaldeleiria.pt/noticia/tolentino-de-mendonca-a-cultura-e-a-primeira-antena-dos-sinais-do-futuro

[iii] Daniel Christian Wahl: Depois do coronavírus, seria um erro voltar ao sistema económico vigente

16 março 2020 Rádio Renascença

https://rr.sapo.pt/2020/03/25/economia/daniel-christian-wahl-depois-do-coronavirus-seria-um-erro-voltar-ao-sistema-economico-vigente/noticia/185483/

– Sobre Sara Barriga Brighenti –

Museóloga, formadora e programadora nas áreas da educação e mediação cultural. É subcomissária do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação. Coordenou o Museu do Dinheiro do Banco de Portugal e geriu o programa de instalação deste museu. Colaborou na elaboração de planos de ação educativa para instituições culturais. É autora de publicações nas áreas da educação e mediação cultural.

Texto de Sara Barriga Brighenti
Fotografia de Ana Carvalho

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