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Opinião de Selma Uamusse

Não te esqueças que morrer, não é o fim

Estou com saudades, todos estamos com saudades…Saudades uns dos outros, saudades dos abraços demorados, saudades…

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Estou com saudades, todos estamos com saudades…Saudades uns dos outros, saudades dos abraços demorados, saudades dos sorrisos largos, de olhar fixamente nos olhos, de dar as mãos, de rir sem parar em família, com amigos, sem a barreira de um ecrã, reféns da velocidade da internet e da latência. As saudades não cessam, mas nesta tribulação confio que está a ser produzida em mim uma paciência nunca antes experimentada. E a paciência a produzir esta experiência (inédita) e a experiência uma esperança que não traz confusão, mas sigo sonhando com o dia que irá chegar de poder voltar a ver de forma livre os que amo. No dia 26 de Abril, depois da liberdade, soube pelo meu querido amigo Jónatas Pires que afinal havia menos uma pessoa querida de quem poderia voltar a sentir fisicamente o abraço, o sorriso largo, olhar fixo e a mão firme. Morreu-nos o Alexandre com a simbólica idade de 33.

Escrevo no dia 5 de Maio de 2020. Ontem começámos um processo a que chamam de "desconfinamento”, hoje comemora-se o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, mas hoje é também o dia em que nos despedimos do Alexandre. Despedimo-nos a partir de casa, sem poder abraçar, dizer um último adeus no seu funeral . Estou a despedir-me do Alexandre sentada, na sala, de frente para a minha janela da melhor que maneira que consigo, com palavras e sem elas. Não sei se me sairão as melhores, ainda por cima neste simbólico dia em que gostava de honrar a língua que falo, mas talvez o Alexandre preferisse uma canção, não, um concerto, tenho a certeza que sim…Um concerto intenso e animado.

Escreverei não sobre morte, mas sobre vida e sobre a vida do Alexandre, pelo menos a pequena parte que conheci, vale a pena não só falar mas celebrar. Perguntei à mãe Ana se hoje poderia escrever sobre o seu filho, ela respondeu-me que sim e que era gratificante saber a quantidade de pessoas que o amavam. Respondi-lhe que achava que o Alexandre era muito amado porque ele sabia amar-nos bem. Sim, o Alexandre sabia amar-nos tão bem.

Não sou uma artista que arraste multidões, diria que não são muitos os meus “fãs”, mas aqueles que tenho e que acompanham afincadamente o meu trabalho na música e teatro, conheço-os bem e muitos têm ganho no meu coração espaço para os chamar de amigos. O Alexandre era um deles. Aquele rapaz, que numa primeira abordagem poderia ser “chatinho”, rapidamente me conquistou e se mostrou um generoso e aliado companheiro do meu trabalho, todo. Onde quer que eu fosse, ele sabia, e, sempre que pudesse, lá estaria e arrastaria as suas pessoas. Mas a minha admiração pelo Alexandre não vem da sua fiel filiação à 1ª fila de cada concerto ou evento, a minha admiração vem da sua bravura e forma ilimitada de amar, ilimitada forma de viver.

O Alexandre tem uma capa no seu Facebook que diz : “Spina Bífida? Isso não muda nada. Alexandre - Militante político, activista na área de deficiência.”

Não sei se conseguem identificar o que é spina bífida, nem sei se interessa, porque isso não limitava o Alexandre, mas a verdade é que era visível a sua dificuldade de locomoção consequência da alteração da inervação dos músculos das pernas. Imagino que esta condição implicasse muito mais dor física, mas isso não impedia o Alexandre de vestir sempre um sorriso e de abraçar causas justas de forma altruísta. Custou-me, mas fui ler as mensagens que trocámos ao longo destes anos. A primeira vez que me escreveu foi no dia 10 de Março 2014, quando comecei a dar as minhas primeiras pisadas como artista a solo. Já não sei que concerto foi, mas ele apressou-se logo a dizer que era voluntário do Serve the City, associação que passei a conhecer bem e que se dedica a servir pessoas social e economicamente fragilizadas na cidade (ver artigo Mais Amor, Sem Por Favor) e logo de seguida convidou-me a participar num concerto solidário para ajudar animais. Em seguida, falou-me das suas fortes convicções e luta na dignificação e independência das pessoas com deficiência. Esta era a natureza do Alexandre, a última mensagem trocada foi a 22 de Abril de 2020 no seu aniversário.

Querido Alexandre :

Morreste-nos! Ficámos mais pobres! Mas a tua vida inspira-nos tanto… No dia 8 de Abril 2019 avisaste-me que irias ver-me aos Prémios Play e depois escreveste-me triste por teres ficado desiludido com o facto de eu não ter ganho. Desconsolado perguntaste-me, no dia 10, quando é que finalmente iriam transmitir o programa “ Eléctrico” na RTP, inquieto porque o programa já tinha sido gravado há 1mês e meio e ninguém te tinha dado qualquer informação. Dia 26 de Abril de 2019, passado o frenesim das comemorações do 25 de Abril contaste que estarias em Corroios para o concerto do Gospel. Estavas sempre nos concertos todos, mas se fossem na margem Sul, a tua presença seria garantida e arrastarias contigo a tua mãe e quem mais estivesse perto de ti. Como é possível estares tão presente, tão sorridente? Todos no Gospel ficaram tristes com a tua partida, gostava que soubesses que te amávamos e que, no dia 4 de Janeiro, na última vez em que nos vimos, quando me perguntaste pelo Toni isso soou-me tão familiar quanto qualquer diálogo com outro amigo de casa. Querido Alexandre, não nos esqueceremos que nos ensinaste a viver de forma intensa, sem reservas para amar, para sorrir, para ser voluntário, para amar os animais, para buscar a justiça. A tua atitude perante a vida determinou a tua altitude e sei que estás no céu com o Aba Pai a dançar com os anjos, celebrando e gritando para nós que temos e teremos saudades tuas:

“Não te esqueças, que morrer, não é o fim. Não te esqueças, que morrer, não é o fim”
Death is not the End a voz do Nick Cave, nas palavras do Bob Dylan

in memoriam Alexandre Jerónimo Aranda Correia

*Texto escrito de acordo com o antigo Acordo Ortográfico 

-Sobre Selma Uamusse- 

De origem e nacionalidade moçambicana, residente em Lisboa, formada em Engenheira do Território pelo Instituto Superior Técnico, ex-aluna da escola de Jazz do Hot Club, mãe, esposa, missionária e activista social,  Selma Uamusse é cantora desde 1999. Lançou a sua carreira a solo em 2014, através da sua música transversal a vários estilos mas que bebe muito das sonoridades, poli-ritmias e polifonias do seu país natal, tendo apresentado, em 2018, o seu primeiro álbum a solo, Mati.  A carreira de Selma Uamusse ficou, nos últimos anos, marcada pelas colaborações com os mais variados músicos e artistas portugueses, nomeadamente Rodrigo Leão,  Wraygunn, Throes+The Shine, Moullinex, Medeiros/Lucas, Samuel Úria, Joana Barra Vaz,  Octa Push etc. pisando também, os palcos do teatro e cinema.

Texto de Selma Uamusse
Fotografia de Rafael Berezinski

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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