Como enfrentar um mundo que ameaça destruir-se a si próprio? Como viver perante o risco do confronto nuclear, da perda de biodiversidade, das alterações climáticas que alterarão para sempre aquilo que conhecemos? Perante a nossa impotência, a fragilidade humana sobressai, expondo-nos a um abismo de incerteza. Onde antes havia certeza, sobram apenas as dúvidas de uma vida e um mundo cujo controlo nos escapa. Mas há um momento em que tudo muda. Ao primeiro choro de uma nova vida, a nossa pequenez supera-nos; é também ali, naquela fração de segundo que marca a chegada ao mundo de uma nova vida, que todo o futuro se volta a escrever.
É a força do nascimento que nos permite reinventar o mundo. Nas palavras de Hannah Arendt, o nascimento é “o milagre que salva o mundo e o domínio dos assuntos humanos” porque é na natalidade que de enraiza a capacidade de agir”. Cada nascimento, sendo um novo início, é o fio de uma nova vida e da capacidade de ação que lhe está associada. Agimos porque nascemos, não porque sabemos que a morte é insuperável.
Ora, ao longo da história, a filosofia tem-se voltado mais para a morte que para o nascimento. Percebe-se porquê: o medo do desconhecido, o fim absoluto ou, pelo menos, o final da vida como a conhecemos. É o confronto que cada um de nós tem com esse muro final que, na visão de muitos filósofos, nos levaria a agir. Arendt inverte o raciocínio e, numa frase lapidar, sentencia: “os homens, se bem que terão de morrer, não nascem para morrer mas sim para inovar”.
A cada nascimento, a possibilidade de renovar o mundo.
Muito para lá da filosofia, estas duas visões estão permanentemente em confronto e marcam as nossas vidas. De um lado, a renovação pela morte e pela destruição, do outro, a renovação pela vida, pelo nascimento. Aos soldados suicidas que gritam “viva a morte” responde-se com um viva a vida. Vivam as vidas. O direito à vida torna-se o direito ao futuro, dos que vivem, de todos nós.
Tomemos como exemplo prático o genocídio em curso em Gaza: é esse direito à vida que tem sido negado a milhares de palestinianos. E do lado do governo israelita é precisamente uma visão de morte como geradora da ação que parece dominar as suas políticas. Uma visão escatológica, messiânica, assente no fim absoluto de uma nação, de um povo, de uma identidade. Tentando iludir a própria fragilidade, destrói-se o outro, um outro sempre mais frágil.
Por isso Arendt tem razão. É na vida, na nova vida, que temos de ir buscar a nossa capacidade de ação. Não apenas individual mas também – e talvez sobretudo – coletiva. Fazendo-o, torna-se inaceitável que o mais forte se afirme pela destruição do mais fraco. Reconhecendo o nascimento como a raiz de tudo, podemos então assumir plenamente a nossa fragilidade e interdependência. No fundo, podemos ser nós próprios e nascendo, recriar o mundo a cada primeiro choro.