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Opinião de Miguel Bica

O Cante e o Pedro Abrunhosa

Nas Gargantas Soltas de hoje, Miguel Bica fala-nos do Cante Alentejano e do Pedro Abrunhosa.

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O Cante alentejano, que comemorou há pouco tempo oito anos da sua elevação a património imaterial, foi-me sempre próximo. Lembro-me dos casamentos de família, que já no final do copo de água, agregavam numa ou duas mesas aqueles que já antecipavam o que ia acontecer, mais copo menos copo de vinho. Havia sempre quem, sem ser preciso dizer nada a ninguém, começasse a cantar, na certeza absoluta que outros haveria que soubessem a letra e se juntassem. Não era planeado, mas era esperado. O mesmo acontecia pelas tabernas alentejanas. Lembro-me bem da forma astuta como o Sr. Engenheiro, dono do restaurante Adega Velha em Mourão, mantinha um pequeno balcão à porta com o vinho a copo e o pratinho de petisco sempre pronto, que servia de atrativo aos cantadores e ao mesmo tempo de lubrifiCante para que, de repente, lá saísse uma moda que o resto dos comensais (os clientes pagantes do restaurante) pudessem apreciar. Não era dirigido a um público nem tinha qualquer expectativa de ser performativo, artístico. Surgia porque apetecia a alguém e porque era contagioso e acontecia porque fazia parte. Esse “fazer parte” que está tão enraizado na cultura das pessoas que não se questiona. O Cante surge sempre que no Alentejo se juntam pessoas que cantam, é uma inevitabilidade. O Cante morre quando estas pessoas, que cantam porque o Cante lhes está cravado na existência, desaparecerem.

Chego assim à recente polémica com a alegada escolha, pelo turismo do Alentejo, do Pedro Abrunhosa como embaixador do Cante alentejano, espoletada pela sua tour pela Europa com o rancho de cantadores “Camponeses Pias Grupo Coral”. Essa notícia, que se sabe agora ser falsa, foi disseminada como verdadeira em várias redes sociais, causando indignação a um conjunto substancial de pessoas. 

Mais importante que a falsidade da notícia, interessa-me pensar no que fez com que algumas pessoas tenham sentido a necessidade de questionar o valor desta colaboração, bem como a ideia de ter o Pedro Abrunhosa como um embaixador do Cante, dentro do contexto do espetáculo que criou. Entenda-se que “um” embaixador não significa “o” embaixador, uma categoria mais lata e que pode assentar num grupo de pessoas capazes de levar e representar o Cante a outras partes do mundo.

Parece-me incontestável que o Pedro Abrunhosa tem valor artístico dentro do panorama musical e, se forem ouvir o projeto, parece-me muito válida a colaboração entre o Pedro e o Camponeses Pias Grupo Coral. Não é uma questão de gosto (pessoalmente, gosto) é uma questão de pura validade artística e potencial de ser fruído por muitos. É muito difícil não reconhecer esse valor ao projeto. Como não é difícil reconhecer nele a tal fusão num universo mais pop, que o transforma, mas não creio que o desvirtue. Para além disso, ambos se promovem com esta colaboração. Ganha o Pedro, que acrescenta um instrumento incrível ao seu concerto e ganha o grupo, pela projeção e consequente promoção além-fronteiras que o Pedro lhe empresta. O Cante, como expressão, ganhará também nem que seja porque se expande o número de pessoas que têm contacto com ele. 

São importantes as interpretações, as fusões, as inspirações, que têm vindo a existir muito antes desta e outras que certamente existirão depois. É importante que se quebrem barreiras, que não se cristalize a tradição e que se mantenha viva uma dinâmica artística e evolutiva mantendo, porém, as raízes no chão alentejano de onde brotará sempre o Cante em primeiro lugar. É bom para o território, para a música, para os grupos de Cante, seja a performance fiel ao que imaginamos à partida ser o Cante ou não.

E é nesta perspetiva que entra o Turismo do Alentejo, ao reconhecer no espetáculo um potencial de promoção do Cante e do território, reconhece-lhe potencial de ser apoiado. É legítima a interpretação e é legítimo o apoio. Mas não podemos esquecer que um qualquer produto turístico só é legítimo se for claro para os que o constroem que assenta em alicerces culturais que vão muito para além da ideia que esse produto pretende transmitir. Esses alicerces são a existência do Cante como fator integrado do tecido cultural e identitário das pessoas e da região. 

É esse valor cultural que efetivamente faz com que o Cante seja reconhecido como património vivo de valor incalculável para a humanidade. É aqui que entram as pessoas que cantam no casamento, porque lhes apetece, que cantam na taberna porque lhes apetece. Que cantam porque se juntam, porque se sentem com os pés num chão que é delas. O valor cultural do Cante são os grupos, as associações, as pessoas que vivem no Alentejo e o cantam porque o vivem todos os dias. O Cante beneficia artistas que corram mundo, muito para além do Alentejo. E o Alentejo precisa de pessoas que o venham visitar. Mas não nos iludamos, não há Cante sem aqueles que não pisam palcos, que se juntam para cantar, organizada ou espontaneamente e que continuam a fixar o Cante na cultura popular alentejana. Sem eles, não há palco, não há fusão, não há produto artístico ou produto turístico e, consequentemente, não haverá embaixadores. Sem elas o Cante passa a ser uma peça de museu.

-Sobre Miguel Bica-

O Miguel gosta de fazer coisas acontecer e de pensar como se constrói uma experiência, na sua relação com o público, com os artistas, o espaço e o ecossistema em que ela se insere. Colaborou em festivais de cinema como o IndieLisboa e o Doc Lisboa e foi gestor do projeto PTBluestation. Em 2014 foi um dos fundadores do Gerador, é hoje vice-presidente e director de produção e é dele a responsabilidade de materializar as inúmeras iniciativas que aí vão sendo produzidas. É formador de planeamento em eventos culturais na Academia Gerador e orientador de projecto final no curso de produção de eventos na World Academy.

A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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