Quando pensamos nas condições necessárias ao bom funcionamento dos órgãos políticos e da própria democracia, a ideia de moderação surge quase imediatamente. Garante de um diálogo saudável, independentemente das posições assumidas pelas diferentes partes, a moderação permite evitar discursos e ações que prejudiquem ou impeçam o debate. Olhando para a antiguidade, podemos assumir a moderação enquanto ação política como descendente da virtude da fides, entendida como ação de boa fé. É precisamente essa moderação que faz falta quando a extrema direita entra nos parlamentos, trazendo a sua verve reacionária e ofensiva para o centro do debate político. No entanto, a moderação – ou, como veremos, a sua ideia, mais do que a sua realidade – pode, ironicamente, ser um argumento de favorecimento de um ambiente político pouco moderado. Devemos, portanto, questionar-nos sobre que moderação queremos, como esta contribui para a democracia e como se consegue pô-la em prática.
É importante notar que a moderação, como aqui entendida, não deve ser sinónimo de procura do unanimismo ou como maneira de limitar os confrontos de diferentes visões políticas. Pelo contrário, a moderação, entendida como forma franca, leal e honesta de estar e participar politicamente, é condição para uma democracia forte, aberta ao agonismo e ao dissenso e até aos tumultos, como lhe chamou Maquiavel. O que a moderação exclui é uma política baseada na perfídia, na discriminação, no ataque às minorias e na segregação. A exclusão da extrema direita do grupo dos moderados é assim uma consequência lógica e salutar na manutenção de uma democracia viva.
São vários os eixos políticos pelos quais nos podemos guiar. Exemplos úteis incluem o clássico eixo esquerda-direita, o eixo cosmopolita-nacionalista ou ainda o eixo libertário-autoritário. É na conjugação destes três eixos que conseguimos ter uma melhor ideia do posicionamento ideológico de um partido político, sendo várias as possibilidades de conjugação oferecidas. Em resposta ao crescimento de forças políticas de extrema direita, um novo eixo parece começar a formar-se, mais de força artificial que de forma orgânica, assente na divisão entre moderação e extremismo, muitas vezes apresentado sob a forma centro e extremos. E isto é uma razão de preocupação para aqueles que acreditam na moderação na política.
Comecemos por olhar para a criação deste novo eixo. Contrariamente aos outros três acima indicados, a (hetero-)identificação entre moderado e extremista é bastante mais arbitrária. Dependendo do sentido hegemónico que o conceito de moderação venha a ter, definir-se-ão de forma diferente os partidos políticos. Não se estranha, pois, a permanente tentativa, vinda de vários espectros políticos, para definir o que é uma força moderada e, por conseguinte, o que é uma força extremista. Esta distinção é essencial: enquanto às forças moderadas o acesso ao poder é visto como algo legítimo e válido, o oposto se aplica às forças extremistas.
Se esta caracterização tem, em alguns casos, a vantagem de criar um cordão sanitário em relação à extrema direita, é cada vez mais comum o esforço concertado de alargamento do conceito de extremo e de afunilamento do conceito de moderado. O esforço de alargamento do que deve ser considerado como extremista define-se pela tentativa de criar um contraponto à extrema direita do lado oposto do espectro político. Insiste-se nas falsas equivalências entre as propostas da extrema direita e as da esquerda (à esquerda da social-democracia), alegando-se que ambas são igualmente extremistas, como se a proposta de segregação étnica pudesse ser comparada com uma proposta de taxação mais justa; insiste-se nas falsas equivalências em relação ao tom e palavras usadas pela extrema direita e pela esquerda, como se o insulto constante pudesse ser comparado à assertividade do discurso.
Esta tentativa de alargamento do conceito de extremismo parte de dois grupos. O primeiro é o das forças efetivamente extremistas, nomeadamente a extrema direita. Fazendo-o, a extrema direita não se exclui do campo extremista mas consegue duas coisas. Por um lado, dilui o seu próprio extremismo, uma vez que passam a ser vários os partidos assim considerados, e, em simultâneo e como consequência, tenta diluir a própria ideia de extremismo, de modo a que possa ser visto com algo que, no fundo, não é assim tão mau.
O segundo grupo é das forças moderadas que acreditam que apenas com o apoio – oficial ou oficioso – das forças extremistas podem almejar a conquistar o poder. Rejeitando a possibilidade de ter forças (demasiado) extremistas a seu lado, promovem a ideia de que também no outro lado do espectro isso acontece. Este é o cenário, por exemplo, em Portugal ou Espanha, onde os acordos entre os partidos socialistas e os partidos à sua esquerda são, não poucas vezes, apresentados como justificação para eventuais futuros acordos entre o centro direita e a extrema direita. Assim, mais do que servir para excluir a extrema direita do poder, a moderação acaba por ter a consequência contrária, franqueando, fruto da falsa equivalência, a porta à sua entrada nos círculos do poder.
O afunilamento do conceito de moderação e de partidos moderados, sendo um fenómeno similar ao de alargamento já discutido, tem alguns elementos distintivos. Desde logo, os seus promotores são apenas as forças mais próximas do centro político que, por essa via, pretendem afastar-se dos extremos, entendidos como tudo aquilo que está fora da sua visão restrita de “centro”. Fazem-no tanto por razões ideológicas – ou seja, por acreditarem verdadeiramente que qualquer fuga a uma visão centrista da política é um perigo para a democracia – como por razões pragmáticas – na impossibilidade de obter uma maioria absoluta, devem promover-se grandes blocos centrais, oficiais ou oficiosos.
Esta visão de moderação, cada vez mais reduzida, encaminha-nos para um afunilamento que resulta num extremo centrismo que cria e fomenta a uniformização ideológica, primeiro passo para um cansaço democrático com consequências imprevisíveis. Mais, restringindo cada vez mais o espaço ideológico onde encaixam os moderados, este extremo centrismo contribui para limitar o jogo democrático, excluindo e equiparando aqueles que querem acabar com a República com aqueles que apenas a querem reforçar. A longo prazo, como o recente exemplo francês nos mostra, esta será uma estratégia falhada e que acaba por reforçar os partidos verdadeiramente extremistas, em detrimento dos moderados não centristas.
Em conclusão, a moderação é importante ao bom funcionamento democrático mas não pode ser um fim em si mesmo nem uma ferramenta para, por absurdo que possa parecer, acabar com a própria ideia de moderação.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem Digo (no prelo). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.