Quem fala comigo sobre o Estado Novo e sobre o fim do fascismo em Portugal sabe que partilho da opinião de que a sociedade portuguesa ainda tem uma catarse muito grande por fazer no que toca a este passado da nossa história.
Apesar de termos mais anos de democracia do que de ditadura, é inegável a influência que mais de 40 anos de autoritarismo tiveram na nossa sociedade, algo que sinto que passa ao lado da maior parte das pessoas. A meu ver, isto deve-se muito à forma como a transição democrática foi feita em Portugal e à forma como, atualmente, nos é falado da história do Estado Novo. No ensino primário, talvez como qualquer outra criança portuguesa, aprendi a letra de “Grândola Vila Morena”, falaram-me do herói que foi Salgueiro Maia e que deveria estar grato por viver em liberdade. No resto do meu percurso escolar, foi preciso chegar ao 11º ano para sentir, quer no currículo escolar, quer nos ensinamentos da minha professora de história, a importância que Estado Novo teve, e tem, na atualidade portuguesa. Para isto, foi preciso uma visita de Domingos Abrantes e Conceição Matos à minha escola, onde contaram as horrendas torturas que sofreram às mãos do regime fascista.
Na minha opinião, isto é devido à forma como se decidiu tratar do nosso passado autoritário. Parece que, após o dia 25 de abril de 1974, os fascistas e defensores do regime desapareceram de um dia para o outro, como se não houvesse uma única pessoa nas nossas famílias, aldeias, terras e cidades que apoiasse a ditadura. Talvez poucos saberão que foram julgados informadores e ex-agentes da PIDE/DGS. Ainda menos saberão que muitos destes casos acabaram arquivados e, dos que foram a julgamento e acabaram culpados, tiveram penas curtas e saíram cedo da prisão. Os fascistas não desaparecem, nós é que decidimos varrer o nosso passado para debaixo do tapete.
Na transição de uma ditadura para uma democracia existem diversos tipos de justiça transicional. De forma muito simples, os países podem optar por julgar e condenar os criminosos do passado, independentemente da altura em que o decidam fazer, como é o caso da Alemanha, ou seguir em frente apesar do que aconteceu no passado, olhando para os crimes que foram cometidos como circunstância do contexto em que se vivia. Obviamente que esta discussão tem várias nuances, mas desta vez privilegiarei a brevidade em detrimento da exaustão. Neste aspeto, creio que Portugal poderia ter pedido algumas dicas à Alemanha.
A Alemanha fez – e tem feito – a sua catarse. A nós, esta ficou por fazer. Tal como qualquer outra ditadura, Portugal criou prisões políticas onde foram enviadas mais de 29 mil pessoas só por discordarem do regime, fora as apreensões de que não há registo. Os portugueses sabem que isto aconteceu, mas acredito que ignorem as torturas desumanas que aqui eram praticadas. Os presos passavam dias sem comer, beber ou dormir. Eram espancados, muitos deles até quase morrerem, tudo para se tentar retirar uma confissão que poderia nem ser verdade. Os guardas, com orgulho, praticavam estes anos e não mudaram de opinião simplesmente porque Marcello Caetano saiu do poder. Em Cabo Verde, o Estado Novo criou um campo de concentração. Sim, campo de concentração, aquele sítio que associamos à Alemanha nazi, onde foram mortos milhões de judeus e a escravatura era uma prática essencial. Portugal teve essa mesma brutalidade, mas escolhemos quase fetichizar a nossa liberdade atual ao invés de relembrarmos a brutalidade do nosso passado. Conhecemos Salgueiro Maia, mas esquecemo-nos de Otelo Saraiva de Carvalho, de Vasco Lourenço ou de Vasco Gonçalves. Cantamos as músicas de Zeca Afonso, mas talvez damos pouca importância a José Mário Branco ou a Fausto. Reconhecemos que muitos portugueses foram presos, mas esquecemo-nos da tortura e das vidas que se perderam.
Acredito que damos pouca importância à nossa história, mas ainda vamos a tempo de mudar este rumo. Muitos dos responsáveis pela nossa liberdade já cá não estão, por isso, precisamos de ouvir e registar as suas memórias enquanto conseguimos. Isto tanto se pode fazer ao ouvirmos entrevistas de Domingos Abrantes ou Vasco Lourenço, mas também em conversas com os nossos avós, em que nos recordam da vida dura que tiveram. Às vezes, estes últimos são os mesmos que dizem que ‘’Antigamente havia pobreza, mas os políticos não roubavam’’ ou que tiveram de emigrar à procura de uma vida melhor devido às condições de miséria que se vivia em Portugal. Não se apercebem disto porque talvez lhes falte a perspetiva histórica que, felizmente, nós temos a vantagem de ter.
Atualmente, a grande maioria dos nossos políticos viveu poucos anos em ditadura e muitos deles nasceram já em democracia, e ainda bem. Espero apenas que, tanto na atualidade como no futuro, os nossos representantes tenham em mente todos aqueles que sofreram e que lutaram pela nossa liberdade em todas as políticas que promovam e em todas as decisões que tomem.
-Sobre Rodrigo Andrade-
Rodrigo Andrade tem 23 anos e é natural do Bombarral, uma pequena vila no sul do distrito de Leiria. As ambições académicas levaram-no para Lisboa, onde se licenciou em Ciência Política no Iscte. Seguiu-se o mestrado na mesma área, uns dirão devido ao gosto pelo tema, outros por falta de originalidade, mas desta vez com especialização em Comunicação Política e Opinião Pública. Divide o seu tempo entre a terra de sua naturalidade e a capital portuguesa e dá o seu melhor para se envolver e dinamizar a vila onde reside. Para além da política, é interessado por ambientalismo, associativismo e pelo passado histórico português, mais concretamente pelo período do Estado Novo e como o seu legado se reflete nos dias que correm.