A pequena aldeia de Cacela Velha ergue-se sobre a Ria Formosa. Acomodada no cume de uma arriba fóssil, virada para o Atlântico, Cacela viu chegar e passar todos os povos que se instalaram ao longo do tempo na costa algarvia. A sua luz branca, o ar anacrónico e silencioso, transmitem a sensação de estarmos num espaço místico, quase irreal.
Esta aura serviu e serve de influência e inspiração a muitos poetas que por lá passaram, e outros tantos que ali nasceram. No período do Al-Andaluz, a aldeia viu nascer um dos escritores islâmicos mais importantes do seu tempo: Ibn Darrāj al-Qastallī (958-1008). Ibn Darrāj, como o seu epíteto indica, de Cacela, chegaria a ser poeta oficial e escrivão do Califado de Córdova, tornando-se também um dos grandes viajantes medievais da península. Descendente da família berbere a cargo da fortificação, escreveu versos de louvor a Almançor, cultivando um estilo sofisticado e barroco, com particular atenção para a beleza.
[…]
Do seu caule de esmeralda libertam-se
folhas de prata e pétalas de ouro
que se entrelaçam como filamentos de seda
e se erguem como um cálice para te brindar
num inesgotável inebriamento.”
Ibn Darrāj al-Qastallī
Quem percorra as ruelas de Cacela verá, nas paredes caiadas, azulejos com textos deste poeta algarvio e daqueles que se perderam na tentação de evocar uma terra em verso, como Sophia de Mello Breyner Andersen ou Eugénio de Andrade.


Desde o seu distante apogeu como forte muçulmano até ao presente, Cacela Velha, bem como outras regiões da costa algarvia (Tavira, Faro, Lagos, Sagres ou Aljezur) têm sido meca para versejadores locais e outros estrangeiros. Cândido Guerreiro (1871–1953), natural das serras de Alte, é um exemplo disso. Sem esquecer a formação helénica ou a herança árabe da sua cultura, explorou na forma do soneto temas históricos, bíblicos e até eróticos, sem nunca perder uma certa luminosidade característica da região.
Se falamos de uma tradição lírica algarvia, talvez o ponto em comum entre as diferentes vozes que a compõem sejam as paisagens e os ambientes evocados. Inês Francisco Jacob (n. 1992) não vive no Algarve, mas os seus poemas, ora pelo caminho da geografia, ora pelo caminho da nostalgia, tendem a ir lá parar. Em entrevista, Inês comenta ao Gerador que o Sul do país, “por razões de sorte hereditária”, acabou por adquirir um lugar destacado no seu imaginário poético e emocional.
O mais recente livro de Inês, Maremorto (Alambique, 2021), escrito ao abrigo de uma Bolsa de Criação Literária da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, aborda de modo subtil esse imaginário: “o Sul é um dos tempos e espaços mais pertinentes para a minha escrita. Serve de cenário, serve de centelha, serve de matéria-prima e combustível.”
“O livro parte desse rol de memórias, que se mistura, claro, com a passagem dos anos, até chegar a um ponto em que a recordação é ficção e a ficção é biografia.” As férias de verão da infância, em Alcoutim, Vila Real de Santo António e Monte Gordo alimentam pequenos poemas que evocam, desde diferentes momentos e diferentes pontos de vista, a relação do sujeito poético com o mar.
Tal como as reinterpretações gregas de Sophia, aliadas a um imaginário do Sul português, Inês entretece tempos, histórias e lugares. “Creio não fugir dessa tradição (não me querendo comparar a Sophia, claro), embora a escrita seja sempre um exercício – mesmo quando se concretiza num livro, os poemas não estão, nem têm de estar, encerrados – e, por isso, escrever sobre o mar permite-me concretizar uma abrangência pessoal e externa (o que sinto como meu, o que sinto como dos outros), e uma vontade de infinidade muito grandes (o mar não se fecha, a poesia não se extingue).”


“Lagos onde reinventei o mundo num verão ido” diz Sophia, ou a infância de Inês em Alcoutim. Como diferem estas experiências, que são, na sua essência, uma fuga da norma, à dos poetas radicados no Algarve, forçados a viver a rotina da região? Em 1958, estreava-se na secção literária do jornal A voz de Loulé, dirigida por Casimiro de Brito (n. 1938), o poeta farense António Ramos Rosa (1924–2013), com o “Os dias, sem matéria”. Casimiro de Brito também seria responsável pela coleção de poesia A Palavra, editada em Faro e uma das publicações literárias mais importantes a ter origem no Algarve.
Estas primeiras aventuras na edição encontram o seu devir no movimento poético Poesia 61, que publicou, em Faro, no ano de 1961, um conjunto de cinco fascículos de alguns dos poetas que acabariam por marcar as letras em português no futuro: Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Teresa Horta, o algarvio Gastão Cruz e o próprio Casimiro de Brito. Os textos poéticos reunidos nestas plaquettes revelam uma tendência poética inovadora, com particular atenção à palavra, à linguagem na sua espessura e ambiguidade.
[…]
percorremos a rua
até onde entra nela a aragem da ria,
e o café dum lado, do
outro a livraria,
à porta o chapéu largo e a barba
branca
dum poeta do passado”
Faro, 1952, em Rua de Portugal (Assírio e Alvim, 2002), Gastão Cruz
Editar no Algarve na década de 60 não era tarefa fácil, e isso não é algo que, com os anos, tenha mudado. É, aliás, uma das principais razões para que poetas como Ramos Rosa, Gastão Cruz ou Nuno Júdice tenham optado por radicar as suas atividades literárias na capital. O mesmo acontece no presente. Rute Castro (n. 1982), poetisa farense, ou José Carlos Barros (n. 1963), radicado em Vila Nova de Cacela, publicam os seus livros fora do Algarve. O primeiro livro de Rute Castro, O Sangue das Flores (2014), sai com a editora lisboeta Artefacto e o segundo, O Som Cardíaco com que me vive o Silêncio (2019) com a Eufeme, da região do Porto. José Carlos Barros, último vencedor do Prémio Leya, tem publicado poesia com diversas editoras do país, tais como a Língua Morta ou a coimbrense Do Lado Esquerdo. Penélope escreve a Ulisses (2021), o seu mais recente livro, foi publicado pela Oficina Caixa Alta.


Poucos são os projetos editoriais que ao dia de hoje conseguem sobreviver no Algarve. Os que vingam são de natureza artesanal ou com circulação reduzida. A editora tavirense Canal Sonora, fundada em 2013 em Tavira, tenta remar contra essas marés. O poeta Pedro Jubilot, criador da iniciativa, esclarece que a Canal Sonora “não é um negócio editorial, não tem sócios-gerentes, não tem uma estrutura editorial, nem editores, ou distribuidores...”. A Canal Sonora definiu-se a ela própria, tornando-se um coletivo de poetas e artistas da região que publicam sob essa chancela. “Chamam-lhe editora (nós também o fizemos), por ser a designação mais natural para quem publica livros.”
Pedro Jubilot reconhece que as iniciativas culturais no Algarve sofrem sérias dificuldades, e o que panorama literário não escapa da situação. “Às vezes quero pensar nisso, mas acabo por não me deter muito tempo aí. Passo mais tempo a desfrutar do presente, do que ele nos pode ou consegue dar. Editoras há poucas, livrarias quase nenhumas, os autores rumam a diferentes paragens por diversas razões. É preciso não esquecer as características muito específicas da região em termos geográficos, socioeconómicos, culturais, desde sempre.” Talvez não exista prova mais evidente que o caso do Festival Internacional Poesia a Sul, realizado durante Outubro na cidade de Olhão, todos os anos desde 2015. Apesar da sua adesão nas outras edições, por falta de apoios públicos, este ano não terá lugar.
Com as mudanças radicais e o desgaste social que o Algarve tem vivido nos últimos anos devido à gentrificação, os problemas de ordem política acabam por permear os projetos literários, cada vez mais precários. Nuno da Quinta Casimiro (n. 1995) é um dos mais novos poetas a ser publicado pela Canal Sonora. Em entrevista ao Gerador, não esconde as dificuldades de escrever na periferia: “Não sou eu que me chamo poeta, mas sim quem lê os meus textos. Tenho trabalhado sempre para entidades da minha cidade, Tavira, e nessa rotina de trabalho não sou poeta ou escritor ou artista, sou um colaborador, sou um empregado de mesa. Nunca me senti dentro de qualquer tipo de arte. Escrevo nas minhas horas vagas e só ambiciono que surja o espaço para partilhar. Mas isso não acontece no Algarve, especialmente na cidade onde vivo.”


Nuno publicou o seu primeiro livro, Não sei Dizer como Procuro ser Noite em 2021. Diz-nos, por experiência, que não lhe parece haver nada parecido a um movimento, estilo, ou cena na qual seja possível agrupar e dinamizar as vozes criativas da região. “Sei que a poesia existe, e muita gente dedica um pouco do seu tempo a isso. Durante a experiência que tive relativamente ao meu livro, tive a oportunidade de conhecer várias pessoas do meio que me ajudaram e aconselharam, desde pescadores a professores. Portanto, aprendi que não tem de haver um qualquer movimento para haver significado. Desde que exista espaço para partilhar e valorizar a cultura regional.”
Até à proclamação da República Portuguesa, em 1910, o Algarve não deixou de ser visto como um outro estado de direito, separado de Portugal, ainda que sem autonomia própria. Na sua nomenclatura, o Algarve esteve, durante os tempos da monarquia, mais próximo das colónias do Norte de África do que do continente do qual fazia parte. Esta espécie de secessão, evidenciada também nos costumes, nos rostos e na linguagem, foi influência para os poetas que cá nasceram ou que optaram por escrever desde cá. O desenraizamento e desamparo, aliado às paisagens brancas, sossegadas e azuis, são traços que compõem as letras algarvias.
O que hoje se celebra nas quadras de António Aleixo, a crítica social e a ironia provinciana, é indivisível da sua condição de homem semianalfabeto de um Algarve marginalizado. A revelação de Álvaro de Campos ao regressar pela primeira vez em muito tempo a Tavira, a sua terra natal, no poema “Notas sobre Tavira”, explora, desde o prisma pessoano, essa espécie de alienação. Uma região que obriga o local a sentir que não pertence: “Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.”
Talvez a tradição poética do Algarve não seja propriamente uma tradição, mas sim uma aura, um ambiente identificável nos versos escritos e cantados ao longo do tempo nas serras e no mar do Sul. É na distância e no anacronismo que vive a poesia algarvia. As suas qualidades e os seus defeitos são um resultado dessa condição. Viradas para o Atlântico, estas vozes do presente e do passado vivem apenas com uma certeza: na infinidade do mar, o poema não acaba.