O que pode, afinal, uma estátua? Pode-nos parecer difícil identificar o quanto as estátuas que são símbolos do nosso passado colonial influenciam o nosso dia a dia. Mas a verdade é que estes símbolos operam, mesmo que muitas vezes de forma invisível.
O trabalho do antropólogo Alfred Gell pode ajudar-nos a entender como se materializa esta influência invisível de que falo. O seu conceito de “objecto distribuído” reflete sobre os modelos não tradicionais de arquivo. Um “objecto distribuído" é um objecto não palpável que se estende na memória coletiva de uma comunidade e que, por essa via, resiste ao tempo.
Uma estátua está imbuída de muitos significados ligados à figura que é celebrada e consequentemente ao contexto histórico desta mesma figura. Ao olharmos para ela o que estamos a ver nunca é apenas aquilo que estamos a ver a olho nu. Estamos perante uma série de “objectos distribuídos”, que existem como uma espécie de sombra da própria estátua. O problema é que nos esquecemos que é a carga simbólica que ronda estas estátuas que se impregna na nossa vida e não nos larga, mesmo que ao passar não olhemos para elas. Uma estátua pode, portanto, ajudar a fixar um passado.
O recente movimento contra as heranças colonialistas no espaço público em várias cidades europeias é uma consequência do momento histórico que vivemos. Pela primeira vez, em centenas de anos, é produzido um discurso acessível a todos sobre esse tal “objecto distribuído” que estas heranças propagam. Este movimento reclama a existência de múltiplas versões do nosso passado.
É necessário ver este momento como um momento fundamental, em que se adicionam múltiplas perspectivas, envolvendo verdadeiramente uma outra versão à nossa história.
Momentos como este mostram-nos a urgência em repensarmos quem estamos a homenagear quando erguemos uma estátua. Porque uma estátua pode e deve estabelecer um diálogo com o presente. E, uma vez tida esta discussão, encontrar símbolos que operem num sentido mais amplo e que nos despertem para essa tal outra versão, da qual precisamos desesperadamente para caminhar enquanto sociedade.
Como dizia Walter Benjamin, outras versões da história aparecem como relâmpagos que só se deixam fixar irreversivelmente no momento em que são reconhecidas. A mim parece-me que este é um desses momentos, em que o presente é interrompido por um relâmpago e temos a oportunidade de reconhecer e fixar outras versões.
Estamos a iniciar um processo longo de descolonização do pensamento sobre a nossa história, onde estamos todos incluídos, embora cada um de nós faça o seu caminho.
Agora, mais do que nunca, é preciso olhar em retrospectiva e perceber quem somos. Neste processo teremos a oportunidade de olhar para o nosso passado e transformar a nossa memória colectiva.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Isabel Costa-
Trabalha em teatro, cinema, na área de produção de exposições e curadoria. É diplomada em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo completado a sua formação na Universidade de Warwick (Inglaterra) e na UNIRIO (Brasil). É membro do grupo de teatro Os Possessos desde 2014. Na área de produção de exposições passou pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro (Brasil), pela Galeria Luis Serpa Projectos (Lisboa) e pela galeria Primner. Em 2016 terminou o mestrado Eramus Mundus Crossways in Cultural Narratives, tendo passado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, pela Universidade de Perpignan (França) e pela Universidade de Guelph (Canadá). Dedicou-se ao tema do arquivo na performance arte. Em 2017, iniciou a criação de projectos a solo. Apresenta a criação “Estufa-Fria-A Caminho de uma Nova Esfera de Relações” na Bienal de Jovens Criadores, e a primeira edição do Projeto Manifesta, um projecto produzido por Os Possessos. Em 2019, apresenta as criações “Maratona de Manifestos” e “Salão Para o Século XXI.”