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“Até que consiga escolher algo, já 500 t-shirts vesti. Chego, inclusive, a ter muitas crises de não me apetecer fazer nada e de ter muita raiva, tanto que parece que estou muito revoltado”, desabafa o jovem Diogo. Episódios como este são constantes na vida de Martim e Diogo.
Esta é a história de dois irmãos gémeos que se identificam como homens trans, e que nos contam, na primeira pessoa, os desafios e obstáculos que sentem todos os dias.

Texto de Redação

©Lourenço M. Ribeiro

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Um olhar perdido procura desesperadamente por vestígios de identidade naquele que deveria ser o seu reflexo. Busca tão fundo, mas nada mais encontra do que um vazio. É, inevitavelmente, um confronto diário com um espelho que teima em silenciar a imagem da alma.

“Sou mesmo inferior!", dispara Martim em relação ao pensamento que o acompanha durante todo o dia; “principalmente em comparação com outras pessoas, ou com outros rapazes - o que é ainda pior.“ A constante comparação acaba por se refletir na forma como Diogo se perceciona: “tudo o que eles têm era o que eu gostava de um dia vir a ter e ainda não tenho”, mas Martim vai mais longe e revela aquilo com que é mais duro de lidar no seu reflexo: “não gosto do meu corpo em si, até porque não é só com o peito, acaba por ser em todo o lado, mesmo com as ancas."

O despertador toca, marcando o compasso do início de mais um dia. Os dois levantam-se e encaram com desânimo o armário fechado. O desafio é o mesmo de sempre, mas, nem por isso, se torna mais simples. "Até que consiga escolher algo, já 500 t-shirts vesti. Chego, inclusive, a ter muitas crises de não me apetecer fazer nada e de ter muita raiva, tanto que parece que estou muito revoltado”, desabafa Diogo.

©Lourenço M. Ribeiro

A maioria preocupar-se-ia com a estética, com o bonito, mas eles buscam desesperadamente pelo conforto na sua plenitude. Diogo explica a problemática de tentar usar roupas mais leves: “não me sinto bem com nada, por exemplo usar t-shirts brancas ou camisas é quase impossível.” Por isso, é importante que escolham com atenção cada peça, uma vez que esta será a capa que vai esconder os traços que desenham os seus corpos, mas não as suas almas.

A roupa ideal parece existir, só que num mundo utópico onde tudo está tão perto e ao mesmo tempo tão difícil de alcançar. Martim acaba mesmo por desabafar sobre esta guerra constante: “tenho de andar sempre de sweatshirts, passo um calor gigante e ando sempre a suar, o que se agrava quando estão momentos de maior calor.”

Enquanto cada um trava a sua luta inglória frente ao espelho, soam vozes de reconforto e conselhos mútuos; afinal, a ligação que os une é o refúgio de ambos, como refere Martim num tom mais sentimental: “ele é o meu porto-seguro e o meu equilíbrio, digamos assim, e eu acho que também sou o dele, e, portanto, quando estamos juntos eu sinto-me bem, não estou sozinho e tenho ali algum apoio.” A verdade é que Martim também acredita que “se não o tivesse não falava sobre isto com mais ninguém”, uma vez que os outros não sentem o mesmo que ele. “Ele é a pessoa mais importante da minha vida, sem ele não seria metade do que sou hoje.”

Diogo confessa que está constantemente a pensar em coisas negativas e que, nesse sentido, não sabe se, sem o Martim, teria tido coragem para chegar onde chegou. “Às vezes, o Diogo está mesmo em baixo e diz que não gosta do corpo e, apesar de me sentir da mesma forma, dou-lhe apoio moral e relembro-o de que estamos num processo e que em qualquer circunstância estamos juntos a passar pelo mesmo. Gostava de poder mudar a forma como ele se sente e vê, mas não consigo; nem eu, nem ninguém.”

Segundo eles, a ligação entre ambos é normal e não foge à conexão típica entre irmãos, principalmente, porque, ao serem gémeos, têm maior tendência para essa proximidade. Mas para os pais não é bem assim: a relação entre Martim e Diogo sempre foi extremamente próxima e um tanto impenetrável. “Se calhar essa parte também fez com que eles fossem mais unidos ainda e, por isso é que nos apercebemos mais tarde; eles tinham com quem falar e nós ficámos assim um bocadinho à parte, ao fim e ao cabo”, pressupõe a mãe, Sandra.

O pai, Pedro, remonta aos primeiros anos de vida dos filhos e realça uma parte mais complicada e crucial do crescimento deles: “a partir dos 8 anos, o Diogo começou a apresentar um quadro difícil para nós, um quadro de ansiedade e ataques de pânico e, a partir daí, as coisas começaram a ser mais difíceis, no sentido em que o tratamento demorou algum tempo e só com a toma de medicação é que foi possível alcançar a estabilidade.”

A psicóloga de Diogo manifestou a intenção de forçar a separação escolar dos dois, começando o quinto ano já em turmas diferentes. “Pedimos mesmo à escola para os separar e foi muito complicado para eles. Todos os dias era um martírio e quando chegaram ao décimo ano disseram que queriam estar juntos e nós optamos por deixar que isso acontecesse. Tiveram cinco anos e não se adaptaram, portanto não iríamos continuar a forçar uma coisa que não queriam. Eu acho que lhes faria sempre melhor cada um seguir a sua vida, o seu caminho, mas eles estão sempre a tentar apontar para o mesmo sítio, até em termos de universidade”, completa a mãe algo preocupada.

©Lourenço M. Ribeiro

A vontade de se expressarem da maneira oposta ao que a sociedade ditava manifestou-se bem cedo: “com sete ou oito anos, tínhamos uma brincadeira que era brincar aos rapazes, eu era o Diogo e ele era o Martim – foi aí que começaram os nomes –, também vestíamos roupas do nosso irmão e andávamos assim por casa. Depois começámos a dizer aos nossos pais, na brincadeira, para nos chamarem por esses nomes, caso contrário ignorávamos.”

Os sinais não lhes bastaram para compreender os sentimentos que estavam por detrás do que pareciam ser meras brincadeiras: “na altura, éramos crianças e não tínhamos noção do que era a transexualidade, portanto vivíamos consoante aquilo que tínhamos: idolatrávamos o nosso irmão, não sabemos bem porquê – talvez porque quiséssemos ser como ele –, mas tentávamos aceitar-nos ao máximo”, evocam Martim e Diogo, completando-se mutuamente.

“Para nós isto era impossível; nunca ia acontecer. Nós percebíamo-nos, só que não verbalizávamos para não se tornar real. Aliás, quem olhasse para nós via que não estávamos mesmo nada bem ali.” Apesar de estarem a passar pelo mesmo dilema, lidavam com a situação de forma bastante distinta.

©Lourenço M. Ribeiro

Martim não era capaz de se conformar com a realidade que se adivinhava. “No fundo, sabia que não era isto que eu queria, não me sentia bem assim.” Constantes pensamentos inquietavam a sua mente, encenando situações que o deixavam desconfortável, devido à extrema preocupação com o futuro e com a forma como teria de o viver. “Lembro-me de estar depois do banho a pensar «como é que eu vou fazer isto? Um dia vou ter de passar a soltar o cabelo e eu odeio o meu cabelo. Não gosto de nada em mim.»” Não se sentindo, de todo, confortável com roupas socialmente definidas como femininas, vestia constantemente leggings ou fato de treino e a sua maior preocupação era com a forma como se teria de expressar anos mais tarde: “«vou ter de começar a usar outro tipo de roupa [mais feminina]; tenho de começar a pensar no meu futuro e em ficar com rapazes.»”

Por outro lado, Diogo sempre se tentou render à ideia de que teria de continuar a levar a vida da maneira que o fazia até então: optando por tentar guiar-se pelas orientações e preferências dos pais. “No décimo ano, conheci a minha atual namorada, numa altura em que também eu já era mais masculino.” Não obstante os pequenos progressos, ainda não sentia que se tinha conseguido encontrar: “na altura podia-me considerar lésbica, mas não tinha nada a ver.”

©Lourenço M. Ribeiro

Os gémeos preparam-se para deixar a casa e lançam-se a um novo dia, ainda que receosos do que os poderá esperar do lado de fora do conforto da sua «bolha». Mal a porta do prédio se fecha nas suas costas, começa a tortura com que têm de lidar diariamente: “estou sempre a ver se as pessoas olham; eu próprio não me sinto bem por ver ali algum volume.” Martim explica o hábito que têm enquanto andam pela rua, procurando, no reflexo das janelas de todos os carros e prédios, vestígios que possam chamar a atenção para o facto de serem trans.

“Quando saio comparo-me aos outros rapazes e penso no quanto gostava de poder ser como eles”, acrescenta Diogo. É na tentativa de encobrir – deles e dos os outros – traços como estes, que acabam por ser forçados a adotar uma má postura, usando os ombros para a frente e as costas curvadas. A esta condição, que têm de enfrentar todos os dias, dá-se o nome de disforia de género. Causado por uma discordância entre a identidade de género e o sexo biológico, é um sentimento, geralmente, experienciado por pessoas trans, que pode não estar diretamente associado a características físicas, mas também à forma como os percecionam.

©Lourenço M. Ribeiro

Os gémeos partilham deste sentimento e, para os tentar compreender, o pai coloca-se na mesma posição: “um médico sugeriu-me que me colocasse em frente a um espelho para me tentar imaginar num corpo de mulher. Pensei no corpo da minha mulher no lugar do meu e quase fiquei com vontade de me atirar do meu terceiro andar.”

Apesar de viverem a mesma realidade, Martim e Diogo não lidam com a disforia do mesmo modo, até porque têm maneiras de ser bastante distintas: “vai acabar tudo por dar ao mesmo, só que lidamos de maneira diferente. Ele está sempre atento às pessoas em si e eu não, sou mais descontraído nesse aspeto. Por exemplo, estamos num sítio qualquer e ele diz: «aqueles estão a olhar para mim, estão a gozar comigo» e eu tento explicar que devem estar só a reparar que somos gémeos. Apesar de não me sentir bem comigo mesmo, tento abstrair-me, porque não posso estar a viver nisto: nesta bolha (das pessoas e eu), tenho que me desligar um bocado. Acho que nesse aspeto somos bastante diferentes: o Diogo é muito mais calmo e eu mais impulsivo; ele é mais introvertido e eu mais extrovertido”, reflete Martim.

Depois de um longo caminho – não tanto devido à distância percorrida, mas antes por causa da constante preocupação em não levantar dúvidas sobre as suas identidades – os irmãos chegam, finalmente, à escola. Mas engane-se quem possa pensar que será mais fácil agora que estão num ambiente mais controlado. Apesar de os colegas saberem e respeitarem os seus nomes e pronomes, a verdade é que nem toda a gente soube desde logo da transição que ambos estavam a iniciar. Os professores, por exemplo, não foram uma prioridade no que toca a esta partilha: “os nossos amigos da escola foram dos primeiros a quem contámos, mas acabavam por se esquecer de que os professores não sabiam e chamavam-nos Martim e Diogo. Nós gostávamos, mas os professores ficavam confusos e era muito embaraçoso, até porque, desde que cortámos o cabelo, havia sempre rapazes que gozavam connosco.” As palavras dos dois revelam a dificuldade em existir num mundo que os força a usar duas identidades: uma para quem já está a par da verdade deles e outra para quem ainda a desconhece.

Um dos passos mais constrangedores de uma transição destas acaba por ser o momento de contar aos outros o que há muito passa nas suas cabeças. No entanto, na maioria das vezes, o processo é-lhes facilitado e são os pais quem tem essa conversa. A mãe explica: “neste momento estou numa fase em que não gosto que me perguntem sobre «as minhas filhas», mas, inevitavelmente, quando me vão perguntando por «elas», vão sabendo.”

Ainda mais difícil do que contar àqueles que lhes são mais próximos é contar aos que são sangue do seu sangue. Nem sempre a reação é a mais desejável, contrariando a ideia de que é na família que esperamos um maior apoio. O principal entrave para Martim e Diogo tem sido a (falta de) aceitação por parte dos avós maternos, que os criaram desde tenra idade. “Ainda há duas semanas, estávamos todos à mesa em família e a avó começou a falar das «meninas», mas depois a tia falava «do Martim e do Diogo» e estava uma confusão gigante”, conta Pedro ao relembrar um episódio que caracteriza a relutância dos sogros.

Sandra acaba por desabafar: “Já ponderei afastar-me dos meus pais. Não sei como é que vai ser o futuro, mas a minha mãe tem de se mentalizar de que isto está a acontecer, porque, caso contrário, nós vamo-nos afastar. Para mim, há uma coisa muito clara: os meus filhos estão em primeiro lugar, portanto quem não aceita os meus filhos como eles são, também não me aceita a mim.”

Apesar de terem consciência do preconceito que ainda existe e com o qual, provavelmente, terão de viver para o resto das suas vidas, Martim e Diogo sentem que não tinham como continuar a viver numa mentira e que a única maneira de sobreviverem é continuando o processo de transição.

Voltar a casa deveria significar o regresso à calma e ao aconchego da alma. Ao invés disso, é, no recanto do seu lar, que muitas vezes ecoa o maior tormento.

O tempo parados em frente ao espelho não lhes permite ver a sua realidade. O que veem? O físico de outro alguém. Mais do que se sentirem desconfortáveis, Martim e Diogo entendem-se como forasteiros na pele que os veste. Contemplarem-na, nua e crua no reflexo do espelho, fá-los sentirem-se desprotegidos de si mesmos e expostos aos seus julgamentos.

Assim como um preso nunca vai deixar de saber o que a prisão é; Martim e Diogo nunca se vão esquecer de como um dia já se sentiram nos seus próprios corpos.

*Esta reportagem foi escrita por Bruno Pinto, Lourenço M. Ribeiro e Mafalda Ferreira Costa, no âmbito da parceria com a ESCS Magazine.

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