Em setembro de 2019, por Resolução do Conselho de Ministros, foi aprovada a instituição do Arquivo Nacional do Som, “para a salvaguarda e projeção do património sonoro, musical e radiofónico português”. O projeto, que era aguardado há já vários anos, assume como missão o desenvolvimento de todas as ações necessárias para a criação de um arquivo focado em documentos sonoros, trabalho esse que tem sido desenvolvido por uma equipa instaladora, liderada pelo etnomusicólogo Pedro Félix.
Em que ponto de situação se encontra? E, afinal, o que pode ganhar o país com a constituição deste arquivo? Com o intuito de perceber o que foi feito até ao momento, o Gerador enviou as suas questões ao responsável pela equipa instaladora, mas recolheu também alguns testemunhos sobre a importância deste arquivo, que ainda não tem uma data de abertura prevista, mas que, de acordo com Pedro Félix, será implementado numa região que esteja na proximidade das maiores coleções de documentos sonoros.
Um arquivo para colmatar uma lacuna com 40 anos
Por ocasião do Conselho de Ministros, que aprovou a instalação do arquivo, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca afirmava que o projeto surgia com o intuito de colmatar uma lacuna com mais de 40 anos, destacando que, desta forma, passará a ser possível a integração de Portugal na rede europeia internacional de instituições homólogas, que tem como missão garantir o património sonoro nacional.
“O arquivo sonoro é uma estrutura que tem uma dimensão tecnológica para conseguir arquivar, preservar e disponibilizar aquilo que é o património sonoro, os arquivos áudio, e que vai permitir para o futuro a utilização, a investigação, sobre aquilo que é o nosso património histórico”, destacava a governante, citada em comunicado.
Na mesma ocasião, a Ministra da Cultura sublinhou ainda que este arquivo sonoro é fundamental para assegurar a preservação dos conteúdos originais, permitindo depois uma incorporação numa “estrutura física com forte componente tecnológica, que permita serem conhecidos, utilizados e que sobre eles também possa haver novas linhas científicas de investigação, que permitam olhar para a nossa própria história de uma forma bastante diferente daquela que seria se não tivéssemos este arquivo histórico”.
Graça Fonseca assumiu o projeto como “prioritário para o Governo”, numa perspetiva que é partilhada por Pedro Félix ao Gerador. “Ao decidir criar uma estrutura de missão com o propósito de estudar e planear a instalação do Arquivo Nacional do Som, o Governo deu um sinal inequívoco que tem marcado muito da sua atuação neste campo: o reconhecimento inequívoco e definitivo da importância desta dimensão cultural nacional, e também o reconhecimento da importância deste tipo de documentos não só do ponto de vista patrimonial (cultural e artístico) mas também científico (enquanto documentos). Cumpre agora consolidar essas ideias materializando estes princípios na construção do Arquivo Nacional do Som”, conta.
O etnomusicólogo acredita, entre outros contributos, que o Arquivo Nacional do Som vai permitir “a identificação e preservação do património documental sonoro nacional, bem como “a sua salvaguarda”, concedendo, numa fase posterior, o “acesso universal aos conteúdos áudio”.
Os primeiros passos dados para a criação do arquivo
Constituída ainda em 2019, a equipa instaladora conta ainda com a participação da musicóloga Sílvia Sequeira e do investigador nas áreas de conservação e restauro Miguel Lourenço. Já no seu Conselho Consultivo, o projeto conta com a participação do etnomusicólogo António Tilly, o responsável da Área de Conteúdos Rádio da Subdireção de Arquivo da RTP Eduardo Leite, o musicólogo Paulo Ferreira de Castro, a investigadora e diretora do Museu do Fado Sara Pereira e a professora catedrática de Etnomusicologia Salwa Castelo-Branco.
Ao Gerador, Pedro Félix sintetizou o trabalho até agora desenvolvido, começando por um nível teórico, onde estão já definidas quais as opções técnicas e tecnológicas bem como as normas a seguir por parte do futuro Arquivo Nacional do Som. Nesta fase, o etnomusicólogo explica que já têm um “retrato muito detalhado da realidade patrimonial de documentos sonoros existentes em todo o território nacional”, ainda que faltem contactar algumas entidades, deixando o apelo para que as mesmas “se façam ouvir, contactando-nos e dando-nos a conhecer as suas atividades e fundos”.
Em termos patrimoniais e científicos, Pedro Félix adianta que têm ainda “levado a cabo inventários de coleções que ainda careciam deste instrumento fundamental, organizámos fundos, procedemos a algumas digitalizações e até restauros de documentos sonoros”.
“Outros projetos estão a ser preparados sempre na lógica que também norteará o futuro arquivo: a cooperação e colaboração entre as diversas entidades públicas e privadas, instituições e indivíduos, para que, todos em conjunto, possamos fazer a nossa parte nesse esforço para preservar, documentar e dar acesso (sempre que possível) aos documentos sonoros existentes, promovendo a sua fruição e estudo”, realça, acrescentando que também a nível internacional foi feito um “esforço de inscrição de Portugal na rede internacional de entidades congéneres”.
Questionado sobre os passos seguintes a serem dados, Pedro Félix explica que os mesmos serão “eminentemente técnicos no sentido do estabelecimento de normas e criação de ferramentas que possam ser adotadas pela comunidade para promover as bases de uma futura intensa articulação entre a comunidade, a rede existente e a estrutura arquivística a criar”.
“Também contamos continuar a colaborar com diversos projetos e entidades no sentido de as apoiar na sua atividade sempre que esta envolve documentos sonoros. Temos alguns protocolos assinados no sentido de desenvolver ações muito concretas com entidades públicas de nível nacional e local, empresas, associações profissionais (como o caso do ramo Português da muito importante Audio Engineering Society, último protocolo assinado), ou projetos específicos e acordos de parceria com entidades implementadas no território”, completa.
Embora não exista ainda um local definido para a instalação do arquivo, assim como um data de abertura, Pedro Félix adianta, no entanto, que o dossier do trabalho feito até agora será entregue brevemente, sendo depois iniciados os procedimentos necessários à instituição da entidade, a determinação do local em que será instalado, “onde todo um conjunto de infraestruturas tecnológicas terão de ser montadas para que o Arquivo funcione conforme os padrões e as boas práticas internacionais”.
Por outro lado, o responsável destaca ainda que a lógica projetada para a estrutura arquivística irá materializar um funcionamento em rede e que todo “o tipo de parcerias a criar são possíveis desde que confluam no propósito maior que é o de identificar, preservar, salvaguardar e dar acesso aos documentos sonoros, naturalmente respeitando o direito à propriedade, à proteção inquestionável e absoluta dos direitos de autor, à proteção de dados e direito à privacidade”.
“Sobretudo o que nos interessa é que toda a comunidade, empresas (nomeadamente as que publicam fonogramas), arquivos privados (de entidades e de particulares) percebam que a infraestrutura a criar irá prestar um serviço à comunidade e que todos juntos contribuiremos para a preservação dos documentos sonoros”, sintetiza.
O que pode mudar com a criação deste arquivo?
Numa entrevista recente ao Gerador, Edward Ayres de Abreu, presidente do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP), sublinhou a importância deste arquivo que poderá, sobretudo dar a conhecer melhor o passado sonoro do país. “Acho que é uma estrutura essencial. Estou muito curioso e muito expectante com o que poderá resultar desta equipa instaladora. É constituída por excelentes profissionais e, portanto, tenho as melhores perspetivas. É claro que estas perspetivas poderão colidir depois com a capacidade política de levar isto a cabo. Mas acredito que há essa vontade, sendo que é um projeto fantástico e urgente”, advoga.
O compositor e musicólogo sustenta que o arquivo será importante, desde logo, para demonstrar como a música e o som em geral também são património. “É importante que os portugueses comecem a ter esta ideia amadurecida dentro deles. É tão património como é a Torre de Belém ou como é uma tela dos Painéis de São Vicente, por exemplo”, destacando ainda que, no caso da música erudita, a estrutura pode ter um papel fundamental na “preservação de gravações raras, senão únicas, de partituras históricas no contexto nacional”, sendo que lhe compete ainda “salvaguardar o património gravado e assegurar, por exemplo, o depósito legal dos discos que são produzidos”.
Por seu vez, o documentarista musical independente Eduardo Morais, explica-nos como “Portugal tem um grave problema com a sua própria preservação de memória cultural”, sendo que “a nossa fraca qualidade na gravação sonora (e até na prensagem de discos) faz com que a fruição do nosso passado musical não seja propriamente do agrado multigeracional e de rastreamento fácil”.
Por essa razão, o realizador do documentário Meio Metro de Pedra, destaca a urgência de criação desta infraestrutura. “É fundamental que o Arquivo Nacional do Som seja instalado com urgência, pois não só a maioria das figuras musicais da primeira pré-revolução já não se encontra entre nós (e por consequência os seus registos pessoais e não-editados comercialmente) como as vantagens tecnológicas estão num ponto-chave para que os diferentes arquivos sejam resgatados a tempo”.
Não obstante, acrescenta, “é de extrema importância que o Arquivo Nacional do Som fosse aberto a contribuições pessoais e que não ficasse elitistamente limitado a géneros musicais sejam eles quais forem, gravados editados em solo português desde o ano de 1900, desde edições de autor às multinacionais”.
“A plataforma de consulta é o gimmick principal para atrair as novas gerações, e por isso desejo sinceramente que a mesma não esteja num registo demasiado académico à lá Windows 95 como muitos dos sites mais estaduais. De podcasts a uma gestão de redes sociais planeada, a outro tipo de interações frescas, espero que a sua apresentação não seja descurada”, completa.
Por fim, João Carlos Callixto, investigador e especialista em documentação musical, explica como o arquivo já tinha conhecido outras tentativas de implementação, constituindo-se como um “atraso muito grande” em relação a outros países europeus. Ainda assim, constata, este arquivo poderá finalmente uniformizar também os diversos arquivos e espólios privados que se encontram espalhados pelo país.
“Apesar de existirem arquivos com registos sonoros espalhados pelo país, sejam arquivos municipais ou privados, importa que estes espólios venham a fazer parte do Arquivo Nacional do Som. Além disso, a descrição do objeto sonoro também levanta outro tipo de questões, porque pode ter um intérprete que é autor da composição musical mas pode ter um intérprete que não é autor, ou pode ter mais do que um intérprete, ou mais do que um autor. Todas estas questões estão relacionadas com aquilo que é necessário uniformizar e que vai ser uniformizado com a criação do Arquivo Nacional de Som, ou seja, de certa forma, vamos passar a saber melhor do que é que estamos a falar”, sumariza.
O autor de programas radiofónicos e televisivos, realça também como a criação deste arquivo pode ser “desempenhar um papel quase inexistente em Portugal, pela possibilidade de edição física ou digital de conteúdos sonoros de uma forma sistematizada, quer por tipologias musicais, quer por por intérpretes ou autores, quer por épocas”
“Portugal tem das mais baixas percentagens em termos de redisponibilização no mercado daquilo que é a edição de música ao longo de todo o século XX. Portanto, sempre que houve uma passagem de suportes, apenas uma pequena percentagem daquilo que tinha sido editado no suporte anterior é que passou a estar disponível no novo suporte. O que isto quer dizer é que há uma grande parte da história sonora do país que está por conhecer e a criação do Arquivo Nacional vai permitir transformar a nossa perspetiva sobre este panorama”, finaliza.